Amor platônico?
O Banquete de Platão, representado por Anselm Feuerbach (1873), Alte Nationalgalerie, Berlim (Domínio Público)
O “amor platônico” é um dos estereótipos mais conhecidos da tradição ocidental. Se olharmos de perto os textos de Platão, ficaremos surpresos com o quanto suas ideias são distorcidas. É comum dizer que o “amor platônico” refere-se a uma relação na qual aquele que ama idealiza o outro: a pessoa amada é ideal e, portanto, inatingível. Tamanha é a distância entre o sujeito e o objeto de seu “amor”, que o outro nem fica sabendo que é amado. O texto mais conhecido de Platão sobre o amor é o diálogo O banquete, no qual se narra o encontro de cidadãos atenienses dispostos a elogiar o deus Eros.
O amor é e não é um deus
Para os gregos antigos, o amor é um deus e tem nome próprio, Eros. Segundo Hesíodo, por exemplo, ele é um dos deuses mais antigos e atua no universo agregando os elementos e os seres.
Em O banquete, de Platão, o personagem Fedro começa elogiando Eros como fonte dos maiores bens, inspirador dos amantes e instigador do arrebatamento nos heróis. O segundo a falar é Pausânias, para quem, na verdade, existem dois deuses: Eros urânio (celeste) e Eros pandêmio (popular), um associado à força educadora da excelência humana (virtude), outro ligado à satisfação dos apetites, de maneira irrefletida. Para o médico Erixímaco, Eros organiza os movimentos dos astros, ordena as estações e atua nos corpos de todos os seres, provocando cópulas e associações variadas. É assim que as ações do agricultor e do médico devem levar em conta a força erótica divina, seja para ter boas colheitas, seja para promover a saúde. Também o músico deve contar com o favor do deus para criar acordes, ou, sem ele, provocar dissonâncias. Agathon, o poeta trágico, propõe, por sua vez, um só Eros, do qual pinta uma imagem positiva exacerbada: ele é o mais belo, o mais jovem, o mais feliz, o mais hábil, o mais corajoso, o mais temperante; ao agir, só favorece coisas boas, como a paz e a familiaridade entre os seres.
Mas, por outro lado, o amor não é um deus. Na verdade, ele é uma dimensão interna ou estrutural dos seres humanos, força que determina as modalidades de atração, seja no sentido da procriação, seja no sentido da satisfação dos apetites, propiciando um apaziguamento que ameniza a vida e permite que todos se ocupem de seus afazeres. Segundo Aristófanes, o poder de Eros surge do fato de os humanos terem sido cortados ao meio, o que faz com que passem a vida buscando suas metades perdidas. Seja pela reprodução, seja pela satisfação proporcionada pelo sexo, é eroticamente que os indivíduos tentam restaurar sua antiga natureza.
Quando chega a vez de Sócrates falar, ele recorre à fala da sacerdotisa Diotima, para quem Eros não pode ser um deus, afinal, quem ama deseja algo que não tem; logo, o amor é uma carência. Se ele é desejo de coisas belas e boas, não pode ser belo nem bom, pois, como potência interna ao humano, não tem ou não é aquilo que busca. Os pais de Eros seriam Penia (pobreza) e Poros (recurso); mas, em vez de deuses, eles acabam se transformando em causas imanentes que fazem parte de uma nova concepção do amor: não sendo nem bom nem mau, nem belo nem feio, nem sábio nem ignorante, ele é um ser intermediário, uma potência que se situa entre o divino e o humano.
O amor é e não é um sentimento
Segundo alguns, o amor é um sentimento, ou melhor, um modo como os seres humanos são afetados perante objetos ou seres que os atraem e os marcam. Para Fedro, o amor é uma espécie de sentimento de solidariedade civil, que move os indivíduos a se associar e a construir pactos; um sentimento de amizade, reciprocidade, levando ao cuidado com o bem do outro, nobre e elevado. Em seu grau máximo, ele é o que leva o amigo guerreiro a morrer pelo seu companheiro de armas, ou ainda a fazer com que a esposa se sacrifique pelo marido.
