Amazônia, paraíso sob suspeição

Amazônia, paraíso sob suspeição
(Foto: Marcos Colón)

 

Muitos são os que preferem o mito, a metáfora e o fascínio da Amazônia em vez de considerar as realidades localizadas em seu território. A “invenção” da Amazônia pelo imaginário ficcional ou científico, tendo em vista os registros pré-coloniais, da mitologia indiana, da historiografia greco-romana e do confronto da mentalidade medieval com o século das Luzes, como documenta Neide Gondim, denota uma tendência quase genérica de abraçar a permanência do mistério, do quimérico, do onírico, do devaneio sobre a região. A tensão entre o homem e a natureza (leia-se “natureza e cultura”) não se resolve, persiste no processo de submissão ou dominação das forças naturais, recriando e revivendo o começo da história sem fim.

O caráter paradoxal outorgado à Amazônia ao longo dos séculos urge em nossos tempos uma revisão histórica. A metáfora aludida no título questiona a noção de Paraíso associada à região. Para muitos, a Amazônia é de fato o anti-paraíso. A suspeição se origina no fato de a floresta amazônica também ser referida como um “Inferno Verde”, como faz o escritor Alberto Rangel. A excepcionalidade da geografia se mostra como argumento de inadaptabilidade ao homem civilizado de sobreviver no trópico úmido. Doença e clima hostil condenavam à morte todos que se aventuravam a viver na região.

Apesar disso, o Paraíso Suspeito, como bem define Leopoldo Bernucci, situa-se num vórtice, um lugar de destruição contínua e natural, provocando a lenta e incansável devoração da matéria, não só do mundo vegetal, mas também do reino animal, inclusive do homem que nele habita. Ou seja, reinterpretando Bernucci por outra janela, a do pensamento ecocrítico, esse ambiente hostil natural é agravado pela hostilidade programada pela cobiça humana, nele tudo se destrói ou se transforma em “agrodollares” através de processos descritos como “violência lenta” nas palavras de Rob Nixon. Inferno Verde e Paraíso Suspeito se inscrevem nas relações próximas entre a literatura e a história, entre a ciência e a arte. Por isso os processos sociais e históricos são reais e imaginários; correspondem em cada cânone ou episteme a desenvolvimentos de processos de interpretação da realidade; desse modo, o contexto ficcional e científico é da mesma esfera da lógica da criação.

Navegando na fronteira entre ficção e realidade, a região amazônica torna-se varal interpretativo de fabulações míticas, redentoras, fantásticas, sagradas e profanas, que narram importantes transformações regionais com autonomia imaginativa. Daí que as “vozes” da ficção são tão impiedosas quanto o discurso científico, na opinião da pesquisadora Marilene Corrêa da Silva.

O desencantamento da Amazônia expressa-se como metáfora de mito ou de deslumbramento. Não se trata de dissolver a realidade subestimando o peso do concreto sobre a imaginação, mas de destacar as múltiplas representações e sentidos que a região pode assumir na diversidade de enfoques disciplinares e de linguagens científicas e artísticas que a narram. É por isso que as vozes científicas, frequentemente associadas às reconstruções arbitrárias da realidade podem ser tão cruéis quanto as vozes da ficção; estas podem radicalizar as percepções da Amazônia, ainda mais do que a apreensão mágica e mítica da composição ficcional. Nesta última, a “fabricação”, a autonomia da imaginação artística pode dissolver e reconfigurar fronteiras, sujeitos, espaços, relações natureza e cultura, reintegrar seres vivos, humanos e não humanos, sagrados, profanos em relações e fenômenos híbridos em novas relações recriadas conforme a estrutura imaginativa da obra, à semelhança do que Mário de Andrade elaborou em Macunaíma.

Como espaço físico e cultural, a Amazônia, conforme narra Ana Pizarro, possuía elementos que atuavam como dispositivos simbólicos no invasor, instigando nele conexões semióticas no imaginário, permitindo que comparasse com o que via, um universo mítico, que respondia às suas carências, expectativas, e necessidades físicas e espirituais; sendo posteriormente ratificado em suas narrativas. Portanto, quando as vozes literárias se fazem mais impiedosas é porque essa narrativa carrega a intensidade dos sentimentos entre as populações da floresta e os invasores, assim o destaque no conflito é mais nítido. Não obstante, é importante salientar que em ambas narrativas científicas e literárias são forjadas no contexto da intencionalidade política que se justificam finalidades discursivas.

Em março, durante minha última passagem pela cidade de Tabatinga, na fronteira do Brasil com Colômbia e Peru, observei no memorial de fundação da cidade uma inscrição de forte simbolismo: “Aqui começa o Brasil”. A frase também realça o contraponto de que a fronteira é o fim do mundo, remota, incivilizada, bárbara e entregue à própria sorte. Surge dessa máxima fundacional o discurso justificador de que a região deve ser submetida ao comando autoritário (comando e controle) o que resulta no incentivo à exploração predatória de suas riquezas. Outra faceta dessa narrativa origina-se da própria insígnia de Inferno Verde, que conduz à exploração imaginativa e política da região como um espaço liso e vazio, uma terra nula, que é a justificativa da violência: a forma de se impor como civilização.

