2#19 – uma livre adaptação de 1Q84, de Haruki Murakami

2#19 – uma livre adaptação de 1Q84, de Haruki Murakami

 

 Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2019

No dia três de novembro, um domingo, por coincidência o dia do seu aniversário, Augusto Almeida Junior, professor de antropologia, fechou a última página do romance 1Q84, de seu autor predileto (ao lado de Borges, claro), Haruki Murakami. Só nesse momento compreendeu porque havia adiado a leitura desse livro por alguns anos, mantendo-o cuidadosamente guardado no fundo da estante ao lado de sua cama.

Em meio às intricadas tramas desse romance em três volumes, um portal se abre para um mundo paralelo a 1984, que uma das personagens centrais, Aomame, a primeira a atravessá-lo, chama de 1Q84. A passagem se dá inadvertidamente, por meio de uma improvável escada de incêndio localizada às margens de uma via expressa em Tóquio. Ao descê-la, Aomame nota diferenças sutis no mundo ao seu redor, especialmente a presença de duas luas no céu. 

Depois, em uma noite de trovoadas, descobre que esse mundo é controlado pelo “povo pequeno”. Seres diminutos que usam como passagem a boca de cadáveres humanos ou animais em putrefação e passam a influenciar a mente e as ações de pessoas que elegem como “receptores”.  

Sentado em sua poltrona de leitura, com a fraca luz do abajur acesa e o terceiro volume do livro no colo, ouvindo ao longe Tom Jobim cantando: “é pau, é pedra, é o fim do caminho”, Augusto fechou os olhos na tentativa de elaborar melhor as suas associações. Contrariando a insistência de sua família, decidira não comemorar o aniversário este ano, dando-se de presente um dia sossegado de leitura. A opção revelou-se certeira: Murakami lhe enviara uma mensagem. Estava claro que somente a travessia de um portal poderia explicar os descalabros ocorridos no que nos parecia ser o ano de 2019, quando políticos boçais tomaram o controle do país. Não estávamos mais em 2019, mas sim em 2Q19, ou 2#19, como preferiu nomear em sinal dos tempos: evangélicos fanáticos passaram a conselheiros parlamentares, madeireiros organizaram-se via Whatasapp para incendiar a Amazônia, um navio fantasma abriu as suas comportas de óleo para as praias do país, as araras azuis morriam sob o fogo do Pantanal, pobres e negros eram fuzilados nas imediações de suas casas sob os gritos efusivos dos dirigentes e o silêncio da classe média.  A caixa de pandora havia sido aberta.

Diante da evidente conclusão (dos fatos etnográficos, diria o nosso antropólogo), Augusto pôs-se a tentar compreender como e quando se dera a abertura desse portal. Teria o povo pequeno vindo de Tóquio ao Brasil? O que teriam eles usado como portal? Por mais que Augusto se esforçasse por configurar outras hipóteses, a ideia de que abertura tivesse ocorrido no momento da facada a um candidato a presidente pareceu-lhe a única plausível. O povo pequeno teria usado o ferimento como passagem, e o político, que sofria de um logo processo de apodrecimento ainda em vida, como receptor. Desde então, estariam se dedicando a destruir o país e a transformá-lo em um grande campo de mineração de nióbio, substância que necessitam para viver. Trabalhavam em rede com seus companheiros pequenos espalhados pelo mundo, que controlavam outros receptores, dentre eles o presidente americano que, sofrendo do mesmo apodrecimento em vida, funcionava como um receptor ideal. Por meio da agência dos pequenos, os receptores tornaram-se próximos e trocavam afagos, sem a mínima noção de que estivessem sendo manipulados por miniaturas japonesas.

Em 1Q84, a resolução está em encontrar um portal para o retorno a 1984. Augusto, ainda em sua poltrona de couro, onde havia passado meses a fio na leitura das Mitológicas – para ele a maior obra de antropologia de todos os tempos -, com a luz apagada para melhor se concentrar, pôs-se a traçar uma estratégia. Em primeiro lugar, deveria procurar saber se alguém mais se deu conta de que ocorrera uma passagem coletiva para o outro mundo e se havia sinais visíveis da mudança, como as duas luas de 1Q84.

