Ainda em torno de gênero, sexo e o que (e como) precisamos fazer

Ainda em torno de gênero, sexo e o que (e como) precisamos fazer
Joy Hester Love, 1949 (Foto: Heide Museum of Modern Art/Divulgação)

 

A primeira consideração que me ocorre, neste segundo tempo do debate em torno da existência ou não de heterossexuais, refere-se menos ao conteúdo das formulações propostas e mais à forma que este debate deve ter para que possa valer a pena, visto que muitas vezes os múltiplos impasses e enigmas surgidos acabam circunscritos a uma querela entre supostos identitaristas e ditos universalistas.

Tal oposição me parece não apenas insuficiente, mas principalmente falsa, além de servir muito mais para por um ponto final ao debate do que para alimentá-lo. Por um lado, a lógica identitária claramente já nos revelou suas armadilhas – escrevo sobre isso há pelo menos 20 anos e ainda assim acredito que cheguei atrasado ao debate. Por outro, parece-me difícil pensar em uma proposição de caráter universal que não se converta rapidamente em discurso de poder.

Sobre os temas em questão, podemos recomeçar pelo insistente lugar das identidades em nosso mundo contemporâneo, em relação ao qual creio ser preciso ir além do reconhecimento do seu valor político circunstancial e do essencialismo estratégico – como nos diz Gayatri Spivak – que o acompanha: precisamos entender por que a afirmação de uma suposta essência ou de fronteiras intransponíveis entre indivíduos ou grupos foi naturalizada. O que implica considerar, em nossos debates como em nossas lutas, a força da racionalidade identitária que organiza nossos modos de relação consigo e com o outro desde a modernidade, nos seus vínculos tanto com a razão instrumental e o modo de produção capitalista e sua expansão colonizadora quanto com as disciplinas que foram se construindo no mesmo quadro histórico, dentre elas a própria psicanálise. Afinal, as armadilhas identitárias estão postas e não creio que algum de nós esteja livre do risco de cair nelas.

Não se trata, portanto, de defender o uso estratégico da identidade, como se isso coubesse apenas a certos grupos menosprezados, mas de reconhecer que a identidade é a modalidade hegemônica de subjetivação, que ainda define os limites das formas atualmente possíveis de existência, para gregos e troianos.

O que não significa de modo algum perder de vista a particularidade de experiências singulares. É evidente que as experiências de gênero, prática sexual, raça e classe social são distintas e ordenadas por diferentes dispositivos e mecanismos de opressão, bem como são lugares de potências singulares de resistência às dinâmicas e relações de poder. Contudo, não se pode negligenciar que as operações de subalternização e de silenciamento que envolvem tais condições – as quais aprendemos a designar como minoritárias – se entrelaçam, se sobrepõem e se reforçam mutuamente. Isso já está em muitos livros, mas basta conversar numa mesa de bar com uma mulher trans negra e homossexual para saber.

Ainda em relação especificamente à questão da identidade e dos movimentos identitários, talvez seja interessante pensar que o desacordo, neste debate, provavelmente não está na crítica à racionalidade identitária, mas no modo como procuramos superar tal racionalidade, se queremos demolir as suas bases (o que implica identificar quais são essas bases, inclusive aquelas que habitam nossos sistemas teóricos).

Certamente a valorização de operações de desidentificação é relevante e provavelmente será fundamental à produção de novas subjetivações – ainda que prefira continuar a conceber esse trabalho como a retomada de identificações contingentes e transitórias.  Precisamos, no entanto, discutir mais quais seriam as suas condições de possibilidade e também os efeitos políticos e subjetivos dessa recusa a identificar-se em cada caso particular.

Nada mais legítimo ou admirável, por exemplo, do que recusar a participação no regime sexual vigente, marcado por divisões binárias que se sustentam mutuamente, mas talvez a própria necessidade deste ato político e subjetivo de recusa implique o reconhecimento de que o dispositivo normativo está em pleno funcionamento e não é apenas hegemônico, é assiduamente supremacista.

Ou seja, a recusa em participar da ordem heterossexual não significa, a meu ver, que heterossexuais não existam; ao contrário, a heterossexualidade tanto existe que é preciso rejeitá-la (como de algum modo preciso me recusar a ser o homossexual-tipo definido pela medicina, pela indústria cultural e também pela própria psicanálise).

Não se trata, evidentemente, como bem apontam Helena Vieira e Yuri Fraccaroli, de supor qualquer dimensão ontológica seja da orientação sexual seja da generificação do corpo, mas de reconhecer que ainda que se trate em última instância de tecnologias, estas não apenas agem sobre corpos e sujeitos, mas sobretudo os produzem.

Aqui se faz inevitável tocar no ponto talvez mais sensível do debate com Vladimir Safatle, quando ele me acusa de ser violento – e talvez o tenha mesmo sido. Efetivamente, não faz muito sentido operar nenhum outing às inversas e se o nomeei heterossexual é para destacar o fato de que estamos todos, em nossos corpos e em nossos saberes, submetidos a essas categorias.

