Incômodo e provocação em ‘Migalha’, de André Luiz Pinto

Incômodo e provocação em ‘Migalha’, de André Luiz Pinto
(Foto: Divulgação)

 

O novo livro de poemas de André Luiz Pinto, Migalha (7Letras, 2018), perpassa por uma inquietação filosófica, levando a pensar sobre os aspectos cotidianos da realidade. É um livro que incomoda e não nos acomoda. Provoca reflexões sobre o que é factual, o mais presente no real pulsante da experiência e da vida. Na orelha de Ricardo Vieira Lima sobre este livro, temos: “Nesse sentido, Migalha forma uma trilogia com esses dois volumes anteriores, já que tem em comum com eles o desejo de dizer muito, em poucas palavras, acerca daquilo que quase ninguém percebe”. Com uma poesia prosaica, beirando ao tom de conversações filosóficas, o livro requer um fôlego expandido para fora dos limites do mínimo. Com palavras acertadas, este livro de poemas é preciso e exato nas suas provocações inusitadas aos apelos da vida. A vida no sentido mais amplo da palavra e não apenas uma vida íntima e confessional, mas que abarque a grandiosidade de toda a experiência humana em sua coletividade.

A indignação que atravessa os poemas nos traz para o lado da filosofia perene dos orientais, com seus mistérios de perplexidade e afastamento da filosofia apenas ocidental, unindo o Ocidente e o Oriente num processo de criação original e jamais pensado. No belo posfácio de Tarso de Melo, temos: “Os poemas de André, como koans, sabotam o pensamento, a racionalidade, a inteligência”. Dessa forma, o poeta por ora aqui apresentado revela o paradoxo da imagem poética que circula pela movência e flutuação do ficcional ao intuir dois aspectos da inteligência, o intelecto filosófico e a intuição oriental, perfazendo a ambiguidade cambiante do pensamento que se entrega ao desassossego e à desestruturação. O primeiro poema, apenas dois versos em meio à brancura da página: “Creio/desde que…” traduz a efemeridade da crença ao apontar para um “niilismo subversivo” que se entrega também a um “entre”, um “porém”, a uma necessidade de verdade flutuante que se esconde nas palavras poéticas. A poesia aflora como metáfora do tempo presente que não se prende às controvérsias do relógio. Seu tempo é o tempo de todos nós que se esgota num átimo na contemporaneidade. O tempo da poesia se realiza como presença do que se esgota e não se renova num passado perdido ou num futuro incerto.

Por vezes, seu livro de poemas, nos faz lembrar da prosa poética de Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa) em O livro do desassossego com sua descrença, angústia e finitude diante da vida. André Luiz Pinto, na sua obra, mescla versos com frases, revelando o hibridismo criativo da poesia e da prosa, liberto das amarras da camisa de força da tripartição dos gêneros, unindo o dramático, o narrativo e o lírico. É forte a tensão dramática em suas palavras que se adensam numa linguagem árida e seca. Citemos Bernardo Soares, no livro já referido: “A mania do absurdo e do paradoxo é a alegria animal dos tristes. Como o homem normal diz disparates por vitalidade, e por sangue dá palmadas nas costas dos outros, os incapazes de entusiasmo e alegria dão cambalhotas na inteligência e, a seu modo, fazem os gestos da vida”. Num tom de conversação, a poesia de André Luiz Pinto provoca um descontentamento nos leitores mais desavisados, inaugurando palavras de grande poder de comunicação. Sua poesia comunica, diz muito com a força do mínimo. Como uma semente que produzirá uma árvore frondosa, o que se esconde no pequeno revela uma potencialidade grandiosa, pois o mínimo-múltiplo faz de sua poesia a recriação da experiência humana em todo seu teor ambivalente de felicidade e infelicidade, sossego e desassossego.

