Aborto como metáfora I
O texto a seguir será publicado no livro FILOSOFIA: MACHISMOS E FEMINISMOS em breve pela editora da UFSC. Considerando que o texto está pronto há mais de um ano e o livro se torna entre nós algo tão esperado quando demorado, decidi publicar o texto aqui. Será uma ótima oportunidade de receber críticas de leitoras pensantes. Agradeço, de antemão, a quem puder lê-lo e analisar, comentar, criticar.
Vou publicar em 3 partes para o texto não complicar o tamanho da postagem, mas peço que as partes não sejam consideradas separadamente.
Aborto como Metáfora
A todas as mulheres que descobriram que são livres.
A insignificância da discussão sobre aborto no Brasil se deve ao fato de que ela não chegou ao lugar onde devia. Inscrito no território do moralismo, o que se diz sobre aborto por aqui não passa, de uma maneira geral para a qual importa salvaguardar exceções, de espectro discursivo da ideologia masculinista contra as mulheres. Aborto é a mais perfeita metáfora do moralismo – uma metáfora do “mal” construída pelo olhar desrespeitoso contra as mulheres – que está na base fundamental do discurso patriarcal.
Antes de iniciar meus argumentos na intenção de entender o lugar desta metáfora no discurso masculinista, devo definir que, na construção de minha exposição chamarei de “mulheres” ao sujeito representativo de um gênero, ainda que estejamos orientadas pelo desejo de superá-lo, e de “mulher” ao indivíduo que pode engravidar. Desejo assim, desvencilhar-me da armadilha essencialista na qual a leitora menos atenta pode me colocar. E digo “leitora”, porque estou escrevendo pensando, sobretudo, em mulheres e em quem possa se interessar por uma fala dirigida à sua condição. Quero facilitar a compreensão do que tenho a dizer, já que, neste território uma das estratégias discursivas das mais usuais é sempre fingir que não compreendeu o que a outra queria dizer, muito embora o outro (os homens) sejam sempre ouvidos e aceitos (aliás, por eles mesmos e, infelizmente, por várias mulheres que não se dão conta de sua posição de sujeitos potencialmente livres, mas sempre também facilmente amarradas às armadilhas do discurso patriarcal). É por isso também que a leitora verá muitas aspas abraçando as palavras que usarei. Minha intenção é intensificar por meio delas os termos que soam problemáticos no contexto dos discursos e merecem por isso mais atenção.
Assim, posso seguir afirmando a primeira questão que não pode ser deixada de lado quando entramos neste assunto – e que continua me deixando perplexa depois de anos a me envolver com o problema. Questão que apenas pode ser posta de um ponto de vista feminista (este ponto de vista que se preocupa com o que acontece às mulheres e não está contra elas, independente de suas profissões, etnias, definições e escolhas): por que homens discutem tão facilmente um tema que seria, antes de mais nada, assunto de mulheres? Justamente porque estão “contra” as mulheres e porque falar seja o modo de se posicionar “contra”. Que estejam contra elas – aspecto que repetirei várias vezes, pois está na base do discurso que quero aqui questionar – implica que jamais levantarão argumentos a favor do aborto, pois aquele que argumenta contra o aborto não consegue – por ignorância ou autoritarismo – colocar-se em seu lugar. De um maneira geral podemos dizer que os homens falam de aborto porque estão acostumados a falar: é que ocupam o lugar dos discursos como protagonistas e autores e as mulheres como coadjuvantes e figurantes. É preciso ter em vista que um homem que queira falar sobre o aborto só pode fazê-lo do seu ponto de vista e este ponto de vista só valerá como discurso que merece ser ouvido caso tenha sido antes questionado enquanto “ponto de vista”. Que homens (padres, papas, juristas, advogados) se pronunciem muito mais do que mulheres, vem apenas comprovar o estágio precário do feminismo no Brasil quanto à questão da liberdade das mulheres, apesar das tantas lutadoras da causa dos direitos femininos que vem a ser o sentido geral do feminismo conseqüente.