Imediatamente andou até a janela de seu apartamento no Cosme Velho, mas a lua única, crescente, estava lá, ao lado do Cristo Redentor iluminado. Mas, ao olhar com mais cuidado, notou algo estranho: a estátua parecia flutuar alguns metros acima da montanha. No início pensou que fosse o efeito das nuvens, mas elas se dissiparam e a estátua continuava no ar. Chamou a sua esposa e seus dois filhos à janela e perguntou se notavam algo estranho, sem mencionar o quê. Entreolharam-se e o deixaram lá sozinho, sem resposta. Certamente não notaram. Sua gata, Patti (em homenagem a Patti Smith), entretanto, postou-se ao seu lado, fitou o Cristo e miou longamente. Outros gatos, na rua, a acompanharam.

No dia seguinte, uma manhã de segunda-feira, Augusto andou até a estação do Corcovado, perto de sua casa, e tomou o trenzinho vermelho morro acima. Assim que desembarcou constatou, perplexo, que a estátua flutuava a cerca de cinco metros de sua base, incrivelmente estável ali nas alturas, sem um balanço sequer com o vento. Surpreendentemente, o turistas comportavam-se como se nada vissem, abrindo como sempre os braços no topo da escada para tirar fotos com o Cristo ao fundo. Andando em meio a eles, Augusto começou a desconfiar que estivesse tendo uma alucinação, até que notou, sentado em um canto no chão, com os olhos fixos na estátua, um homem de meia idade, cabelos bem lisos e pele morena. Parecia ser um índio. 

Sentou-se ao seu lado em silêncio e pôs-se a olhar na mesma direção. O homem desviou o olhar para ele, mas continuou mudo. Após cerca de meia hora, levantaram-se simultaneamente e caminharam lado a lado, descendo as escadarias. Ao chegarem na estação do trem, o homem seguiu pela floresta a pé, e Augusto o acompanhou. No meio da trilha de descida, em um local de mata fechada, o homem se sentou na raiz de uma árvore (que Augusto, botânico amador, imediatamente reconheceu como um exemplar de angico vermelho, Anaderanthera macrocarpa,  da família Fabaceae) e, com o olhar, convidou Augusto a se sentar ao seu lado. Então contou a sua história em um português com sotaque carregado.

Chamava-se Ramos Mbya, era ex-morador da aldeia Maracanã e atualmente vivia sozinho em uma pequena casa no morro do Borel, sobrevivendo da venda de artesanato para turistas na feira hippie de Ipanema. Tinha olhos gentis e escuros como jabuticabas, e a ausência de cílios fazia o seu olhar distante e profundo. Notava-se em seu corpo as marcas de sua infância rural em Paraty-Mirim: uma cicatriz no tornozelo da perna direita, resultado, explicou, da queda de um barranco enquanto seguia o rastro de uma preá, além de muitas marcas de mordidas e furos de espinhos dos mais variados exemplares da flora local. As juntas doíam devido a uma febre não-diagnosticada que teve na adolescência. Sua idade, mais uma aproximação grosseira do tabelião do único ofício de notas de Paraty, que emitira a identidade sem mesmo lhe pedir uma certidão de nascimento, era a mesma de Augusto: 50 anos. 

Enquanto viveu na aldeia, Ramos nunca se interessou em aprender com os velhos sobre o criador Nhanderu e os espíritos da floresta; estava preocupado em jogar bola, assistir a jogos de futebol e, já rapaz, conseguir algum dinheiro com artesanato para ir a Paraty tomar cerveja e dançar forró. Estranhava, portanto que os espíritos tivessem decidido procurar justo ele, e logo agora que morava na cidade. É verdade que coisas estranhas haviam acontecido antes disso, dentre elas essa estátua flutuante que ninguém parecia notar, além dele, dos gatos que miavam loucamente ao olhar para ela e, agora, de Augusto.

