Amazônia asfixiada

Amazônia asfixiada
A Amazônia reassumiu destaque no cenário político global em razão do projeto genocida em curso (Foto: Bruno Kelly)

 

entre Porto Alegre e Manaus

Não parece novidade que a Amazônia brasileira esteja sob ataque, mas parece, mais do que nunca, importante colocarmos o coração vital do Brasil no centro das análises para explicarmos a letalidade brutal dos tempos em que vivemos. Um Brasil que nem mesmo o próprio Brasil é capaz de reconhecer.

Nas últimas semanas, a Amazônia reassumiu destaque no cenário político global em razão do projeto genocida em curso, o qual revelou mais uma de suas nuances de violência no colapso real do sistema de saúde da cidade de Manaus. A atualização desse projeto, dessa vez, operou por meio de um quadro agudo de asfixia provocada pela falta de oxigênio nos hospitais e nas redes de fornecimento, de maneira generalizada. Desde setembro, profissionais da saúde e epidemiologistas alertam para o aumento do número de casos de infecção na região decorrente da baixa rigidez do distanciamento social provocada pelo retorno precoce às atividades comerciais, e da flexibilização, por parte do poder público, das medidas de restrição e contenção do vírus.

A região metropolitana da capital do Estado do Amazonas, Manaus, que supera os 2,7 milhões de habitantes, é o centro da região Norte do país e corresponde estrategicamente como porta de acesso à maior floresta tropical do mundo e à população, predominantemente formada por povos originários, que nela habitam. Isso faz com que toda logística da região atravesse inevitavelmente a cidade, e que lá estejam centralizados os atendimentos a qualquer paciente acometido por doenças mais sérias, por acidentes graves. Ainda, somado ao descaso político nacional em relação à relevância da região, Manaus é geograficamente cercada por água, uma “cidade ilhada”, posição que intensifica a dificuldade atual de abastecimento de insumos minimamente necessários para o tratamento adequado em Centros de Tratamento Intensivo (CTI’s), assim como dificulta que a produção local de oxigênio industrial seja suficiente para atender a demanda de todo o Estado.

Já no início de 2020, quando a pandemia começava a avançar no Brasil, a cidade de Manaus e as regiões amazônicas foram as localidades que primeiro e mais intensamente sentiram o impacto do coronavírus. O sistema de saúde da região teve seu primeiro colapso já no início de abril quando produtos básicos não chegavam aos hospitais, o que resultou na maior taxa de mortalidade em UTI’s do Brasil. Conforme estudo recentemente publicado no The Lancet Respiratory Medicine, a taxa de mortes em pacientes que necessitaram intubação no Norte do Brasil foi de 80%, enquanto na região Sul foi de 15%. Essas taxas apontam para um recorte ainda mais explícito da desigualdade no país: a mortalidade entre pessoas de populações indígenas foi a mais alta, assim como entre pessoas pretas e pardas, em comparação às pessoas brancas.

 

Essa distinção não é um acidente
de percurso, não é por acaso.
Trata-se da programação política
do Estado brasileiro. Trata-se de
um projeto de extermínio
intensificado pelo atual governo
federal, mas decorrente da sucessão
de experiências de descaso com o
Norte do Brasil.

 

 

A região é tradicionalmente vista pelo próprio país e, em especial, pelos seus gestores, como área permanente de exploração extrativista e de devastação ambiental, algo como região “estratégica” pela matéria prima básica responsável a suportar os “grandes” projetos de “desenvolvimento econômico” do “Brasil do futuro” – como a catastrófica usina Belo Monte.

Inclusive, um dia antes do colapso total, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, esteve em Manaus e disse que a cidade era prioridade da pasta federal. Entretanto, voltou a falar em tratamento precoce com uso de medicamentos como a cloroquina.

Diante disso, a sociedade civil, compreendendo que o cenário de barbárie não era mero “acaso” e sabendo que a solução para a gravidade do problema não viria do poder público – seja municipal, estadual ou federal – passou a se organizar por meio de iniciativas coletivas de apoio a hospitais, a pessoas que estão se tratando em casa e, especialmente, a comunidades indígenas que vêm sendo diretamente atingidas pela total ausência de vagas no sistema de saúde pública.

As iniciativas se dão pelo levantamento de valores, através de doações e de arrecadação de produtos necessários, os quais são indicados pelos locais de atendimento, pelas famílias e por organizações diretamente envolvidas no enfrentamento do problema. Esses grupos de mobilização por doações e financiamentos coletivos começaram a agir em redes sociais como Twitter e Instagram. Vários deles representados por influenciadores digitais, artistas e afins, ao iniciarem campanhas de repercussão nacional. A partir disso, organizações indígenas, de forma autônoma, passaram a assumir um protagonismo ainda maior nesse contexto. Elas estão construindo iniciativas locais de tratamento e assistência, visto que, como não há mais leitos disponíveis nos hospitais, precisam encontrar mecanismos de cuidado imediato.

As doações recebidas de outros Estados eram encaminhadas exclusivamente à Secretaria de Saúde do município, fazendo com que muita gente continuasse desassistida. Por essa razão, as pessoas que organizavam as doações estão agora desenvolvendo iniciativas diretas nas localidades que mais necessitam de auxílio por meio da hashtag do #nortepelonorte.

Entre aqueles e aquelas que atuam localmente, Vanda Witoto, líder indígena, técnica de enfermagem e estudante de pedagogia, é quem tem recebido diretamente as doações para o Parque das Tribos. Ela e outras lideranças da região planejam criar o seu próprio “hospital de campanha” para atender os indígenas que moram no parque. O Parque das Tribos é considerado o primeiro bairro indígena de Manaus, onde vivem 700 famílias compostas por 80% de pessoas indígenas de 35 etnias.

Essas histórias se tecem nas beiradas – de porto a porto, de comunidade a comunidade – em que pessoas nortistas, ribeirinhas, amazônidas criam novas possibilidades de viver. São nos encontros dessas histórias e gentes que são criadas potentes organizações coletivas de luta por nossas vidas e pela vida de nossos parentes.

E se nos parece importante, ao viver o Brasil de hoje, colocarmos no centro as ofensivas contra a Amazônia e os povos indígenas, parece também aqui imprescindível afirmar que o corpo de um novo agora e da hipótese de um futuro está no território que dá forma a essas mulheres que reafirmam a potência de criação de um mundo passível de respiração.

O cenário é de horror. Entre nós que aqui escrevemos, a experiência de reivindicar por oxigênio é inenarrável. Entre nós que aqui escrevemos, a vivência do desamparo de um leito não disponível é material. Entre nós que aqui escrevemos, entre o Norte e o Sul do país, as palavras são como tomada de fôlego de quem hoje se sente sem ar.

Este texto é resultado de
uma parceria entre a Revista
Cult e a La Laboratoria:
espacio transnacional de
investigación feminista

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