Amanha, na batalha, pensa em mim
O arcebispo emérito da Arquidiocese de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns (Foto: Marcel Antonisse)
A ditadura militar esbarrou em Paulo Evaristo Arns logo no primeiro dia. Ou melhor, na véspera, porque na tarde de 31 de março de 1964 as tropas mineiras do general Mourão Filho desciam em direção ao Rio de Janeiro sem saber ainda no que iria dar a sublevação. Instalado há mais de dez anos na região de Petrópolis, o padre franciscano ouviu a notícia pelo rádio e decidiu ir ao encontro dos militares para questionar-lhes suas intenções.
Quarenta anos depois, ele lembra detalhes do encontro. “Levaram-me para dentro de um botequim e perguntaram o que eu queria. ‘Eu venho saber se vocês vão de fato tomar as coisas a sério e matar gente ou se vão simplesmente fazer um passeio no Rio'”, respondi. Então, eles me disseram: “Mineiro não é bobo, não mata a toa não. Mineiro deixa viver e também quer viver. Nós vamos andando enquanto a gente pode andar e não encontra resistência’. Aí eu falei que até Petrópolis não haveria resistência e que eles podiam ir para o Rio. Foi só. Eu não fui com ideologia nenhuma, não fui em nome de ninguém. Só queria evitar derramamento de sangue.”
Nas duas décadas que se seguiram, haveria outros encontros com os militares de 64 e o padre, já cardeal-arcebispo de São Paulo, se transformaria no mais ativo adversário enfrentado pela ditadura dentro do país. Na entrevista que segue, realizada em São Paulo, D. Paulo fala da atuação da Igreja Católica e do próprio papel no período, especialmente a partir do momento em que o Ato Institucional nº 5 escancara o caráter tenebroso do regime militar. Aos 82 anos completados em setembro do ano passado, com alguma dificuldade de audição e visão (esta recuperada após recente cirurgia), mas em boa forma, ele mantém o jeito pausado de falar.
Hábil, contorna dúvidas levantadas tanto pelo envolvimento de padres com a resistência armada quanto pela adesão ao golpe de parte da hierarquia católica. Há uma palavra mais dura contra seu antecessor na arquidiocese paulistana, D. Agnelo Rossi (“ele era muito cauteloso, para não dizer medroso”), logo atenuada por elogios ao antigo chefe. Em pelo menos dois momentos, D. Paulo destaca o ineditismo das revelações que faz. No primeiro, explica a própria participação na transferência de D. Agnelo, nomeado prefeito da Sagrada Congregação para a Evangelização dos Povos, em Roma. Abria-se o caminho para a Igreja de São Paulo assumir a liderança na denúncia das torturas. No segundo, conta como tomou conhecimento do único atentado preparado contra ele pela repressão policial-militar. Sua grande preocupação, entretanto, é afastar interpretações ideológicas e políticas na oposição que ajudou a Igreja a assumir. Nem teriam sido motivações religiosas, mas humanitárias. “Era uma situação que devia ser mudada no país.”
CULT– A Igreja Católica conviveu bem com os primeiros anos do regime militar e até estimulou o golpe ao apoiar ações como o movimento das senhoras católicas de São Paulo contra a “ameaça comunista” representada pelo governo de João Goulart. Havia de fato a possibilidade de o Brasil transformar-se numa nova Cuba? Houve alguma orientação do Vaticano ao clero brasileiro a respeito da crise institucional do país?
D. Paulo – O Vaticano não se manifestou nenhuma vez. Mesmo depois que me tornei bispo dentro da revolução, o Vaticano não se manifestou Eu falei com o papa (Paulo VI) e ele disse estar muito apreensivo com a desordem no Brasil. “Será que não dá para arrumar as terras, a distribuição de bens e rendas, de tal maneira que pelo diálogo se resolva, que não se precise fazer uma revolução? O que o senhor acha bom fazer?” Fu respondi que a Igreja não deveria tomar parte nem de um lado nem de outro. Mas deveria recolher sempre os feridos, na posição do samaritano e não na de um guerreiro. Eu voltei de Roma e montei imediatamente a Comissão Justiça e Paz com os melhores juristas de São Paulo. Era 1973. Fundei aquilo e nós socorríamos toda pessoa presa. Não passei uma noite sem ser acordado pelo telefone por uma família que estava já à frente do meu portão ou vinha às pressas para pedir socorro. Porque eles sempre prendiam à tarde ou à noite para não poder haver ajuda imediata às pessoas. Então, quando o pessoal era preso, imediatamente corria a voz: vamos para a Cúria! E a Cúria mandava essa gente para minha casa quando estava fechada à noite.
Com o AI-5, retiram-se todas as garantias e os direitos dos cidadãos e institui-se a tortura como método de investigação política. Tendo de enfrentar uma repressão feroz, opositores do regime encontram abrigo em organizações católicas. O que moveu esses religiosos?