Quando Pausânias propõe dois tipos de Eros, separa o ato de amar da maneira como realizamos esse ato. Se o ato de amar é, em si mesmo, indiferente, o sentimento que marca o modo como amamos faz a diferença; o amor instintivo e irrefletido é vil, porque não traduz uma consciência do outro. Mas o amor elevado é o sentimento que nos leva a desejar e promover o bem e o crescimento do amado.
Já na perspectiva de Aristófanes, o amor não é mero sentimento, mas algo permanente, como um modo de ser da espécie humana, na medida em que está presente no fato de sermos estruturalmente incompletos. A busca de completude determina-nos, fazendo-nos estar sempre voltados para o outro. A essa estrutura carente combinam-se graus maiores ou menores de consciência, que, por sua vez, determinam nosso modo de ser e agir.
Entre o sentimento e a estrutura, passam a entrar em jogo ainda as dimensões da significação e do conhecimento, pela dimensão da consciência da falta, que está relacionada com a consciência do outro: depois de cortar os seres humanos ao meio, Zeus gira o rosto para o lado do corte. O que eu entendo que sou, aquilo que eu significo para mim mesmo é correlato ao que eu entendo que o outro é, ou o que o outro significa para mim.
A consciência do corte está ligada ao sentimento, mas é mais do que uma experiência transitória: o indivíduo cortado tem a oportunidade de aprender que o outro não vai restaurar sua unidade originária; ele pode, assim, pela vida compartilhada e a satisfação que a convivência proporciona, amar e trabalhar de modo construtivo, menos desesperado, talvez. Sócrates critica, por um lado, a ideia de que o amor seja apenas a busca de uma suposta cara-metade; por outro lado, reforça a perspectiva que leva em conta a consciência da carência: quem sequer imagina que é deficiente naquilo que não acredita ser-lhe necessário não é capaz de desejar verdadeiramente.
Segundo Diotima, se o amor é busca, ele é um movimento que parte da falta e vai na direção de uma possibilidade de plenitude. Mas, se ele se tornar posse, deixa de ser o que é, pois perderá a qualidade de ser intermediário. Como processo, o amor parte de uma determinação ou qualidade e vai na direção do seu oposto; o feio busca o belo, o sem recurso busca o recurso, o que é ruim tende a buscar o que é bom, o ignorante deve tomar consciência de sua falta de conhecimento. O amor é decisivamente “um ser entre”.
Essa ideia do amor como processo permite associar intimamente amor e conhecimento: o amor fica entre a ignorância e o saber pleno, e a reflexão sobre o amor pode ser lida como uma definição da própria filosofia. Pois, quando o ser carente encontra o que busca, na beleza ou na excelência do outro, torna-se grávido e tem necessidade de gerar. Amar, então, é gerar na beleza, ou seja, produzir algo perante o que é belo. Para falarmos em geração, temos de supor alguma plenitude, alguma suficiência que, finalmente, transborda, vai além da mera falta e produz algo novo.
A geração deve ser pensada tanto no plano natural como no cultural. Os seres vivos estão em permanente transformação, tornando-se constantemente outros, perdendo o que têm e fabricando-se novamente. No plano biológico, a geração de outro ser é preservação da espécie; na dimensão cultural, a geração dá-se no plano da significação e do conhecimento. Um ato justo, uma atitude significativa, a produção de bens culturais são modos de constituir eroticamente a rede de valores e significações que o mundo humano é. Seja como preservação da espécie, seja como fabricação da cultura, amar significa buscar recursos para lidarmos com nossa mortalidade. Como indivíduos, nascemos carentes e morremos sozinhos, mas, como membros de uma espécie e parte integrante da comunidade humana, reunimo-nos aos nossos iguais e sobrevivemos, ou seja, permanecemos como sentido humano maior.
O amor é loucura e filosofia
No mito dos seres andróginos, contado por Aristófanes, quando dois seres cortados encontram suas metades, perdem a noção das coisas, ou seja, ficam agarrados, numa busca enlouquecida de saciedade. Por isso, param de cuidar de suas vidas, não se alimentam e acabam por morrer de amor, uma metade acoplada à outra.
