A subversão pelos dejetos

A subversão pelos dejetos
Fefa Lins, Exposição, 2020. Óleo sobre tela.

 

O filósofo trans Paul B. Preciado tem se destacado nos últimos anos pela maneira de articular estudos queer, transfeminismo e pensamento decolonial para interrogar as estruturas de poder que organizam a sociedade ocidental. Ao se endereçar a nós, psicanalistas, em uma jornada da Escola da Causa Freudiana (Paris, 2019), o filósofo nos incita, por seu estilo polêmico, a uma tomada de posição em relação às normas binárias da tradição hétero-patriarcal-colonial e às formas de vida mutantes que interrogam nossas gramáticas de enquadramento do humano. Mas como prosseguir a conversa sem cair nas armadilhas que o próprio endereçamento e estilo provocam?

As multidões queer surgiram nos Estados Unidos, ao longo da década de 1980, como uma aposta política que se organizava em pelo menos duas vertentes. Por um lado, elas denunciavam a sociedade cis-heteronormativa, que, em meio à epidemia da aids, considerava descartáveis as vidas que não se adequavam às normas sexuais hegemônicas. Por outro lado, criticavam também uma parcela da comunidade gay que teria se incorporado aos ideais do capitalismo estadunidense, deixando de lado outros dissidentes de gênero e sexualidade em favor da ilusão de assimilação que marcadores sociais como a branquitude e o poder de consumo lhes forneciam.

À medida que mais e mais homens gays brancos, de classe média alta e com empregos estáveis acreditavam fazer parte da sociedade cis-heteronormativa contra a qual se haviam originalmente insurgido, tal operação de inclusão – certamente ilusória, porque a epidemia da aids logo os lembraria de que ainda eram considerados aberrações – deixava como resto um conjunto de corpos que não se adaptavam a esse novo padrão. Pessoas trans e travestis, homens gays negros, lésbicas chicanas, entre outras tantas formas de vida que não se encaixavam nesse ideal gay, eram relegadas ao lugar de resíduo abjeto, objeto-dejeto do social.

Nesse contexto, o que particularizou o movimento queer não foi propor ideais identitários alternativos. Pelo contrário, o movimento se serviu de sua condição de resto para interrogar os ideais sociais que prescreviam que sua sobrevivência estaria condicionada a uma adequação a certos padrões cis-heteronormativos de identidade. As multidões queer interrogavam o próprio ideal de normalização que havia permitido a incorporação de parte da comunidade gay aos padrões estadunidenses. Com esse gesto, elas reivindicavam a possibilidade de existir como seres “fora da norma”, que não precisam orientar-se por ideais hegemônicos para poderem viver uma vida digna.

Nessa direção, a operação queer parece ter sido convocar a sociedade cis-heteronormativa a reconhecer que a norma não se constitui sem deixar restos ou sobras, configurando não apenas o brilho de seus ideais, mas também os campos de abjeção. Assim, tratava-se de evidenciar que a verdadeira subversão da norma talvez não se desse pela via festiva do ideal, mas antes, quem sabe, pela via dos dejetos. O que estava em jogo era mostrar de que forma a sociedade ocidental, ao erigir seus ideais de cis-heterossexualidade e de branquitude, expunha (e ainda hoje continua a expor) à violência e à morte toda uma parcela da população não branca, não cis e não heterossexual que não se enquadrava nos parâmetros normativos que reconhecem alguém como ser humano.