Não posso, contudo, deixar de pensar que se Vladimir tem a opção de não se encaixar, de recusar tal posição normativa, ou mesmo renunciar ao poder decorrente de ocupá-la, essa possibilidade não é dada a todos que transitam pelos territórios definidos pelas normas sexuais e de gênero vigentes, muitas vezes caracterizados por fronteiras bem marcadas e sempre vigiadas. Basta pensar no que significa para uma pessoa dissidente de gênero, ainda hoje, recusar a qualificação de transexual e ter que, por exemplo, só de início, abrir mão de qualquer acesso à rede pública de saúde.

Outro ponto importante é o que entendemos como ‘vivência concreta do sexual’.

Apesar de estar presente no primeiro artigo publicado por Vladimir e ter se deslocado para o título da sua tréplica, para mim ainda não está claro o que devemos compreender por esse sintagma e seus elementos constituintes. Não só me refiro ao sexual – que pode ser o de Lacan, Freud ou Laplanche, ou mesmo aquilo que Foucault circunscreverá no dispositivo de sexualidade –, mas sobretudo ao que deve ser qualificado de concreto, pensando ainda o que tal adjetivo pode implicar de hierarquia entre diferentes vivências ou interpretações relativas ao sexo.

 

Em termos mais específicos:
por que devemos supor que
fantasias, circuitos de afetos
e dinâmicas de gozo
constituem uma vivência do
sexual mais concreta do que
práticas corporais ou
performances circunscritas
por injunções sociais?

 

 

Tal interrogação sobre o que entendemos sobre concretude tem, ainda, ressonância nos termos que escolhemos, de modo que, ainda que de início tal pergunta pareça banal, é preciso fazê-la: estamos falando de heterossexuais, d’O heterossexual ou de heterossexualidade? O que podemos propor como não existente, A relação sexual ou as relações sexuais?

Por fim, um tema que sempre me interessa ver desenvolvido se refere à questão da verdade, do estatuto do saber produzido pela psicanálise e, mais do que isso, da posição de enunciação que assumimos quando pretendemos dar a nossa contribuição intelectual à luta política e à transformação das estratégias que pactuam a realidade.

Se quisermos efetivamente superar nossas pequenas diferenças – com seu inevitável e nem sempre pequeno narcisismo – é preciso estabelecer um programa de ação minimamente comum, o que só será possível com a livre circulação de interpretações concorrentes e não com a afirmação soberana de uma razão superior. Da luta política ao trabalho teórico, se quisermos efetivamente, ao menos a partir de um certo ponto, privilegiar as aproximações, mais do que as diferenças, até para evitar uma deriva identitária – a afirmação de si a partir da desqualificação do diferente ou discordante e pela demarcação de fronteiras incontornáveis entre o eu e o outro – é vital reconhecer a pertinência de interpretações concorrentes, pois só tal reconhecimento pode nos fornecer a base a partir do qual uma aliança pode ser construída.

Isso significa sim, lidar com gramáticas diferentes, seja para aprender a usá-las seja tão somente para recusá-las. É nesse confronto de gramáticas, nessa confusão de línguas, penso, que as posições que as sustentam são postas em xeque e discursos de poder podem ser desestabilizados, perdendo então a naturalidade conquistada. Por outro lado, o modo como suportamos esses confrontos, sem desqualificar o nosso interlocutor ou mesmo oponente, também nos dará a medida do quanto estamos dispostos a encontrar aliados e produzir um comum em meio ao dissenso; comum que nos permitirá sustentar outros modos – quem sabe mais belos ou deliciosamente feios – de vivermos juntos.

Especialmente no que se refere ao trabalho teórico, é preciso, ainda, encontrar níveis intermediários de abstração que permitam a mediação entre a sofisticada elaboração de certas formulações – necessárias muitas vezes para que novas inteligibilidades se produzam e outras leituras do real se façam possíveis – e a experiência cotidiana de nossas vidas banais. Para que não fiquemos presos aos circuitos fechados da metafísica nem ao imediato do fenômeno em sua tautologia.

É preciso, sobretudo, a meu ver, encontrar formas e posições de enunciação que não percam de vista certa dimensão cotidiana dos embates. Ao mesmo tempo que se faz necessário transformar essas outras inteligibilidades, que nos esforçamos em produzir teoricamente, em novas práticas situadas.

No que se refere à psicanálise, isso implica ao menos algum nível de autocrítica quanto ao estatuto de verdade que pretendemos atribuir à nossa forma de compreender o mundo e a experiência subjetiva, pois não creio que seja interessante supor uma soberania do saber psicanalítico, a qual refletiria imaginariamente a soberania do Inconsciente.

Por fim, encerrando minha contribuição a este debate, quero agradecer ao Vladimir por ter respondido tão rapidamente à minha provocação e também a oportunidade de continuar pensando, buscando questões, mais do que apresentando respostas. Agradecer também a Helena e Yuri, que puderam destacar outras perspectivas e vozes em um debate que certamente não pode ser monopolizado por lacanianos ou por quem quer que seja.

Eduardo Leal Cunha é Psicanalista, Doutor em Saúde Coletiva (IMS), Professor do Departamento de Psicologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe e Pesquisador Associado do Departamento de Estudos Psicanalíticos da Universidade de Paris.


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