Eu posso lhe contar um caso concreto, que elucida quase tudo o que o senhor pergunta. Um engenheiro, que não tinha nada de revolucionário, de repente foi preso por engano, porque estava escurecendo, e levado para o [Sérgio Paranhos] Fleury. Fleury tirou os dados dele e disse: “Senta na cadeira elétrica”. Ele mesmo descreveu tudo em 18 páginas. Então, eles ligaram as partes mais sensíveis do corpo à eletricidade e ele sofreu horrores. Depois, disse: “Eu queria dizer a eles que eu nunca fiz nada nem trabalhei em favor de política nenhuma, nem de esquerda nem de direita. Eu sou engenheiro e pronto, estou satisfeito com a minha família e com a minha profissão. E assim mesmo eles me torturaram durante 40 dias”. Aí, ele veio falar comigo e trouxe o relatório escrito. Eu disse: “Não, isso basta. É preciso que dois advogados de grande habilidade interroguem você para ver se está tudo certo, se isso combina com os dados todos que nós sabemos por fora e que sabemos por dentro também”. E era realmente a paixão de Cristo escrita por um engenheiro. Ele foi torturado e mandado embora depois de 40 dias porque perceberam que tinham se enganado. Isso acontecia mil vezes. Eu até disse um dia para o general Ednardo: Eu sei que vocês prendem grupos inteiros, de 60 e 70, e de lá vocês tiram oito ou dez que vocês acham que são realmente perigosos para vocês, no seu conceito. Ele respondeu: “É verdade, é verdade”. Aí eu perguntei: “E se eu for raptado, eu sei que são policiais, que são do exército e não bandidos?”. Ele me disse: “Ah, se for o senhor, o governador ou eu, nós três, então o senhor pode dizer: é o exército que nos está levando”. Ele próprio confessou que a perseguição se dirigia a todos os que defendiam justiça. Não se tratava, portanto, de motivo religioso nem de motivo político puro. Era por motivo humanitário. Era uma situação que devia ser mudada no país.
Em depoimento à Fundação Perseu Abramo, o senhor diz que se assustou com a promulgação do Al-5 e o possível endurecimento do regime militar. No entanto, já bispo auxiliar de São Paulo, tomou a decisão de agir, “embora com cautela”, em favor de seus amigos, “sobretudo os religiosos”, que estavam presos. O que o levou, pouco tempo depois, bem menos cauteloso, a superar o medo e transformar-se em um dos principais agentes da resistência e da denúncia da tortura?
O senhor cardeal naquele tempo se chamava Agnelo Rossi e ele era muito cauteloso, para não dizer medroso. Ele não permitia que os bispos auxiliares dele fizessem qualquer ato que tivesse aparência de política, fossem contra o regime. Então, eu não podia fazer nada. Só uma vez ele me mandou verificar se os dominicanos estavam sendo torturados e eu fui e vi a tortura com os meus olhos. Fora disso, ele nunca me mandou participar. Eu fiz isso espontaneamente, por amizade aos dominicanos e porque havia 17 religiosos e religiosas presos aqui perto do Carandiru, onde antigamente estava a prisão e hoje passa a avenida. Eu ia lá muitas vezes para visitá-los, dar conforto e celebrar a missa para eles. Depois que me tomei arcebispo, a
eu fiquei livre. Aí eu ataquei diretamente. Quando havia uma injustiça, eu tomava um carro e ia imediatamente para o comandante do II Exército, que cuidava de São Paulo e do Mato Grosso. la para o comandante e dizia “Tal, tal e tal pessoa – e mostra a lista – estão sendo torturadas neste momento e o senhor é o culpado”.
Oficialmente, as autoridades militares diziam não admitir a pratica da tortura. De que forma o conflito entre os fatos e a versão oficial prejudicou a defesa dos presos e, especialmente, a preparação do inventário Brasil: nunca mais [documentação transformada em livro da tortura praticada no país durante a ditadura], encabeçado pela Arquidiocese?
De fato, a lei dizia que não se torturasse e o próprio primeiro presidente militar, Castello Branco, era contra a tortura. Quando fui falar com o general Goldbery, com quem eu me encontrei cinco vezes por causa da tortura, ele sempre dizia que a linha dura formava um grupo dentro do quartel e esse grupo era fechado. E ele deu um exemplo. Um coronel estava vigiando a tortura no Rio quando chegaram aqueles que deveriam ser interrogados e, portanto, torturados, e, normalmente, mortos. De repente, entra o filho dele. O coronel deu um pulo da cadeira e disse: “Esse não!”. Aí todos os oficiais e outros torturadores que estavam ali disseram: “Senão for ele, vai o senhor”. De maneira que a regra era extrema, era observada em extremo. Isso me foi contado pelo general Golbery, o assistente do Geisel.
Em 1975, o confronto entre a Igreja e a ditadura chegou ao ponto máximo de tensão, com os assassinatos na prisão do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho. Nas manifestações e atos religiosos de protesto contra aquelas mortes, temeu-se por uma reação violenta da repressão. Em algum momento o senhor foi ameaçado fisicamente?