Mas, junto com esse aspecto, podemos considerar que a abjeção aponta para uma estranheza íntima nos processos de normalização social: se a norma precisa ser constantemente reiterada por meio da contínua exclusão desses sujeitos-abjetos para assumir uma aparente consistência, talvez isso revele que, no fundo, a norma é também falha em seu interior, onde poderíamos supor o conforto de uma vida dentro dos parâmetros normativos de subjetivação. Se a norma produz (e é produzida por) ideais, mas mesmo seus sujeitos fracassam em alcançá-los plenamente, isso significa que ela é parasitada internamente por alguma coisa que não funciona tão bem, algo que faz fracassar sua plena materialização. Não seria preciso, então, situar os fenômenos sociais da violência homotransfóbica e racista como uma tentativa ilusória de dar consistência a um conjunto de normas que é, desde sempre, furado, inconsistente, incoerente? Uma tentativa de eliminar a diferença encarnada pelo Outro, mas que fracassa em reconhecer a alteridade íntima do próprio sujeito, que a psicanálise recolhe a cada vez?

Talvez tenha sido essa mesma inquietação que conduziu o filósofo Tim Dean a afirmar, não sem uma dose de provocação, que a teoria queer começou com Sigmund Freud. Não é à toa que a obra do psicanalista serviu tão bem a alguém como Judith Butler para mostrar, com o conceito de melancolia de gênero, que a própria heterossexualidade normativa pode ser constituída pelo resíduo de desejos homossexuais não reconhecidos como tais. Relendo uma série de textos freudianos, Butler propôs a hipótese de que a heterossexualidade normativa acaba por incorporar o amor pelas pessoas do mesmo sexo/gênero em seus processos de identificação: ao afirmar sua heterossexualidade pela recusa radical de qualquer indício de homossexualidade, o sujeito se torna o homem (ou a mulher) que “nunca” amou ou nunca pôde amar. Essa estratégia, no entanto, preservaria a homossexualidade no interior mesmo da “identidade” heterossexual, sem que o sujeito se dê conta disso.

Dessa maneira, um importante eixo partilhado entre a psicanálise e os estudos queer reside em evidenciar que a própria heterossexualidade não é tão heterossexual quanto poderíamos supor. Não foi Freud quem, em 1905, argumentou que a pulsão sexual não seria, de início, ligada a nenhum objeto específico, de modo que cada sujeito teria uma predisposição à bissexualidade? E ainda que a pulsão teria, por estrutura, um caráter perverso-polimorfo, com a consequência de que a unificação da satisfação sexual em torno dos genitais seria um processo sempre inacabado? Como resultado, a heterossexualidade – ou mesmo qualquer posição sexuada – só poderia ser alcançada de maneira precária, ao cabo de um longo processo que não acontece sem deixar restos, pois ela é sempre atravessada por identificações e desejos incoerentes em relação ao ideal que a organiza.

Nessa direção, como afirma Jacques Lacan, o que a psicanálise recolhe é o fato de que, “mesmo entre as pessoas mais normais e no interior da aplicação plena e inteira, e de boa vontade, das normas, bem! Isso não funciona”. Há alguma coisa que não vai bem no interior da norma, apontando para um fracasso estrutural na sexualidade humana.

Parece ter sido justamente essa a constatação de Freud quando escrevia seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade como resposta à psicopatologia de sua época, que buscava segregar as ditas “inversões sexuais” como “aberrações”, em oposição a uma pretensa normalidade heterossexual. O que a clínica ensinava ao psicanalista, pelo contrário, é que a “perversão” (entendida como um modo de satisfação pulsional que não está orientada pela genitalidade reprodutiva) não era exceção, mas regra. A própria sexualidade humana deveria ser considerada como aberrante, na medida em que a pulsão sexual é estruturalmente desviada, tanto do ideal biológico da reprodução como do ideal cultural da heterossexualidade – fato que levou Butler a falar de um “movimento queer da pulsão” –, uma vez que não há nenhuma norma a priori capaz de determinar a qual objeto a pulsão irá se ligar. Seus objetos não são nem mesmo inteiramente determinados pelo gênero: podemos desejar alguém por um certo brilho no olhar, uma modulação específica da voz, um sorriso, um jeito de andar, a performance sexual, um traço enigmático que nos lembra outra pessoa (“mas quem seria mesmo?”), entre outras tantas formas possíveis da causa do desejo que não podemos prever de antemão e que podem transitar entre os mais variados gêneros.