No quintal de sua casa no Borel, Ramos tinha uma pequena criação de inhambus, três precisamente, descendentes de um casal que o seu avô lhe dera no dia de sua partida da aldeia, anos atrás. Embora passassem o dia ciscando no quintal, os três dormiam com ele em um colchão de solteiro apoiado sobre caixas de papelão. Chamavam-se Kaiapá, Itá e Kamoí. Uma noite acordou com o alvoroço das aves que tentavam bicar seu vizinho, que chegara ali sorrateiramente à procura de alguns trocados para comprar bebida. Na briga que se seguiu, o vizinho, com raiva, deu uma paulada em uma das aves, matando-a. Era Kaiapá, que naquele momento Ramos reconheceu ter sido desde sempre a sua favorita. Imóvel, triste e com uma dor excruciante por ter caído sobre o cóccix ao ser empurrado pelo vizinho, ficou ali sentado, perdido no tempo, com o olhar fixo em Kaiapá. Lamentou não conseguir dormir e sonhar com Kaiapá ainda viva, seguindo-o pelos cantos da casa, como um cachorrinho. Ramos nunca sonhava.

Na noite seguinte, por volta das três da madrugada, acariciando o corpo inerte e frio do inhambu, seus olhos se arregalaram ao ver sua boca se abrindo exageradamente e dela sair uma pessoa pequena de cabelos pretos e escuros, sem cílios nem sobrancelhas e completamente nua, não fosse por um pequeno cordão peniano de algodão vermelho. Sucessivamente começaram a sair da boca de Kaiapá outras dessas pequenas pessoas, cinco no total, todas com no máximo doze centímetros de altura. Esforçando-se para se lembrar de sua língua natal, o guarani, conseguiu entender mais ou menos o que diziam.

Os pequenos se organizaram em uma roda com um deles no centro, que, fumando um cigarro minúsculo, puxava um coro; os outros respondiam cantando juntos e dançando em roda. Aos poucos Ramos foi conseguindo decifrar o significado das melodias, pois lembravam as cantigas de seu avô, Marcelino Karai Ataa. 

“Se menos cachaça você tivesse bebido”, cantou a pessoa pequena no meio da roda.

“Mais espíritos teria visto”, responderam os cinco em coro.

“Queríamos te ajudar a sonhar”, cantou a pessoa pequena no meio da roda.

“Mas pajé você não consegue ser”,  responderam os cinco em coro.

“Espíritos de uma terra chamada Japão entraram pela barriga do presidente”, cantou o pequeno do centro.

“E tudo mudou no presente”, disseram os demais em coro.

“Aqui viemos para mandá-los embora”, disse o puxador do canto dando uma baforada em seu minúsculo cigarro.

“Pois já passa muito da hora”, gritaram os demais, batendo os pés ritmadamente no chão.

Boquiaberto, Ramos tentava falar, mas as palavras emudeciam em sua boca. Os pequenos continuaram:

“Pajés da floresta beberam ayahuasca e viram a sua imagem”, cantou o guia como que adivinhando os pensamentos de Ramos.

“Você foi escolhido para reabrir a passagem”, rimaram os demais. 

“Deve ser rápido ou florestas não vão restar”, disse o primeiro, com o semblante sério.

“Nossos parentes vão acabar”, enfatizaram em coro os demais, agora dançando com as mãos dadas.

“Em breve, instruções vamos enviar”, disse o puxador.

“Para você rapidamente atuar”, responderam em coro os demais. 

Depois disso, entraram novamente pela boca de Kaiapá, que, já cheirando mal, foi enterrada pela manhã no quintal. 

Desde então passaram a se comunicar com ele por um meio inusitado: um orelhão desativado na esquina de duas vielas, ao lado de sua casa. O telefone tocava, mas estranhamente, só ele escutava. Tirava do gancho e ouvia os pequenos seres com suas instruções. Inicialmente disseram-lhe que não bebesse álcool nem comesse peixes sem escama, a fim de limpar o seu corpo. Depois, pediram que ele preparasse chicha com avaxi etei’i, milho verdadeiro, insistiram, que ele encontraria na única barraca com lona vermelha da feira de domingo da Estrada da Independência. A cantiga do terceiro telefonema versava sobre um jornalista estrangeiro, grande sonhador, observaram, cujo nome ele só conseguiu entender depois de muitas repetições: Greenwald. Disseram-lhe que ele seria uma pessoa-chave na abertura do portal e que precisavam que os ajudassem a chegar até ele, para que pudessem lhe falar durante os seus sonhos 

