Anelis Assumpção e Aline Bispo lançam livro e abordam o luto para crianças
A cantora e compositora Anelis Assumpção une sua sensibilidade à potência criativa da artista visual Aline Bispo para estrear na literatura. Lançado pelo selo infantojuventil Outra história | Oh!, da Editora Veneta, o livro “Serena finitude” utiliza elementos poéticos para tratar com delicadeza temas como a morte, o luto, o amor e as descobertas. A obra faz referência à cantora, compositora e produtora cultural Serena Assumpção (1977- 2016), irmã de Anelis.
As irmãs Assumpção seguem o legado do icônico poeta, compositor e músico, Itamar Assumpção, grande expoente da Vanguarda Paulistana, movimento cultural dos anos de 1970 e 1980, em que se destacaram as produções independentes, de música experimental.
Já a irreverente música de Anelis Assumpção navega entre o dub, afrobeat, reggae, pop e a música popular brasileira.
A arte de Aline Bispo incorpora a linguagem dos grafites. É possível ver painéis de Bispo no viaduto do Minhocão (SP), por exemplo. Após ilustrar o best-seller “Torto-arado”, de Itamar Vieira Junior, e a coluna de Djamila Ribeiro na Folha de S. Paulo, Bispo tem diversificado ainda mais o seu trabalho ligado à representação da mulher negra e às religiões de matriz africana. Recentemente ela assinou a coleção “Belezas Brasileiras”, da Hering.
“Eu tive um luto muito difícil. No primeiro momento, não foi um desejo de homenagear a Serena. Foi uma necessidade de elaboração da perda. E é lógico que para que isso acontecesse eu tive que olhar para essas personagens que o livro sugere que seja ela e eu”, conta Anelis Assumpção sobre a relação da personagem principal do livro com a sua irmã. “O livro veio muito mais pelo desejo de reorganizar esse sentimento e também dividir minha experiência. A sociedade trata o luto de uma forma muito confusa.”
Na entrevista a seguir, Anelis Assumpção e Aline Bispo falam do processo criativo para a produção do livro, a influência familiar e como uma admiração virtual deu início à parceria entre as duas.
Como surgiu o desejo de homenagear a sua irmã por meio do livro?
Anelis: Na verdade, isso não foi organizado assim na minha cabeça. Acho que precisei elaborar um pouco, através da escrita, a minha própria relação com essa perda. Puxei fios da inconsciência, a minha relação infantil, a minha porção criança lidando com essa falta. Quando a gente perde alguém na vida adulta elabora de uma forma fria, conformada. A criança tem outras vias que eu precisei buscar dentro de mim porque me sentia inconformada. Eu tive um luto muito difícil. No primeiro momento, não foi um desejo de homenagear a Serena. Foi uma necessidade de elaboração da perda. E é lógico que para que isso acontecesse eu tive que olhar para essas personagens que o livro sugere que seja ela e eu. Então, acaba que ela é homenageada, afinal, ela era mais velha, ela sabia mais das coisas, ela tinha experiências por ter chegado antes. A minha homenagem é um pouco nesse aspecto, nesse lugar. Independente da falta, ela segue ainda sendo uma pessoa que me ensina, que me protege, que cuida e que me orienta. O livro veio muito mais pelo desejo de reorganizar esse sentimento e também dividir minha experiência. A sociedade trata o luto de uma forma muito confusa.
Por que você escolheu escrever para o público infanto juvenil?
Anelis: Eu creio que isso tenha acontecido porque eu tenho muitos filhos (risos). Tenho três filhos e um deles é na verdade o filho da Serena que vive comigo desde o seu falecimento. O Bento tinha 11 anos quando ela morreu e ele é uma criança que eu sempre convivi. Eu e Serena sempre fomos próximas, então eu tinha uma relação muito forte com esse sobrinho. E também comecei a observar como foi a reação de todos quando ela morreu. Eu comecei a fazer isso quando meu pai morreu e a relação da minha filha mais velha com a morte do avô. E depois com a morte da Serena, observei o filho dela e o meu outro filho, cada um organizando em valores muito individuais a sua relação com essas perdas. Acho que isso me motivou inconscientemente. Eu não tinha a pretensão de ser uma autora de livros infantis, mas é uma linguagem que me interessa muito, por eu ter filhos, embora eles não sejam tão crianças assim hoje. O universo da leitura e da literatura infantil sempre foi muito presente aqui em casa. A gente consegue trabalhar muitas coisas: desenvolvimento emocional, letramento, estímulos. Acho que a vontade de escrever para crianças veio bem inconsciente a partir desse ponto. Como falar de morte com crianças? Como as crianças entendem a morte? Acho que a melhor forma, na minha cabeça, foi falar como a minha criança e a criança da minha irmã se relacionam com esses temas, do fim, dos fins, dos diversos tipos de fim.