Fefa Lins, Quando o tesão passa, 2019. Óleo sobre tela
Fefa Lins, Quando o tesão passa, 2019. Óleo sobre tela

Por envolverem a dimensão do inconsciente, nossos modos de gozo nem sempre são coerentes com nossos ideais, e o desejo frequentemente nos surpreende com sua irrupção inesperada em objetos que talvez preferíssemos não desejar. Não é disso que se trata em Grande sertão: veredas, quando Riobaldo se vê apaixonado pela delicadeza de Diadorim, que se apresentava como um jagunço de seu bando? Se não tivermos em mente o caráter queer da pulsão, que pode se ligar a objetos que não fazem parte da representação narcísica que o sujeito tem de si mesmo e de seu desejo, como dar conta do fato de o Brasil ser, ao mesmo tempo, o país que mais mata travestis e transexuais e também o que mais consome pornografia vinculada a essa população? Assim, cabe pensar a violência a partir da falha estrutural da norma – e dos efeitos de angústia que ela produz – ao tentar conformar seus sujeitos aos ideais que veicula.

Diante disso, a psicanálise produz o reconhecimento da dimensão abjeta do gozo que faz parte de cada um de nós, fazendo ver que mesmo a heterossexualidade é atravessada por desejos e identificações incoerentes. Essa operação subverte, do interior, a distinção rígida entre o dentro e o fora da norma, ao expor a participação íntima da abjeção no coração da “normalidade”, drenando sua consistência normativa. O caráter desviante da pulsão revela a estranheza da vida psíquica, que ficava oculta sob o véu da hipocrisia burguesa na Viena de Freud.

Tal gesto, mesmo datando da virada do século 19 para o 20, continua estranhamente atual, a ponto de Preciado se endereçar hoje aos psicanalistas de um lugar que ele mesmo situa como monstruoso, rebotalho do social, por desafiar os critérios binários de enquadramento do humano que ainda vigoram, mesmo depois de cem anos de psicanálise – que, em sua operação inaugural, expôs, a despeito de si mesma, o grão de estranheza não binária que habita cada um de nós.

Nesse sentido, se levarmos em conta os pontos de atravessamento entre a psicanálise e as multidões queer, as respostas dos analistas à interpelação de Preciado não deveriam se pautar por um embate imaginário entre perspectivas supostamente rivais, tampouco por uma disputa estritamente epistêmica em que se trataria de afirmar uma teoria sobre outra.

A nosso ver, a psicanálise deveria ser capaz de mostrar como pode enfrentar a segregação e a violência dirigidas a dissidentes de gênero e sexualidade (que, ao modo de Preciado, atravessaram a fronteira daquilo que conta como humano) e desnudar os mecanismos do ódio em jogo no racismo e na homotransfobia, apontando para a incoerência e a inconsistência estruturantes da própria norma. Isso certamente só será possível se nos servirmos também da radicalidade antinormativa que orienta nosso trabalho clínico, podendo funcionar como uma ferramenta de transformação para sujeitos das mais diversas identificações de gênero e sexualidade, por deixar aparecer, no gozo de cada ser falante, um ponto de opacidade que escapa à regulação pelos ideais.

Talvez por isso, o psicanalista Jacques-Alain Miller pôde dizer que a psicanálise, diferentemente da tradição ocidental, que sempre pensou a salvação pelos ideais, abriu a via inédita de uma salvação pelos dejetos. Ao dar lugar àquilo que sobra, que cai como resto de nossas formas de subjetivação, a psicanálise encontra um importante ponto de contato com as multidões queer – que, na outra ponta do século 20, também propuseram, à sua maneira, um modo singular de subversão pelos dejetos.

Vinícius Moreira Lima é psicanalista, mestrando em Estudos Psicanalíticos
pela UFMG e pesquisador  em psicanálise, estudos queer e masculinidades.


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