No domingo seguinte, procurando no Google no celular de seu companheiro vendedor de artesanato, Ramos descobriu o endereço do tal estrangeiro no Rio de Janeiro e no fim do dia foi até a sua casa em Copacabana. Não entendeu bem como passou pela portaria e pelos seguranças, chegando a ter a impressão de que estava sendo esperado. Naquela altura, entretanto, as coisas estranhas já não o impactavam mais. Tocou a campainha e a porta foi aberta pelo próprio Greenwald, um homem alto, de cabelos castanhos bem picotados e nariz protuberante, certamente mais jovem do que ele. Gentilmente, foi convidado a entrar, explicou a sua origem indígena e ofereceu a ele um copo da chicha de milho que trazia em uma garrafa de plástico. Para a sua total surpresa (mais uma), o jornalista bebeu sem pestanejar, e diríamos mesmo, com gosto. Ramos havia adicionado um raminho de erva-doce, o que deu um gostinho especial à bebida. Sempre fora criativo na cozinha.

Algumas semanas depois, nova chamada no orelhão e uma cantiga que dizia que um homem importante, um mboruvixa, com um nome esquisito, Toffoli, também precisava ser contatado por ele, para que tivessem acesso aos seus sonhos. O tal homem morava longe, em Brasília, e Ramos não sabia como fazer, pois não tinha o dinheiro da passagem. Naquela manhã de segunda-feira, à procura de algum esclarecimento, caminhou pela floresta a pé até o Cristo, onde encontrou Augusto. 

Augusto compreendeu imediatamente o que se passava. Os espíritos da floresta eram seus conhecidos de longa data, desde que fizera sua pesquisa de campo na aldeia Araponga, perto de Paraty. Iniciado por um pajé, passou a ver e conversar com eles sempre que fumava o charuto coletivo durante as danças, na opy, a casa de rezas. Sabia que eles o haviam conduzido, via o livro de Murakami, ao encontro com Ramos. Prontificou-se a pagar a sua passagem para Brasília e a ir com ele até o gabinete do tal homem. Levantaram-se e seguiram até a casa de Augusto. Sentaram-se no computador e compraram duas passagens de ida no primeiro voo matinal para Brasília. Almoçaram juntos e Augusto ofereceu a Ramos o seu quarto de hóspedes. 

Ao voltarem do trabalho no final do dia, sua mulher e seus filhos não se surpreenderam ao encontrar um indígena em casa, pois sempre recebiam visitas dos amigos guarani do marido. Cumprimentaram-no com naturalidade e chegaram mesmo a trocar com ele algumas palavras em guarani, que haviam aprendido nas viagens que fizeram às aldeias com o marido e pai antropólogo, durante a pesquisa de campo para a sua tese de doutorado.  

Às onze horas da manhã de cinco de novembro, com Ramos levando a chicha previamente preparada na mochila que Augusto lhe emprestara, chegaram à capital federal, pegaram um Uber e se dirigiram ao Quality Hotéis & Suites na Asa Sul, onde dividiram um quarto. Enquanto faziam hora foram até a piscina e pediram uma cerveja e um guaraná. Ramos não podia beber por instrução dos espíritos e, Augusto compreendia agora, o seu amor às cervejas geladas havia sido a razão para eles nunca mais terem falado diretamente com ele desde o final de sua pesquisa. Puseram-se a pensar em uma estratégia para conseguir acesso ao homem importante. Por precaução, Augusto levara o seu único terno e alugara outro para Ramos. Esse era o primeiro passo: tinham que estar bem vestidos. 

Do lado de fora de uma grade, na Praça dos Três Poderes, avistaram o alvo indicado pelos pequenos seres no último telefonema: o Palácio STF, um suntuoso prédio modernista, com colunas em forma de espinha de peixe (observação de Ramos), construído por Niemeyer e tombado pelo IPHAN em 2007, ano da morte do arquiteto. Sem saber o que fazer para ultrapassar a grade e todos os dispositivos de segurança, e sabendo que não teriam chances de marcar uma audiência formal, voltaram ao hotel e pediram mais cerveja e guaraná. Precisavam pensar com calma. Foi quando Augusto ouviu o seu celular tocar. Vozes estranhas, como que de crianças, pediram, em guarani (que felizmente Augusto compreendia), que ele passasse o telefone a Ramos. Eram os pequenos, que, na falta de um orelhão, usaram o celular de Augusto, com quem se recusavam a falar diretamente por causa das bebidas. Disseram-lhe que, assim que o garçom chegasse, conversassem com ele. 

“Um jovem rapaz casado com parente e vestido de branco vai se aproximar”, disse o puxador de canto.

