Althusser, leitor de Marx

Althusser, leitor de Marx
O filósofo franco-argelino Louis Althusser (Divulgação/Arte Andreia Freire)

 

O ano era 1961. Jovens estudantes da École Normale Supérieure de Paris, intrigados com a leitura de artigos de um então desconhecido professor marxista, decidiram bater à porta de seu gabinete com um pedido de orientação teórica e filosófica. A academia vivia um período de ebulição e expectativa, ao lidar com o trauma aberto na França pela guerra na Argélia e com as notícias vindas da revolução comandada por Fidel Castro em Cuba.

O autor dos textos que provocara o grupo de estudantes era Louis Althusser, francês de origem argelina, então com pouco mais de 40 anos, ex-combatente durante a Segunda Guerra e desde 1948 membro do Partido Comunista. Intelectual que até o começo dos anos 1960 voltara suas preocupações ao estudo da interface entre cristianismo e marxismo, e sobretudo à crítica de Hegel no pensamento de Marx, ele então comandava seminários de estudos marxistas no famoso prédio da rua d’Ulm.

Professor algo obscuro, Althusser começaria a ingressar naquele momento no panteão histórico das ciências sociais. Com os primeiros artigos de Por Marx, que seriam editados em livro somente em 1965, ele já se desenhava como um dos intérpretes contemporâneos mais influentes do autor de O capital.

Ao lado daqueles alunos – entre eles, Étienne Balibar, Yves Duroux, Jacques Rancière e Jean-Claude Milner –, Althusser traçou um novo roteiro de seminários, estendido ao longo de três anos e que, em 1965, culminaria em Ler O capital, um dos clássicos da literatura marxista no século 20.

Reler Ler O capital é o que propõe o professor de literatura da Universidade de Princeton Nick Nesbitt, que organizou The Concept in Crisis: Reading Capital Today (O conceito em crise: ler O capital hoje, em tradução livre), editado pela Duke University e lançado em julho deste ano nos Estados Unidos. Nesbitt afirma que na leitura althusseriana de Marx se encontra um fecundo arsenal teórico para entender a engrenagem – histórica ou atual – da economia capitalista.

O livro aborda questões caras à filosofia de Althusser, como crítica da economia política, marxismo, história, ciência, ideologia, mundo contemporâneo e filosofia. É dividido em três partes, nas quais se desenvolvem artigos de 11 autores – entre eles, ex-alunos de Althusser e frequentadores do lendário seminário, como o filósofo Étienne Balibar.

Professor do departamento de literatura italiana e francesa e autor de livros sobre a Revolução Haitiana, Nesbitt sustenta que em Ler O capital estão postas questões essenciais do pensamento althusseriano e, por extensão, da própria reorganização teórica que ele provoca na crítica marxiana ao constituir a sintaxe de uma filosofia original: a crítica à totalidade expressiva de Hegel, às teleologias, ao humanismo, ao empirismo, à unicausalidade econômica, à ideia da intencionalidade da consciência, ao historicismo, a historiografias e a historiadores.

Mais de 50 anos depois de Althusser estabelecer-se como talvez o mais agudo leitor de O capital na segunda metade do último século, o retorno à sua leitura de Marx não se resumiria, afirma Nesbitt, a uma tarefa de mera curiosidade antiquária ou de interesse histórico diletante. O resgate de Althusser seria, sobretudo, uma investida de ação política contemporânea, atenta às especificidades do atual estágio do capitalismo, à espera de análises mais densas que balanços e análises de fundo puramente tecnicista.

Nesbitt argumenta ser mais necessário do que em qualquer outro tempo recorrer à crítica conceitual de Marx ao sistema capitalista e superar o que ele considera um fetiche neoliberal empirista e subjetivista de leitura superficial da economia, preocupado com dados quantitativos e variações episódicas. É no aparato teórico-conceitual – portanto, não restrito à materialidade empírica – mapeado por Althusser em Marx que estão forjadas, segundo Nesbitt, saídas para a criação de novas práticas políticas para o século 21.

Mas como Althusser leu O capital? Leu-o, sobretudo, como crítica conceitual, que escapava às amarras da análise histórico-empírica da economia, em diálogo estreito com os intelectuais franceses (como Jean Cavaillès e Georges Canguilhem) que recusavam o existencialismo fenomenológico como método científico, filiados ao que ficou conhecido como epistemologia histórica. A partir de distinções do objeto da ciência propostas por Baruch Spinoza (1632-1677), Althusser articula o pensamento de Marx a um renovado recorte epistemológico. Partia-se da ideia de que era possível, na leitura de um texto produzido em um momento histórico específico, separar o que era ideológico do que era conceitual.