Muitas vezes, infelizmente, o discurso antiabortista é promovido pelas próprias mulheres que concordam com os argumentos dos homens sem questionar sua proveniência interessada. Talvez elas mesmas tenham interesses na sustentação do que, as oprimindo, ao mesmo tempo lhes serve, em algum sentido, de sustento. Na prática do aborto por parte de mulheres há um interesse evidente. O de praticar a liberdade de não permanecer grávida. Mas há, também, entre mulheres, na contramão do exercídio de suas liberdades, muita escravização voluntária. Infelizmente, há casos em que mulheres alimentam com relação ao aborto (e mesmo outros temas relacionados ao seu desejo e seus corpos) aquilo que Ricardo Goldemberg denominou de círculo cínico (2002, p. 14). O círculo cínico é a estrutura da corrupção, ele implica um sujeito enganador e um enganado que aceita a posição de otário. Há, neste sentido, mulheres que são vítimas da escravização na qualidade de otárias, o que não deve ser dito na intenção da ofensa, mas da desmistificação dos interesseiros e submissos acordos entre sacerdotes e escravos da moral em que se tornam as pessoas de um modo geral quando se indispõem a pensar reflexivamente. Neste sentido é que pretendo usar a expressão “cinismo masculinista” para falar do discurso ideológico como círculo cínico que une homens e mulheres. O ponto de vista feminista, no sentido em que o manifesto aqui, vem a ser o desejo de sair deste círculo marcado pela corrupção das consciências e das ações. A crítica parte desta denúncia.
No lugar do cinismo masculinista que tem comandado o sentido dos debates tanto na esfera pública quanto na privada, deveria avançar a reflexão filosófica entre as mulheres que, no entanto, permanece estagnada. Enquanto o grito da indignação moral faz pose de suficiência ética, garante-se o lucro moral da igreja e de todas as instituições conservadoras (entre elas a família, tenha ela em seu ideário e práticas, melhores ou piores intenções em relação a seus membros nascidos com corpos de “mulheres”) contra a questão mais básica da decisão das mulheres sobre seus corpos e projetos relacionados, afinal, às suas próprias vidas. É espantoso que haja pessoas que não tenham segurança para decidir acerca de si mesmas neste aspecto. Não se discute o aborto neste sentido porque as mulheres são culturalmente alienadas da questão. E o são pelo próprio discurso e pela prática de “surdez” dos agentes e autoridades que faz deste mesmo discurso uma lei e uma moral. O que pretendo afirmar é que a forma do discurso, e do pseudo-debate (como se não se devesse discutir o sentido do “debate” para uma questão que é da soberana decisão de uma mulher) já existe para evitar que as mulheres se pronunciem em favor de si mesmas.
E este “si mesma” relaciona-se diretamente com o que podemos entender como sendo o seu próprio desejo. Desejo, aliás, que nos coloca desde já diante do cinismo masculinista em sua mais básica ação dicursiva: com o discurso contra o aborto, o cinismo masculinista quer, ele mesmo, abortar o desejo das mulheres impondo-lhes um conteúdo para este “desejo” que ele mesmo inventou. Assim como as mulheres são vitimas do aborto como metáfora do masculinismo – aborto que elas devem assumir como tabu-, o cinismo discursivo também realiza o aborto na base de uma metáfora: o aborto é praticado contra as mulheres como uma espécie de autocontradição performativa constantemente reproduzida. “Abortamos as mulheres para que elas não abortem” seria o lema subterrâneo do discurso masculinista. É o desejo (que é do outro, que é construção coletiva, que não é “natural”, mas cultural) que deveria muito mais entrar no debate das mulheres sobre elas mesmas, fazendo com que a mística masculinista que especula sobre “o que quer uma mulher”, o que seriam seus “orgasmos” ou a sua “natural maternidade”, caísse por terra. Somente as mulheres em seus próprios grupos podem quebrar o círculo no qual foram capturadas.