“E com ele você vai conversar”, disseram os outros em uníssono.

Ramos pediu a Augusto que o ajudasse, pois ouvira falar que as pessoas tinham muito preconceito contra índios na capital federal. 

Augusto, fazendo-se de interessado, perguntou ao garçom há quanto tempo trabalhava ali, se era o seu único emprego, se estava contente. Sem ter mais clientes a atender, pois a varanda da piscina estava vazia, o garçom, de nome Antônio, conversou animadamente e chegou a se sentar na mesa. Descobriram que era originário de Palmas e casado com uma índia Xavante há cinco anos. Contou-lhes também que, nos dias em que não servia ali, trabalhava na residência de um ministro chamado Toffoli. 

Augusto e Ramos se entreolharam cheios de espanto. Era de fato impressionante a argúcia desses espíritos. Falador, Antônio contou que o seu patrão tinha uma resistente dor na lombar, que nenhum médico, terapeuta, acupunturista e até mãe-de-santo conseguira curar. Era a deixa para Ramos: explicou que tinha consigo um unguento que, embora parecesse uma simples chicha de milho, era um poderoso remédio produzido pelos pajés de seu povo. Seria tiro e queda para as dores do ministro. O garçom, animado em poder agradar o seu patrão e quem sabe conseguir um bônus de Natal (que estava chegando), assegurou-lhes de que iria entregar para a ele o remédio milagroso. 

Permaneceram no hotel durante todo o dia seguinte, à espera do plantão do garçom um dia depois. Augusto aproveitou para levar Ramos a uma visita à Catedral de Brasília e passaram a parte da tarde relaxando na piscina. Na manhã de sete de novembro viram o garçom chegar animado ao bar da piscina e dirigir-se diretamente a eles, balançando um balde repleto de cervejas longneck e duas latinhas de guaraná Antártica. Sim, dera ao ministro o unguento com gosto de chicha no dia anterior, e ele, em meio a uma crise de dor, tomara sem pestanejar, chegando mesmo a elogiar o sabor (com certeza, pensou Ramos, devido ao raminho de erva-doce). Abraçaram-se os três, felizes por motivos diferentes: o bônus do garçom estava certo e o povo pequeno estaria orgulhoso deles. Deixaram a piscina, foram para o quarto, tomaram banho e recostaram-se em suas confortáveis camas para assistir TV. Foi quando ouviram, boquiabertos, que o tal ministro da chicha acabara de votar pelo fim da prisão de condenados em segunda instância, antes do trânsito em julgado, e que o ex-presidente Lula poderia ser solto em breve. Rapidamente entenderam que era esse o desfecho desejado pelos espíritos e resolveram aguardar a sua confirmação, permanecendo mais um dia no hotel, agora grudados na TV. 

Assim que a notícia se confirmou, no dia 8 de novembro, e que a imagem de Lula apareceu cercada por uma multidão em São Bernardo do Campo, com fogos estourando em todos os cantos do país, o telefone do hotel tocou. Ramos atendeu, pois o aparelho estava mais perto de sua cama, e ouviu as pequenas vozes em coro:

 “Ho ho, tape ojepe’aju, disse a voz que ele reconheceu ser a do puxador de canto. 

“O caminho se abriu novamente”, repetiu Ramos para Augusto ao seu lado. 

“Ho ho, tape rupi pava’ oaxa va’e rã”, cantaram as outras vozes ao fundo.

“E pelo caminho todos passarão”, repetiu Ramos.

No dia seguinte pela manhã, Augusto e Ramos tomaram o avião de volta ao Rio e, perto de pousarem no Santos Dumont, o avião mudou levemente o seu percurso, de modo que o Corcovado se tornou claramente visível. Aparentemente, a estátua parecia solidamente pousada, mas os seus olhos atentos e meticulosos notaram a persistência de uma pequena fresta entre ela e o pedestal. Entreolharam-se apreensivos, mas logo concluíram ser o final de um processo em curso. Por ora, isso lhes bastou. Eram otimistas.


APARECIDA VILAÇA é antropóloga, professora do Museu Nacional e autora de Paletó e eu. Memórias de meu pai indígena (Todavia, 2018).

FRANCISCO VILAÇA GASPAR é doutorando do Laboratório de Química Biorgânica da UFRJ.

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