No dia do ato ecumênico eu fui visitado às 2 horas (da tarde) por três secretários do governador Paulo Egydio, a mando do presidente da República, o general Ernesto Geisel, que se encontrava em São Paulo. Eles quiseram me convencer a não participar do ato. De alguma maneira, eu deveria me retirar, mandar um substituto ou avisar que não podia chegar até lá. Que desse uma desculpa, mas não fosse. Então, respondi: “Onde a ovelha está perdida e sofre, o pastor deve estar mais perto e à procura. Eu vou estar lá e vocês não vão me impedir”. Os secretários eram meus grandes amigos e usaram o argumento definitivo: “Há 500 soldados na Praça da Sé, dentro daquela multidão, e quem soltar um grito leva um tiro”. Aí, eu respondi: “Nós organizamos de tal maneira a Praça da Sé que em cada janela tem alguém para fotografar. Quem atirar será fotografado, identificado e depois sofrerá as conseqüências”. Eles levaram um susto, porque não sabiam que estávamos tão bem organizados. E era verdade. Em todas as janelas havia alguém para fotografar e filmar para que a gente reconhecesse os rostos. Na catedral, o rabino Henry Sobel falou em nome dos judeus, eu em nome dos católicos e o reverendo James Wright em nome de todos aqueles que não aceitam o papa como chefe, mas que são cristãos. No centro do meu discurso, que o mandamento principal que Deus deu no Sião foi o não matarás. É o quinto mandamento. Portanto, a vida é o próprio Deus dentro da pessoa. Não é possível que se faça o que fez. Nós fizemos um ato unicamente religioso, não dissemos uma palavra contra o governo, contra os torturadores. Nós sabíamos que Herzog tinha sido morto por tortura e abafaram. Avisei o Goldbery à noite, antes do dia do enterro, e o Goldbery me respondeu: “Isso é uma traição, uma traição contra o governo, porque o governo não foi torturar”. Eu disse: “Não é. Foi o governo que torturou”.
Qual a diferença, do ponto de vista dos que lutavam pela defesa dos direitos humanos, de tratar com a ditadura sob os vários generais presidentes?
Cada governo devia ser tratado de uma forma. Eu falei diretamente com o Médici. Fui para Brasília para oferecer-lhe de presente uma encíclica papal, muito religiosa, muito bonita. Ele recusou e me disse: “Seu lugar é na sacristia. Meu lugar é defendendo os generais e ministros que são ameaçados de morte”. E gritou, gritou. Eu me levantei e disse: “General, eu agradeço que o senhor tenha me recebido, mas a verdade é essa. Em São Paulo, a tortura continua sendo cotidiana e fatal para a maior parte das pessoas”. Com o Geisel, eu tive alguns encontros. O primeiro, por intermédio de Golbery, na casa de um irmão de um bispo no Rio. Depois, eu fui procurá-lo por causa das terras da Amazônia, que estavam sendo tomadas pelos paulistas. Mais de 20 caciques se reuniram e pediram para eu fazer qualquer coisa. Eu telefonei para ele (sabia o telefone particular exclusivo dele) e perguntei se podia me receber. Cada vez eu levava um problema específico, ele me dizia assim: “Eu hoje gostaria de trocar o SNI pelas comunidades de base, porque elas dizem a verdade para o senhor e o SNI nos tapeia, engana”. E eu disse: “Eu também tenho prova disso. Tenho um caderno inteiro de mentiras deles a meu respeito. Mas com o Geisel eu tive muito pouco relacionamento. Ele não queria falar comigo, era muito duro para conceder qualquer audiência. Até não sei se isso está tão clara expresso, mas o senhor pode ver no terceiro volume da série do jornalista Elio Gaspari (A ditadura derrotada), que eu acabo de ler agora. Esse terceiro volume diz explicitamente que Geisel, um dia, reuniu cinco repórteres de grandes jornais e contou para eles tudo o que iria fazer. E eles perguntaram: “E com o arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, o que é que o senhor vai fazer?”. Ele respondeu: “Ele vai sentir o peso de minha mão”. Aí um deles pegou o avião e foi para Recife avisar D Aloísio, que na mesma noite veio para São Paulo e pediu: “Cuide-se, agora eles vão armar ciladas”. Mas a única cilada de que tenho relatório me foi preparada no Rio, quando eu ia do aeroporto para a Conferência Nacional dos Bispos, que ainda funcionava lá. Eu iria às 16 horas e mudei para as 14 horas e fui de táxi. De maneira que eles não sabiam em que carro eu estava viajando. Eles queriam provocar um acidente. Isso me contou um coronel do Exército, aliás médico, hoje falecido, em plena lucidez. Ele me que não revelasse o caso enquanto estivesse vivo, porque iria lhe prejudicar.
O senhor como um dos mentores do Movimento Brasileiro pela Anistia, ficou satisfeito com o modelo de anistia a que se chegou no Brasil, com o fim da ditadura e o restabelecimento da ordem constitucional?
Eu acho que a anistia foi a solução, mas ela não foi completa. Quer dizer, não podiam ser anistiados aqueles que mataram torturando, porque esse é crime inafiançável. Quem mata calmamente, friamente, tem de sofrer um processo e tem de sofrer também as conseqüências de seu ato. Isso nunca foi executado no Brasil como foi executado na Argentina com todos os generais. O Brasil fez uma anistia pela metade, mas nós ficamos contentes porque não houve derramamento de sangue.