Num de seus poemas, temos: “Tarde demais/Cigarros não salvarão a cidade/Como explicar o amor/o mal que ele faz/Pena/que tive filhos…/Querer sempre agir/corretamente não traz felicidade”. Com tomadas filosóficas, uma árida e profunda reflexão sobre os fatos cotidianos, André Luiz Pinto nos leva ao inusitado das questões, surpreendendo-nos a todo momento sem nos levar a subterfúgios ou justificativas pueris. Sua poesia é uma eterna interrogação que nos inquieta. Sua poética leva ao próprio de todos nós, o que nos define e circunda, mostrando o próprio e o alheio, o conhecido e o desconhecido, o mesmo e o estrangeiro, aquilo que dentro de nós nos assusta e revela ao mesmo tempo nossa pequenez e grandiosidade. Além desta inquietação que percorre a carne de seus versos indomesticáveis, temos uma ironia ácida que corta a face de suas veias plurais, trazendo a multiplicidade dos sentidos além do tom simples e corriqueiro. Vejamos no poema em prosa “Sugestão”: “Depois de levar o filho ao zoológico, não esqueça de o levar também a uma prisão. Assim o garoto terá uma visão completa das espécies esquecidas”. Com um riso irônico e sufocante sua poesia nos afoga na realidade nua e crua do cotidiano, sem meias palavras, mas com a verdade cristalina da poesia em sua transparência originária.

A efemeridade das coisas circula em sua poesia com sabor de forte ironia trágica. Mas sem deixar o lado cômico do paradoxal sua poética se adensa na memória das sensações, trazendo o saber-sabor das coisas em seu poder de provocação das coisas mais extraordinárias. Do comum e ordinário, sua poesia alcança a longitude do pleno e do grandioso. Em “Duas coisas”, temos: “É muito importante que você saiba/ que precisa começar a quimio o mais rápido possível/e que para uma pizza pré-cozida/são dez minutos/no forno”. O sarcasmo e aridez diante das coisas sérias da vida ganham a perplexidade do cômico. É possível rir diante da iminência da morte. O trágico é cortado com a lâmina do risível, tornando a vida mais leve e possível de ser suportada.

Com uma crítica corrosiva da sociedade, sua poesia produz um incômodo nas lentes embaçadas da existência. A dor e a angústia em meio ao caos e à náusea urbana revelam seus medos e anseios. Com uma ironia ácida, nem um pouco elegante ou refinada como num bom estilo inglês à la Machado de Assis, sua força corrosiva corrói o lado solar da vida, levando-nos ao sombrio e inquietante. Alguns poemas são intitulados e outros não têm título, demonstrando assim seu poder de nomeação e ao mesmo tempo de desmonte dos nomes. As identidades dos poemas são cortadas pela tesoura do silêncio. Além da crítica social, sua poesia revela nossa contemporaneidade com sua tecnologia e internet, afinando-se, assim, com o tempo presente. Não é só da realidade presente que sua poesia é feita, no seu poema-título do livro “Migalha”, temos a figuração mítica, com o despedaçamento constante dos heróis na antiguidade como em Osíris e Dionísio, com seu gesto do sparagmós nos ritos antigos. Uma cena de violência é revelada e aqui não é um deus que é desmembrado, mas o poeta: “Fiz como você pediu/cortei o poeta/em versos/e os espalhei/em um prédio abandonado/numa caixa d’água vazia/pra ninguém saber”. Aqui, o teor mítico é substituído pelo poder da metáfora em uma demonstração de poesia metalinguística.

Portanto, sua poesia como uma análise minuciosa das cenas cotidianas nos provoca a pensar as questões do humano, provocando uma ferida no leitor que se incomoda com a cicatriz das palavras. Sua poesia é um golpe, um soco no estômago do leitor nos enredando na realidade das coisas. A teia nos envolve na sua escavação reflexiva e profunda. Com desconcerto, ironia dramática e riso, sua poética nos arrasta num processo de crença e descrença, pois a experiência não é apenas uma verdade de cada coisa, mas suas aparências e máscaras. Por vezes sua poesia apresenta um lirismo surpreendente, causando uma inadequação entre seu tom árido e a sublimidade de algumas palavras, como em: “Estou no mar/O céu é de uma turquesa inesquecível/Sem brisa/Sem chance alguma.” Na sua poesia, dessa forma, encontramos uma desarticulação, as partes desiguais formam um conjunto novo e inusitado. Suas questões não têm respostas simplistas, não há verdades essenciais, mas a inquietação e a dúvida. Que sua poesia tenha vida longa por sua qualidade ímpar e original que perpassa a construção de uma poética provocativa, bem elaborada e que não nos deixa com um destino certo, mas à deriva das palavras. Sem rotas e mapas essenciais, sua literatura recorta o véu das questões mais urgentes de nossa vida cotidiana e social.

Alexandra Vieira de Almeida é escritora e doutora em Literatura Comparada (UERJ)

(1) Comentário

  1. Boa noite.
    Como diz o poeta de O Três:
    O TRÊS
    Somos corpos q se movem em almas q flutuam
    sobre um Espírito em fuga.R.p
    Texto sublime.

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