Amor pelo dever

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Amor pelo dever

 

A crítica ao psicologismo limita radicalmente a compreensão adequada dos móbiles em operação no interior da filosofia moral. Por exemplo, tomemos como ponto de partida a análise do dever. Se aceitarmos que, por dever, entendemos normalmente o
sistema de normas e leis que impomos para nós a fim de nos orientar na ação, determinar a validade de nossas ações, então devemos insistir que tal sistema precisa levar em conta a dimensão psicológica dos sujeitos agentes.

Só tal dimensão pode responder a perguntas como: por que nos ligamos ao dever? O que está realmente em jogo no interior de nosso vínculo ao dever?

Aceitemos a ideia central de que há uma formação em direção à moralidade, que só posso saber como agir moralmente após um complexo processo de formação.

No entanto, tal formação é também a descrição de um processo psicológico de maturação. O que não deve nos estranhar, já que a questão fundamental para uma teoria da moralidade não é apenas “o que devo fazer?”, mas “como quero ser?”, “que tipo de forma de vida quero realizar?”. Maneira de mostrar como o dever é, principalmente, expressão de um ideal psicológico de conduta e valoração.

O vínculo ao dever é expressão de um desejo que nos sustenta na relação com um ideal do eu. Por isso, é incorreta a ideia de que o dever simplesmente se contrapõe ao desejo, como uma obrigação se contraporia ao impulso. O dever é uma figura do desejo. O que nos leva a admitir a ideia de que a obrigação é, no fundo, uma forma de amor.

De fato, toda mobilização psicológica de expectativas de gratificação, de reparações, de defesa contra situações de desamparo e, principalmente, de modelos fantasmáticos de ligações a outros na posição de autoridade habita nossos vínculos ao dever e à obrigação.

Podemos falar de “modelos fantasmáticos” nesse contexto porque, se há algo que a psicanálise nos ensinou, é que a internalização de um princípio de autoridade nunca se faz sem apoiar-se em fantasias que desenvolvi quando procurei superar situações de insegurança existencial e desamparo afetivo que marcam a vida de todo e qualquer sujeito. Fantasias que estão presentes quando pensamos no tipo de mobilização afetiva produzido pela imagem psíquica dos pais, dos líderes, dos educadores etc.

Para superar tais situações de insegurança existencial, faz-se necessário recorrer à produção de fantasias nas quais imagino que as submissões exigidas pela autoridade do outro são condições para alcançar uma forma de vida bem-sucedida. Tais produções fantasmáticas nunca desaparecem de nossa relação com todo e qualquer sistema de regras, normas e leis.

Conflitos entre deveres
Aqui vale a pena uma distinção. Há deveres e obrigações que sentimos como uma imposição externa. A respeito deles, não há muito que dizer, a não ser que os esquecemos na primeira oportunidade. Basta que alguém vire o rosto e todos esses deveres são soberanamente quebrados. Por isso, eles não colocam muitos problemas para uma reflexão sobre a natureza dos sentimentos morais.

No entanto, há deveres e obrigações que amamos porque expressam dimensões importantes de nossos ideais, das formas de vida com as quais nos identificamos e, principalmente, das pessoas que representam, para nós, o acesso a tais formas de vida.

Tais obrigações e deveres nem sempre estão de acordo com as estruturas normativas socialmente vigentes, mas eles nunca deixam de fazer alguma forma de referência a elas. Pois esses desacordos são, muitas vezes, a maneira que sujeitos particulares têm de expor conflitos de interpretação a respeito de critérios de julgamento que devem ter validade social.

Isso nos demonstra que o verdadeiro problema moral não está nas situações de clivagem entre deveres particulares e normas gerais. Ele está nas situações de conflito entre deveres. Tais situações existem; elas são como estar preso entre dois amores.

No fundo, elas resultam do fato de que, no interior de nossos ideais, pulsam disposições muitas vezes contraditóriadeais parecem entrar em colapso. E, quando eles entram em colapso, nossas ações só podem ser guiadas pelo cálculo das consequências. Só que, em tais momentos, não há cálculo mais incerto que este.

vladimirsafatle@revistacult.com.br

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