Como ressalta o sociólogo Octávio Ianni, no princípio só havia natureza. Depois aparece o homem. Natureza e a cultura lutam e um se impõe ao outro, iguais, desiguais, desconformes. Logo o homem aparece como senhor da natureza, que não é mais a mesma do primeiro instante, mas está modificada. Logo, ao ser apropriada, ela se transfigura. Também o homem não é o mesmo. Ambos perderam a inocência e entraram para a História. Hoje, as marcas da violência lenta (que hoje já não é tão lenta) do ontem permeiam toda região e deixa o futuro de humanos e não-humanos em suspeição.

A atual indiferença e abandono das autoridades nacionais com a Amazônia não é novo em tempos de Covid-19. Para a autora de O Paiz do Amazonas, a região só serve de moeda de troca, sendo ela a feição mais imperfeita, injusta da Amazônia Lusitana. É uma formação social contrária à da Amazônia indígena no sentido de que prevaleceu o ordenamento do estado colonialista como princípio que norteia o Brasil amazônico e a nação brasileira como um todo. O que se constata das presentes agruras na região impingidas pelo Covid-19 é que a Amazônia paga para ser parte do Brasil: recebe menos do que dá em termos tributários e políticos e não consegue se inscrever nas prioridades nacionais. Como afirmam os autores Samuel Benchimol e Arthur Cesar Ferreira Reis, a indiferença e a negligência são estratégias para esvaziar o território, e como resultado muitos morreriam e a natureza se livraria das intervenções antrópicas.

A visão literária dos indígenas foi tradicionalmente romanceada entre a inocência e a perfeição para inclui-lo na imaginação nacional; a visão da ciência foi de estranhamento da cultura e da incerteza de sua humanidade; a visão econômica foi sempre de brutalização, entre a condição de animal, escravo ou súdito inferior. A visão literária do índio da Amazônia sempre foi ligada à dos bárbaros. Por Isso ninguém estranha que o Paraíso Suspeito consuma milhões de vidas. É importante ressaltar que a materialidade política da suspeição, como aponta Bruno Malheiro, emerge na Amazônia a partir da ideia de risco à soberania que justaposto à diferença abissal daquilo que significava nação ratificam a violência como normalidade e a exceção como regra. Tal suspeição que inventou o risco e o vazio amazônicos tem no uso da força e da violência de Estado sua materialidade histórica. Os suspeitos (humanos e não-humanos) parecem ter no uso da força sua única resposta.

(Foto: Marcos Colón))

Conjunções — Paraíso Suspeito e o Inferno Verde

Entre as diferentes narrativas contemporâneas, a concorrência entre os discursos literários e científicos desafiam a inteligência sobre a realidade pela ação de descrevê-la ou de transfigurá-la. Importantes para os leitores, ambas as abordagens, registram as disputas de prestígio intelectual e político em mais de três séculos de racionalização do conhecimento. O pavor do contágio intelectual, a distinção entre religião, ciência e arte, as regras da formação do espírito científico republicano, as razões da institucionalização disciplinar põem, ora em oposição, ora em conjunção, a crítica literária e a crítica científica do pensamento ocidental.

A Amazônia fez parte dessa invenção de posturas e cânones narrativos, uma vez que, no encontro da América com o Velho Mundo a sua fisiografia, seus povos e territórios passaram a significar o “anti mundo”, o que não era conhecido, sem parâmetro para descrição, o que estava posto como fora do sentido e do significado da lógica da racionalidade da ciência e da arte quinhentista. Essas circunstâncias põem no mesmo quadro mental as narrativas que descrevem a América, a inclusão de sua existência na criação artística do imaginário ficcional e nos desafios científicos de várias disciplinas em consolidação.

A presença do insólito e do inesperado mundo americano de “quase humanos”, e seus longínquos territórios e culturas igualmente estranhas, alterou profundamente as narrativas cientificas e artísticas. Uma valeu da outra para descrever e produzir explicações, com maior ou menor grau de factualidade. Tanto a ciência quanto a literatura auxiliaram-se reciprocamente na invenção da Amazônia. Ainda hoje os fatos e as dinâmicas que envolvem a região, ora adquirem feições literárias nos relatos científicos, ora expressam imagens objetivas na produção literária, ao modo das descrições da ciência. Ambas, no entanto, mesmo em disputas que tentam dissimular este “contágio intelectual,” são surpreendidas pela realidade na natureza e da cultura da região e dos desafios que sua condição histórica e ambiental põe ao mundo contemporâneo.