A ideia de que o amor seja um tipo de loucura aparece também em outro diálogo platônico, chamado Fedro, no qual Sócrates discute os benefícios e os prejuízos de uma relação amorosa. Haveria tipos diferentes de delírios divinos, dependendo do deus responsável pela possessão: ser possuído pela Musa leva-nos a fazer poesia; ser possuído por Apolo permite-nos prever o futuro; ser possuído por Dioniso torna-nos iniciados em certos mistérios; ser possuído por Eros torna-nos filósofos. Mas, se filosofia é amor pelo conhecimento, não pode ser um desvario irracional. Deuses e ignorantes não filosofam, porque se creem sábios. A maioria dos humanos ignora sua própria ignorância, por isso age irrefletidamente. Quem toma consciência da ignorância estrutural da humanidade são os que filosofam, buscando nas coisas toda a racionalidade de que são capazes. No horizonte dessa busca, o filósofo postula um máximo de inteligibilidade, chamado de “ideia”, “forma” ou “essência” inteligível.
Por ideal, em Platão, não devemos entender algo idealizado, mas um modo de ser radical, cujas determinações sejam puramente inteligíveis. Esse máximo de ideação é mais uma aposta e uma exigência do que uma constatação; aquele que filosofa parte da precariedade e da finitude das coisas e dos homens. Para compreendê-los e educá-los (pensá-los no seu melhor), é levado a postular algo que não conhece, mas entende dever existir, apesar de invisível. A essência, então, é alguma coisa à qual temos acesso por meio da inteligência. À medida que é pensada e desenvolvida reflexivamente (diálogo), passa a ser posta como referência; algo divino, porque para além da mortalidade humana; objeto que atrai e orienta o amor e a linguagem humana.
Assim, o objeto dito “ideal” não é um objeto perfeito imaginado nem mera projeção gerada pela carência. O objeto inteligível é proposto como algo a ser pensado, conhecido e amado. Se o amor é filósofo, ele é construção racional e progressiva desse objeto. Não é a idealização ingênua da figura do ser amado, mas é abertura para o outro e, progressivamente, para uma alteridade inteligível; ele implica a relação entre corpos e almas, sempre em movimento, rumo a algum tipo de imortalidade.
O movimento do amor não pode parar: além dos belos corpos, das belas ocupações, do bem comum, dos valores políticos, da convivência na cidade (pólis), ele é exigência máxima de racionalidade, buscando a causa de tudo o que é bom e de toda beleza.
Busca de consciência e conhecimento máximos, o amor filosófico é exigência de beleza pura, mas sabe-se finito e limitado, mesmo que desejando sempre mais.
Marcelo P. Marques é doutor em Filosofia pela Université Marc Bloch, Strasbourg, França
(6) Comentários
Muito bom, mas… “ser entre” é ‘inter esse’ ou seja, um profundo interesse, o amor é isso sem dúvida! Essa ‘coisa’ gestada e não parida, bela, boa e verdadeira, só se realiza no amor humano com alguém, – o ideal não está separedo do carnal ou corporal. Algo somente inteligível é um “loucura”. Entendo que Sócrates ama aquela mulher e gesta cultura e filhos. Eros, Ágape e Philia se realizam no mundo. E é “eterno enquanto dura” como diz o poeta.
Parabéns pelo excelente texto. Marcelo P. Marques conhece muito bem o assunto porque é professor,um grande mestre.
A Cult sempre fala com propriedade dos assuntos que escolhe, não entrega em mãos incapazes…
Brilante texto.A espécie se perpetua apesar ou através do amor.Difícil sua definição e sua caracterização porém fácil sua percepção.Quem o vivencia percebe sua importância.
ótimo texto!
Difícil pensar que o amor seja uma incógnita depois destas constatações filosóficas. A pertinência do amor caminha entre os pares da racionalidade e da sentimentalidade, ou seja, para se compreender o que é o amor, é preciso pensá-lo como um objeto de estudo, extraindo daí reflexões que poderão (ou não) permitir uma harmonia nos relacionamentos ou simplesmente senti-los, de forma livre e desmedida, sem ser barrado por censuras interpessoais? Entre estas ponderações, cada um deve trilhar a jornada que mais lhe aprouver.
“O amor é loucura e filosofia” foi a melhor ‘definição’ de amor que eu ja li. Adorei!