Atlhusser poria, portanto, O capital no rol das obras fundamentais que o gênio humano já produzira, justamente porque conseguira tramar uma leitura não contingente a uma temporalidade restrita e sensível, portanto mais do que meramente historiográfica. Tratava-se de uma arquitetura conceitual – ou estrutura, conceito-chave para os marxistas – de um modo de produção econômica, não um apanhado generalista da economia capitalista no século 19. Contudo, Althusser sustentava que era necessária uma operação de leitura filosófica específica (que escapara, em alguma medida, ao próprio Marx) para compreender o fulcro conceitual de O capital.

O “continente-história” que Marx inaugura não estaria, pois, fechado em si mesmo, como teoria acabada: era a descoberta de um sistema de conceitos que abria uma possibilidade inaudita de compreensão científica da existência material, a ser explorada, diz Althusser, por uma leitura sintomal do texto original. Antes de Marx, só dois “continentes” haviam sido abertos à exploração da inteligência humana: o “continente-matemático” dos gregos do século 5 a.C. e o “continente-física” por Galileu no século 17.

Para além de – ou, antes, em direção contrária a – uma interpretação humanista teleológica da história, concebida como uma locomotiva invariavelmente tendente a um futuro sem classes antagônicas (próprias da produção idealista do jovem Marx de Manuscritos econômicos e filosóficos ou de O Manifesto Comunista), Althusser concentra-se na dissecação do aparato teórico expresso em O capital, na qual encontrara uma ruptura epistemológica fundamental com as obras da fase “ideológica” de Marx.

Estaria ali um fundamento mesmo de uma nova ciência, na qual os processos estruturantes da existência social estariam contidos num paradigma histórico impessoal e independente de condições subjetivas, fenomenológicas ou existenciais, então sustentadas por teóricos como Jean-Paul Sartre.

Compreender Marx não apenas pela via político-histórica, mas sobretudo por uma chave de leitura filosófico-conceitual, foi, aliás, preocupação recorrente na literatura contemporânea anglófona, que encontra em Time, Labor and Social Domination: A Reinterpretation of Marx’s Critical Theory (1993), de Moishe Postone, uma referência basilar. O que Nesbitt procura é relançar luzes sobre o talvez hoje negligenciado flanco original francês de inflexão estruturalista de leitura marxista – que não se confundiria, por exemplo, com a abordagem desenvolvida pelo cientista político alemão Michael Heinrich, autor de uma biografia recente do autor de O capital.

Esse relativo esquecimento poderia ser resultado involuntário de uma desconfiança ou da interdição causada pelo percurso biográfico trágico de Althusser – com crises de depressão severa e acessos psicóticos, frequentador rotineiro de clínicas psiquiátricas ao longo de quase toda a vida adulta, em 1980 ele matou por estrangulamento a mulher, Hélène Rytmann.

À debacle da vida pública (Althusser chegou a ser preso, mas foi julgado mentalmente incapaz de responder pelo crime) seguiu, ao menos nos círculos de língua inglesa, um gradual esquecimento daquela produção clássica estabelecida a partir dos anos 1960, que continuava a compor, no entanto, o cânone da crítica intelectual marxista do século 20 (bastaria lembrar, além de Por Marx e Ler O capital, o também clássico trabalho sobre os “aparelhos ideológicos do Estado”, lançado em 1971).

Nesbitt, portanto, tenta recuperar Althusser da obscuridade e refazer a leitura sintomática de O capital, no qual ele afirma vigorar uma originalidade perene como ângulo de leitura da realidade contemporânea, passado um século e meio da publicação do seu primeiro volume.

Como método e arquétipo de leitura e análise da realidade sócio-histórica, o livro-base do pensamento marxista continua a inflamar paixões e a despertar, quase sempre ao largo de uma leitura minimamente detida, louvações ou imprecações desmedidas.

Mais do que dele se acercar como panfleto revolucionário ou análise temporal de uma realidade histórica, o convite de Ler O capital é um chamado a tatear as possibilidades abertas por um sistema de conceitos engendrado por Marx, capazes de servir de quadro conceitual do capitalismo contemporâneo, concebido como fase específica de um sistema estrutural.


LUÍS COSTA é jornalista e doutorando em História pela UFRJ

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