Adaptação de ‘Dois irmãos’, de Milton Hatoum, estreia após 14 anos no papel

Adaptação de ‘Dois irmãos’, de Milton Hatoum, estreia após 14 anos no papel

Cauã Reymond, Eliane Giardini e Antonio Fagundes durante a preparação do elenco (Foto: Leandro Pagliaro/Fotografias – O Processo Criativo dos Atores de ‘Dois Irmãos)

Laura Lewer

O romance Dois irmãos (2000), de Milton Hatoum, vencedor do prêmio Jabuti de 2001, narra uma história marcada pelo tempo. As mudanças do sobrado em que os irmãos gêmeos e desafetos Yaqub e Omar crescem, a beleza e decadência de Manaus e o correr do rio Negro funcionam como ponteiros do relógio que contam décadas da vida de uma família de imigrantes libaneses e suas relações problemáticas.

Na obra, cuja adaptação para uma minissérie de dez capítulos estreia nesta segunda-feira (9) na Rede Globo, a rivalidade entre os irmãos é contada por Nael, filho da índia Domingas, que trabalha como empregada para a família de Halim e Zana, pais dos gêmeos e de sua irmã, Rânia. O período de cerca de sessenta anos desenvolve os conflitos entre os irmãos e acaba se tornando um registro histórico do país, retratando momentos como o declínio da borracha e a ditadura militar.

Fora das páginas do livro, o tempo também foi essencial para que a obra chegasse à TV. Em 2003, a roteirista iniciante Maria Camargo propôs uma adaptação para o cinema, que cinco anos depois se transformou em um projeto de minissérie em parceria com o diretor Luiz Fernando Carvalho. De 2008 até agora, o roteiro passou por três ajustes, além de um hiato no projeto e toda a produção. Estreia como parte do projeto “Quadrante”, de Carvalho, cuja proposta é levar obras importantes da literatura nacional à TV aberta, como foi feito com Capitu, de Machado de Assis, e A pedra do reino, baseada na obra de Ariano Suassuna.

“O tempo fez parte do processo de construção da minissérie. Fico feliz que o Milton [Hatoum] tenha gostado do que eu escrevi no primeiro momento e confiado em mim, mas acho que amadureci como roteirista no meio do caminho. De lá até aqui, contabilizei 26 leituras desse livro e ele foi se incorporando a mim. No fim das contas, vimos que tudo aconteceu exatamente quando tinha que acontecer”, afirma a roteirista.

(Foto: Leandro Pagliaro/Fotografias - O processo criativo dos atores de 'Dois irmãos')
(Foto: Leandro Pagliaro/Fotografias – O processo criativo dos atores de ‘Dois irmãos’)

Camargo e Hatoum apontam a importância de a série ir ao ar no cenário político atual, mostrando imagens de arquivo da época da ditadura para retratar o contexto em que um dos personagens é assassinado. “Coincide com um momento de uma arbitrariedade espantosa. Fui a uma manifestação contra o impeachment e, quando me dei conta, eu, com 63 anos, estava fugindo da polícia. É uma caricatura horrenda da democracia. Quem tiver o mínimo de sensibilidade e conhecimento histórico vai perceber que a série também trata dos dias atuais”, diz o autor.

A minissérie também explora Manaus como parte de uma região que vai muito além da beleza extraordinária difundida pelo mundo. Hatoum, que é manauara, tratou como personagem a cidade em que viveu durante toda a sua infância e parte da vida adulta. “Evitei o clichê, o estereótipo. Eu vi a Manaus da minha infância ser destruída, e, de certa forma, saí de lá porque não aguentava ver tanta loucura. Essa violência e a série de chacinas dos últimos dias são questões muito antigas que não chegavam a ninguém”, conta.

Processo de criação

A equipe de Dois irmãos passou por um longo processo até o início das gravações. A narrativa não-linear, marca do livro de Hatoum, foi o desafio inicial, segundo Camargo. Ela conta que a primeira coisa que fez foi dividir cada cena do livro em momentos, identificar a ordem cronológica e elencar os pontos fundamentais. “A história pedia para ser contada de forma não-linear, então eu desembaralhei para embaralhar de novo, mas já com a linha de construção entre as cenas”, diz.

Eliane Giardini em exercício de preparação (Foto: Leandro Pagliaro/Fotografias - O processo criativo dos atores de 'Dois irmãos')
Eliane Giardini em exercício de preparação (Foto: Leandro Pagliaro/Fotografias – O processo criativo dos atores de ‘Dois irmãos’)

Hatoum palestrou sobre o livro para mais de cem pessoas da equipe e Luiz Fernando Carvalho propôs uma série de conversas e debates. “Eu acho incrível o trabalho do Luiz Fernando. Ele me bombardeou de perguntas sobre todos os personagens e convidou vários professores, historiadores, críticos literários, psicanalistas. É muito minucioso”, conta o autor. O processo de preparação do elenco, exercícios e ensaios diários foram documentados pelo fotógrafo Leandro Pagliaro, que acompanhou de perto e registrou as emoções do elenco no livro O processo criativo dos atores de ‘Dois irmãos’, da editora Bazar do Tempo.

Ele também destaca a importância que o diretor deu à representatividade, exigindo que a personagem de Domingas fosse interpretada por uma mulher indígena. Cada personagem principal é interpretado por três atores, marcando a passagem das seis décadas. No elenco, estão nomes como Cauã Reymond, que dá vida aos gêmeos na fase adulta, Antonio Calloni, Antonio Fagundes, Juliana Paes e Eliane Giardini.

A adaptação foi marcada pela liberdade, segundo Camargo e Hatoum. O leitor que assistir a série poderá encontrar cenas idênticas às do livro, outras adaptadas e algumas criações. “O Milton nunca interferiu ou reclamou de alguma mudança. Brinco que o ápice foi o dia em que ele me disse que os irmãos não precisavam ser gêmeos se eu não quisesse. Ele foi de uma generosidade absurda.”

Cauã Reymond interpreta os gêmeos Yaqub e Omar na idade adulta (Foto: Leandro Pagliaro/Fotografias - O processo criativo dos atores de 'Dois irmãos')
Cauã Reymond interpreta os gêmeos Yaqub e Omar na idade adulta (Foto: Leandro Pagliaro/Fotografias – O processo criativo dos atores de ‘Dois irmãos’)

A prioridade, segundo a roteirista, foi manter a essência. “O que sempre foi muito importante e me ligou ao livro desde o primeiro momento é a relação dos personagens com o tempo. Ele me emocionou e eu queria que essa emoção estivesse latente no texto, para que os atores levassem ao telespectador o que eu senti”.

Para Hatoum, o resultado é positivo. “É de uma força extraordinária, é cinema na TV. O roteiro contempla o essencial do romance. Todas as nuances, o narrador, o longo arco temporal que vai até a Manaus contemporânea estão lá. Todos os conflitos da família, a decadência da cidade. Eu tive sorte. Sou um modesto escritor que teve a sorte de ter críticos interessados e, ao mesmo tempo, um grande público leitor, e isso é incomum na nossa literatura. No fundo, os escritores querem bons leitores. Os livros querem bons leitores, na verdade, porque são eles que ficam. Os escritores serão esquecidos”, brinca.

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