Como você conheceu a Aline Bispo?
Anelis: Eu conheço a Aline faz um tempo por meio dos trabalhos de arte de rua, dos grafites que ela tem espalhados aqui em São Paulo. Eu já seguia o trabalho da Aline e tinha conhecimento da potência dela enquanto artista plástica. Depois que ela ilustrou a capa do livro Torto Arado, a gente foi tendo conexões virtuais. Quando a editora me convidou para publicar o livro, eu disse que gostaria muito de encontrar uma mulher ilustradora, uma mulher negra, que isso era importante para o contexto da história. E aí eu lembrei da Aline e fui cooptada ali por algum mistério da virtualidade. Eu comentei alguma publicação e ela me agradeceu. Ela respondeu: “ah, que bom ter você por aqui”. Eu achei aquilo um sinal e imediatamente escrevi pra ela, me apresentei e perguntei se podíamos conversar melhor. Eu contei a história do livro e convidei. Foi um encontro muito bonito, muito potente. A Aline é uma mulher religiosa, que trabalha sua espiritualidade nas religiões de matriz africana e isso com certeza fez muita diferença no olhar e na sensibilidade para essa história. Ela aceitou o convite e a gente começou a trabalhar. É um presente enorme, mais um dos que minha irmã apronta. Eu sinto e tenho certeza que a Aline é um presente que vem ancestralmente até a gente.
Aline, depois do convite para ilustrar o livro, como você pensou o seu trabalho dentro deste tema tão sensível e delicado?
Aline Bispo: No primeiro momento foi um desafio pensar em como desenvolver ilustrações que fossem sensíveis como o tema. Eu sabia que o trabalho digital não seria suficiente e por isso levei a ideia de fazer as ilustrações manuais, pois eu buscava transmitir essa sensibilidade e ao mesmo tempo caminhar junto ao livro, de modo livre e poemado. Acho que essa ideia de trazer a pintura com texturas, objetos e cores junto da minha mão mais aparente, fez com que as artes ficassem mais fluidas para a leitura, apesar da dureza que o luto possa trazer em algumas situações.
Você encontrou referências de arte e/ou livros que falam sobre a morte voltada para crianças e adolescentes, Aline?
Aline Bispo: Encontrei alguns títulos, como o clássico “Menina Nina”, de Ziraldo, que é muito bonito. Tem também o “Para onde vamos quando desaparecemos?”, de Isabel Minhós Martins. Mas quero destacar o livro “Aimó”, de Reginaldo Prandi, que é um livro que trata sobre a morte a partir da história de sua personagem central, que trazida da África ao Brasil como escrava e caminha no mundo dos Orixás tentando se encontrar após sua morte, enquanto tenta renascer.
Como a sua família inspira a sua arte, Anelis?
Anelis: De diversas formas. Eu acho que a primeira inspiração é ter a força e a coragem, de ter fidelidade a uma verdade, a uma necessidade de rompimentos de padrões. Acho que meu pai, minha tia Denise Assumpção e minha irmã são pessoas que têm uma importância no que fazem ou fizeram dentro das artes. De rupturas mesmo. Acho que essa é a maior inspiração. É uma linhagem de pessoas sem medo de inovar, de desafiar estéticas, padrões, acho que isso é a coisa mais potente. Hoje a gente tem o mercado estufado e muito inchado de coisas repetidas, poucas invenções, poucas inovações, muitas cópias, muitas reproduções em série, de um mesmo formato. Então essa é a maior inspiração que eu tenho: é poder olhar para um lugar estrutural de criação e ver que as pessoas que vieram antes de mim inventaram linguagens, inventaram propósitos, foram fiéis a seus corações, a suas artes mais individuais e acho que essa é a maior inspiração que alguém pode ter. A maior beleza tá nisso né? A beleza está em ser a gente mesma, não em tentar ser uma coisa que a gente não é. Minha família me inspira a ser eu mesma.
Como a sua família inspira a sua arte, Aline?
Aline Bispo: A minha pesquisa e criação passam pelo meu lugar no mundo, pelo meu entendimento étnico e territorial, então as conexões com a minha família estão em toda parte, desde a busca pela formação genealógica, até às tradições, celebrações e histórias. Acho que estar conectada à minha família revela muito da minha formação, mas também sobre uma formação continuada de quem sou, que é essa etapa que vem junto da prática artística.