Aquarius, uma divagação sobre Sonia Braga e os perigos de um filme

Aquarius, uma divagação sobre Sonia Braga e os perigos de um filme

Cena do filme Aquarius | Foto Divulgação

Lembro que não devíamos ver Sonia Braga quando eu era criança. Era o moralismo da época caindo em gotas geladas sobre nossas cabecinhas infantis em formação. Sonia Braga era um símbolo sexual, mas eu não tinha nome para isso quando era proibida de assistir a novela que passava tarde da noite. Era a ideia do sexual que flutuava no ar e tinha tudo a ver com Sonia Braga.

Naquela época, dez da noite era tarde demais. Guardei o nome Saramandaia, sem saber até hoje o que significa além da novela de Dias Gomes. Guardei a música do Ednardo que tocava na rádio e que, pequena, eu sabia cantar de cor, mas só podia cantar escondida. Guardei Sonia Braga, a mulher proibida que eu não podia ver na televisão.

Talvez por isso eu tenha assistido Aquarius tão fascinada justamente com Sonia Braga. Se a personagem de Sonia é interessantíssima, a Sonia da personagem me pareceu ainda mais.

Meus pais eram mais assustados do que moralistas, como a maioria da população brasileira, gente simples alienada de sua condição de classe. Sonia Braga era um mistério. Mas era também um perigo. O verdadeiro perigo, a própria televisão que já funcionava com a firmeza autoritária revivida no Brasil atual, era pouco percebido. As pessoas olhavam televisão como um liquidificador, um mero eletrodoméstico, sem suspeitar que sua capacidade de pensar é que estava sendo triturada. A gente podia ver o Batman, mas não a Sonia Braga. E assim seguíamos. Outras doses do veneno autoritário próprio para o embrutecimento subjetivo nós a tomávamos em doses violentas ou sutis todos os dias na escola, além da família, que também estava militarizada.

O contrário de Sonia Braga

Na contramão da Sonia Braga imaginária, tinha a professora Elisabeth que era a repressão encarnada. A professora Elisabeth não dava aulas. Com seu olhar pesado, ela nos vigiava pelos corredores, na hora do intervalo. Com o queixo sempre erguido ela demonstrava seu poder para as pobres criancinhas. E éramos realmente pobres, nós que estudávamos no “coleginho”, ainda que essa palavra nunca tenha feito parte de nosso vocabulário.

Antes de entrar na sala de aula, a professora que, além de tudo, não dava aulas, inspecionava nossos uniformes. Foi assim que ela se manteve na minha memória, como uma professora que não dava aulas e que, na sua postura, nos ameaçava. Em uma ocasião marcante para a minha vida de menina, fugi para casa por que, ao ter perdido a minha gravatinha azul marinho da cor da saia de pregas que eu achava horrorosa, coisa que acontecia constantemente, ela me mandou direto da fila para a sala da direção. Até hoje eu evito entrar em filas. Imaginei o pior e achei melhor ir para casa. No auge dos meus seis anos, andei por quilômetros, tendo inclusive atravessado a BR116 que era o pavor da minha mãe, sempre preocupada que fôssemos atropelados.

Não sei o que aconteceu, mas minha mãe aboliu o uso da gravata na escola. Do dia seguinte em diante, nunca mais precisamos usar aquela peça confeccionada na máquina de costura de minha mãe. Minha mãe, aliás, nunca foi uma pessoa boazinha e nunca deixou ninguém se meter com os filhos dela. Ali, com a professora bronca, a minha mãe entrou numa briga de poder em torno da gravatinha e, não sei como, venceu.

Eu entendia que minha mãe nos protegesse da professora Elisabeth, mas não entendia porque não nos deixava ver a Sonia Braga.

(Ao esforçar a memória para contar essa história que envolve a Sonia Braga do meu imaginário, eu me transporto àquela época estranha em que não imaginávamos o que era a ditadura militar acobertada por tudo e por todos graças ao uso da televisão. Crianças, desenhávamos a bandeira do Brasil e decorávamos o hino nacional, desfilávamos de uniforme escolar em filas no dia 7 de setembro. E não nos era autorizado dizer como odiávamos tudo aquilo. Odiávamos, porque tinha também uma mentira no ar e as crianças, como o povo, não são bobas.)

Aquarius

Aquarius é o filme de Kleber Mendonça Filho – atualmente em cartaz – que coloca em questão a especulação imobiliária na orla de Recife a partir de personagens que tornam problemática a visão dominante sobre questões de classe em nossa cultura. Em gradações de objetividade e sutileza, o filme nos faz pensar sobre as relações que estabelecemos com as pessoas a partir de perspectivas ideológicas. Nele, vemos uma Sonia Braga contemporânea, digamos que “senhora de seu tempo”. Sem nada para esconder, com suas rugas, suas formas maduras, sem medo de ser quem é, como, no fundo, todos queriam ser.

Pensei que Sonia Braga tem muito a ver com Aquarius em um sentido metonímico. Ela é a cara de Aquarius, sem maquiagem e, digamos, cheia de estilo no seu modo de ser.

Para os que não gostam de ver nada sem maquiagem, para quem não entende que questões sociais, éticas, políticas e econômicas podem e devem estar em cena, e mesmo para os que acham que questões corporais e sexuais devem ser ocultadas, Aquarius parecerá insuportável. Para quem não gosta de pensar demais, o filme pode causar algum tipo de mal estar.

Aquarius é, além de um grande filme, um ensaio reflexivo, irônico e até debochado, sobre o poder. E, por isso, ele aparece para alguns, e sobretudo para os lacaios do sistema, um filme perigoso. Que o atual Ministério da Cultura – aquele que, segundo o governo, não deveria existir, mas existe – tenha evitado sua desejável indicação ao Oscar é um recibo passado quanto à sua qualidade artística e sua inevitável periculosidade para os donos do poder que escondem a fragilidade desse mesmo poder – que não advém do voto do povo, mas do abuso e da traição – atrás da violência.

Hoje eu vejo que obedeci direitinho a minha mãe, pois nunca vi nenhum filme, nem novela em que aparecesse a Sonia Braga. Quanta Sonia Braga que eu perdi, penso agora enquanto torço para que ela ganhe um Oscar por sua atuação em Aquarius. Seria uma curiosa ironia do destino.

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