Ao longo dos processos de colonização e de nacionalização as narrativas literárias e cientificas inventaram a Amazônia para o mundo. O exercício dessa considerável influência atrai outras disputas narrativas sobre o que se conhece, e hoje, no contexto do drama da pandemia renascem as metáforas de distanciamento e estranhamento da região e seus intérpretes: os povos indígenas que nela habitam há mais de dez mil anos. O Inferno Verde e o Paraiso Suspeito são sínteses simultaneamente factuais e imaginativas da natureza do “trópico úmido” devastada pela voracidade do homem em trajetória de exploração dos povos, biomas, e ecossistemas da Floresta. O paraíso perdido adquire a condição de destino cruel para os amazônidas de hoje, carentes de cidadania e órfãos do Estado Nacional (o Estado ao qual aludimos não é apenas gerador de oportunidades e garantia de direitos, mas também o Estado monopolizador de violência pela força da lei e ordem, este o mais sentido). A condição de região inóspita não impediu a penetração do capitalismo pela hidrografia que corta territórios indígenas, reservas ambientais, municipalidades a dependerem, todos, dos processos de circulação de mercadorias e produtos do extrativismo.

Paraíso suspeito é o lugar do ocultamento da barbárie do abandono e da expropriação. Sob a cumplicidade do silêncio, milhões de vidas humanas são sacrificadas, desnaturalizadas de suas culturas e da adaptabilidade histórica aos ambientes sacralizados que produziram a humanização da natureza. Tanto a narrativa científica quanto a literária convergem em indicar, à denúncia é à reflexão, os conflitos e as contradições que a intervenção predatória sobre humanos e não humanos e recursos da Amazônia tem praticado por séculos.

A pandemia se agregará aos impactos de desaparecimento de centenas de povos, culturas, até mesmo de civilizações por epidemias, genocídios por disputas territoriais, e de mão de obra para escravização e servidão à logica capitalista. A exuberância da floresta encobrirá os vestígios e as evidências deste massacre político e sanitário? O jornalismo solidário estará ao alcance da tarefa intelectual de registrar a autoconsciência regional da crise?

A história recente da Amazônia é plena de episódios de brutalidade da conquista de “novas frentes pioneiras” que reiteram problemas de ontem e de hoje. Mas é no plano da exclusão dos direitos constitucionais e da morte física e cultural dos povos amazônicos que a região desperta os interesses mais contraditórios, contém as mais sórdidas justificativas do poder dos governos para “explicar” o abandono das populações amazônicas à própria desgraça que o próprio mundo civilizado produziu.

(Foto: Marcos Colón))

Novamente estão em jogo os registros literários e narrativos da pandemia na região. A conjunção desses relatos pode ajudar a desvendar as artimanhas do Paraíso Suspeito escondidas, nas entranhas da floresta mais um episódio trágico da oposição natureza e cultura criada pela ambição humana de riqueza e poder.

A Amazônia de agora não pode continuar sendo mitificada e menos ainda metaforizada pelas fabulações que a constituíram no imaginário da invenção eurocêntrica. O que está em jogo neste ambiente é a nossa própria existência, isto é: a vida de povos, sejam indivíduos ou grupos; populações regionais urbanas, rurais e indígenas. Além disso, temos os biomas e ecossistemas ainda preservados que serão destruídos pela predação econômica durante e depois da pandemia, pela diminuição de mercadorias para as cidades sedes dos municípios e pelo esvaziamento da circulação de pessoas e das oportunidades de políticas públicas em educação, saúde e trabalho.

Para além das narrativas científicas e literárias sobre a Amazônia, que leio com um olhar lento, nela encontram-se imaginários narrativos e de representações dos povos originários que nos oferece um novo repertório de ideias e me ajudam a pensar o mundo pós-pandemia. A Amazônia ocupa cerca de 61% do território brasileiro. Lá vivem 25 milhões de pessoas. São cerca de 300 etnias e 180 línguas — tudo isso são formas de vivenciar, experimentar, sentir e imaginar o mundo. Mundo este que está precisando de novas soluções para que toda a humanidade possa viver, finalmente, com algum bem-estar. O bem-estar civilizatório, afinal, nunca chegou para ninguém. Mas quem paga continuamente a conta do mal-estar na civilização tem sido, em primeiro lugar, a alteridade radical ao Ocidente que se configura no “indígena” e pode ser silenciada pra sempre? Em jogo está a sobrevivência de todos nós. Ao negligenciar outras perspectivas de leitura sobre região, sacrificamos as contribuições ancestrais dos povos da floresta e com elas outros “horizontes de perspectivas,” diferentes dos que nos foram apresentados.

O fim da Amazônia é o fim do coração da humanidade. E me refiro ao coração não no sentido biológico, como disse tantas vezes o senso comum substituído coração por pulmão. Coração no sentido poético. Coração no sentido em que imaginação poética e científica são forças que deveriam guiar os projetos de diálogo entre políticas públicas e os povos da floresta.

Marcos Colón é doutor em estudos culturais pela Universidade de Wisconsin-Madison, ensina e coordenada o programa de Português no Departamento de Línguas Modernas e Linguísticas da Universidade Estadual da Florida e diretor do documentário Beyond Fordlândia.


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