Antologia
Victor Heringer
Não sou poeta
Agora que os estalos da adolescência passaram
e a vida assenta como uma cômoda de mogno
agora que os joelhos estalam quando me levanto
sem mulher, sem filhos, mas com emprego estável
é preciso admitir que não sou poeta.
Embora o meu amor esteja solto no mundo
violento, semicego e ferido no ombro
não sou poeta.
Todos me felicitam. Que bom, dizem
vida de poeta é muito difícil.
Logo a gente chega a ser homem
e acaba com as coisas de menino.
A vida afunila.
Eu tinha dois, três truques nos bolsos
de calças compradas em shoppings.
Não soube nunca comprar como poeta
a longa espera por um par de sapatos
sentinela no deserto.
Os sapatos são fabricados e os pés dos poetas passam anos se deformando. Até que um dia cabem.
Por isso qualquer roupa parece velha
no corpo de um poeta.
Por isso estão sempre se desculpando
pelas roupas velhas.
Mas em segredo se orgulham.
Embora eu tenha um corpo
que pode ser confundido com o corpo de um poeta
não sou poeta.
Tenho as pernas fortes e os braços magros.
O torso amolecido dos boxeadores
os órgãos de dentro estropiados.
Mas quem me vê nu instintivamente sabe que não sou poeta.
Não levantei a mão esquerda em golpe de dançarina de flamenco ao ler Jaime Gil de Biedma para os meus amigos,
embora tudo tenha conspirado para isso.
Para que se me entranhassem as coisas.
Concluo que não sou poeta.
Tenho os dedos frios de um técnico em informática
e sou triste como um técnico em informática
mas não sou tão triste quanto um barbeiro.
Eu li todos os tratado
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