Uma agenda antitrans? O conservadorismo bate à porta
Parte 1
Começamos este ano celebrando a histórica eleição de duas travestis para o Congresso Nacional, a Deputada Federal Erika Hilton (PSOL-SP) e a Deputada Federal Duda Salabert (PDT-MG), ambas com expressivas votações em seus estados, sem contar a eleição de deputadas estaduais neste pleito e de vereadoras. A eleição de travestis e transexuais certamente é resultado das lutas e reivindicações históricas dos movimentos de travestis e transexuais por direitos no Brasil.
Como uma vez me disse Indianare Siqueira, militante transvestigenere do Rio de Janeiro: é importante lembrar que as travestis cidadãs que hoje ocupam a universidade, o mercado de trabalho e a política são filhas das travestis putas, que lutavam por direitos ao mesmo tempo em que resistiam na prostituição, enfrentando a fúria de uma sociedade conservadora e transfóbica e a truculência de policiais e pais de família. Seguindo então este conselho, de lembrar daquelas que vieram antes, cito as fundamentais Keyla Simpsom, Jovanna Baby, Janaína Dutra, Indianare Siqueira, Thina Rodrigues e tantas outras cujas vidas e lutas pavimentaram o caminho até este momento em que começamos a acessar novos lugares.
Apesar da importância desses fatos e de suas conquistas, como a possibilidade de retificação de nome e sexo diretamente no cartório, dispensando um longo e exasperante processo na Justiça, é preciso que estejamos atentas, pois atravessamos um delicado e potencialmente sombrio momento histórico, em que o sonho dourado de nossas democracias se vê de joelhos frente ao neoliberalismo, que precariza a vida de todos, mas, principalmente, precariza a vida dos mais precários. Na fúria neoliberal pela redução do Estado e pela austeridade, são as populações que ocupam lugares minoritários no campo da representação política que primeiro sucumbem, porque são, do ponto de vista do Estado neoliberal, descartáveis.
Simultaneamente, como bem nos lembra Paul Preciado no prefácio escrito para o livro de Suely Rolnik Esferas da insurreição:
A inesperada aliança das forças neoliberais e conservadoras tem a ver com o fato de ambas compartilharem uma mesma moral e um mesmo modelo de identificação subjetiva: o inconsciente colonial-capitalístico. Daí que os alvos da nova “perseguição neoliberal às bruxas” sejam os coletivos feministas, homossexuais, transexuais, indígenas ou negros, que encarnam no imaginário conservador a possibilidade de uma autêntica transformação micropolítica.
Chamo atenção aqui para a aliança entre o neoliberalismo e o conservadorismo, ou seja, para a dupla ação destas forças na captura e na destituição de nossas lutas, sobretudo dos sujeitos que, vivendo outros modos de vida, apontam para um horizonte que escapa à cis-hetero-colonialidade. Muito se tem dito, entre progressistas e movimentos de esquerda, sobre os riscos de captura e intrusão liberais em nossas pautas e lutas, na transformação de nossos direitos em mercadoria, em capital de distinção, em um shopping da diversidade.
Frente a esse risco, temos insistido cotidianamente que precisamos pensar não apenas em uma categoria de opressão ou em um aspecto constituinte de nossas realidades violadas, mas na coextensividade de gênero, raça e classe e seus desdobramentos e significantes. Contudo, alheios à aliança entre conservadorismo e neoliberalismo, pouco temos dito da captura conservadora que cresce como erva daninha em meio aos nossos coletivos progressistas e de esquerda.
Observamos com os dedos em riste ao levante conservador da direita pelo mundo e o atribuímos, em parte, a uma reação às conquistas dos ditos novos movimentos sociais e, de outro lado, a uma resposta à instabilidade de mais uma das crises do capitalismo. O que não percebemos é que crescem os discursos que culpam as reivindicações por reconhecimento pelas derrotas sofridas pela esquerda política mundo afora.
Cresce em nosso meio um feminismo carola, que bem poderia ser representado pela beata Perpétua, personagem de Jorge Amado, que se opõe ao direito das trabalhadoras sexuais, que se opõe aos direitos das pessoas transexuais e travestis e que tem se dedicado a contar mentiras a fim de convencer os incautos de que os direitos das mulheres transexuais e travestis estariam em contradição e reduziriam os direitos das mulheres cis. Com um linguajar repleto de signos da esquerda e progressistas, estas feministas antitrans se infiltram em nossos movimentos políticos, ganham a adesão através de polêmicas e meias-verdades.
Observamos o backlash masculino e cis-heterossexual no interior dos partidos de esquerda, escondido sob o manto da crítica a um suposto identitarismo que seria próprio das militâncias LGBTQIA+, feministas e negra, e que representaria a face máxima da intrusão neoliberal, porque seria calcado em conquistas e direitos individuais e colocaria a identidade como centro da ação política, em detrimento das questões econômicas que impactaram efetivamente a vida das pessoas mais pobres.
Acusam estes movimentos de assustarem a classe trabalhadora e os responsabilizam pela pouca popularidade da esquerda política organizada. Tais acusações, que resumi a grosso modo, não passam de uma tentativa de marginalizar os movimentos no interior das disputas políticas nos campos progressistas e, assim, marginalizando negros, travestis e mulheres, garantir a inquestionabilidade do retorno masculino, do retorno do sujeito sem identidade e que se define apenas em função de sua classe social, como se a noção mesma de consciência de classe não fosse uma operação de identidade.
São sutis as formas de intrusão do discurso conservador e masculinista em nossos espaços. Um exemplo disso: a chacota constante que se faz de uma suposta “esquerda cirandeira”, de uma esquerda que ridiculamente fala com poesia e com arte, de uma esquerda que não é bélica. É sutil, mas o que se faz é a rejeição de formas de ação política que não estejam baseadas na gramática branca e masculina do bélico e do viril. A crítica à lacração e à redução de qualquer queixa deste tipo ao lacre só funciona tão bem porque vem carregada da homofobia que condena o espalhafatoso gay cheio de pinta.
Naqueles momentos em que nos dizem “calma, não fala disso agora” para facilitar o diálogo com evangélicos e ressaltam a importância de dialogar com eles, a quem culparão se isso não for possível? A nós. Culparão os socialmente marcados como marginais e inferiores, porque qualquer culpa direcionada a nós funciona.
Se tivemos muitas conquistas e as coisas parecem estar ficando melhores, é preciso que mantenhamos a guarda em alta. Há um levante conservador mundo afora que se expressa, neste momento, em uma dura agenda antitrans. Do Reino Unido, passando pela França e Estados Unidos, temos visto a redução de direito das populações trans e travestis. No Brasil, observamos os muitos projetos de lei que propõem a redução de nossos direitos e a precarização de nossas vidas.
Divido este texto em duas partes: nesta apresentei o cenário no qual nos inserimos e os atores políticos envolvidos nos processos de construção de uma agenda antitrans no seio da esquerda e dos movimentos progressistas. Na segunda, elencarei e explicarei cada uma das falácias utilizadas por estes grupos em sua retórica antitrans.
Helena Vieira é escritora e transfeminista.