Abolicionismo penal no mês da Visibilidade Trans: um convite
Celebrada em janeiro, Dia da Visibilidade Trans existe no Brasil desde 2004 (Foto: Cris Faga/NurPhoto)
Não tem Deus
Nem pátria amada
Nem marido
Nem patrão
O medo aqui não faz parte do seu vil vocabulário
Ela é tão singular
Só se contenta com plurais
(“Mulher”, Linn da Quebrada)
Janeiro é o mês da Visibilidade Trans. Mais especificamente, dia 29/01, é o Dia da Visibilidade Trans, e eu sou a feliz moradora de Aracaju, cidade que elegeu para vereadora uma mulher transexual com a maior votação das eleições de 2020. Linda Brasil é motivo de orgulho e esperança para todos/as/es que sonham com um futuro mais justo, mas também que precisam que o presente seja possível, respirável, vivível.
Para quem é de fora, talvez a eleição de Linda seja uma grande surpresa. Mas para nós, residentes, a presença desta mulher inteligente, batalhadora, sagaz e solidária, na política sergipana, já era incontornável há bastante tempo. Isso porque Linda também é a expressão de um movimento social de pessoas trans riquíssimo e muito mobilizado em Aracaju. Desde 2015, em janeiro, ocorrem anualmente as Semanas de Visibilidade Trans, eventos que são realizados na Universidade Federal de Sergipe, na OAB-SE, no teatro Atheneu e em outros grandes espaços abertos ao público. Em 2018, durante a IV Semana de Visibilidade Trans, foi inaugurada a CasAmor, espaço de acolhimento emergencial de pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade, mas também de produção artística, articulação e formação política do movimento social.
E o que isso tudo tem a ver com abolicionismo penal?
Pois bem, na minha experiência como professora de Direito Penal, dentre as muitas discussões suscitadas em sala de aula a respeito das mazelas das prisões brasileiras, as que afligem a população trans são muito raras. Só de uns dois ou três anos para cá, na verdade, elas começaram a aparecer, e para isso, foi necessária uma longa preparação capaz de trazer o assunto à tona, afinal, os livros que são referência na matéria também não dizem uma palavra sobre as vidas de pessoas trans encarceradas. Para que esse debate pudesse emergir, as Semanas de Visibilidade Trans foram fundamentais, assim como o fato de Linda Brasil ter se tornado uma figura importante no debate público sergipano.
Para ficar apenas em um exemplo, é possível ler manuais de direito penal e de direito constitucional, ainda hoje, inteiramente incapazes de abordar que a separação de pessoas presas por sexo, inscrita na Constituição Federal, causou e causa inúmeras violências à população de transexuais e travestis encarcerada, uma vez que os operadores do direito leem este comando como uma referência aos órgãos genitais das pessoas, mesmo tendo instrumentos legais e conceituais para fazerem outras leituras, pautadas pelo gênero e pelo princípio da dignidade. Recentemente, foi interposta ação no STF (ADPF 527) para que mulheres trans encarceradas sejam encaminhadas a presídios femininos, enquanto travestis possam optar pelo tipo de estabelecimento penal, masculino ou feminino. Oxalá prospere nos termos demandados pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ALGBT).
Das lições de Angela Davis que trago sempre comigo, está a de pensar questões de gênero como estruturantes do encarceramento. No livro “Estarão as prisões obsoletas?”, há um capítulo em que ela chama a atenção para o fato de frequentemente denunciarmos as violências dos cárceres para mulheres como uma questão colateral no grande cenário do encarceramento. O efeito imediato é fazer surgir uma série de reformas que pretendem aproximar as condições das prisões femininas e masculinas. Para Davis, a estratégia abolicionista consiste em denunciar as violências nas prisões femininas para exigir o fim de todas as prisões.
Penso que é possível desdobrar
essa máxima para afirmar que
toda denúncia de transfobia
nas prisões, masculinas e/ou
femininas, é uma demanda
pelo fim de todas as prisões.
Para apontar a transfobia como estruturante do encarceramento, podemos suscitar os estupros que jamais foram lidos como estupros porque, tacitamente, os corpos de pessoas trans serviram ao sistema prisional como lugar de despejo da brutalidade que o próprio aprisionamento produz. Mas também podemos falar da privação de tratamentos de saúde específicos para pessoas trans encarceradas e que não é outra coisa senão tortura física, psicológica, emocional. E quanto mais complexificamos a análise, mais surgem formas pelas quais o sistema prisional se vale de corpos trans para reafirmar seu estatuto cis-hetero-conforme.
Retomo aqui a Constituição Federal, lei hierarquicamente superior às demais, festejada por sua inspiração humanista e marcadora da redemocratização brasileira depois de um longo período de ditadura civil-militar, e que conferiu à instituição mais performativa da violência do Estado, o poder de dizer quem é mulher, quem é homem e fazer desaparecer todos os corpos e experiências que não são uma coisa nem outra, ou são tudo isso junto. No mínimo, é curioso pensar que o monopólio do poder punitivo foi mobilizado pelo estado democrático de direito como instrumento de afirmação e imposição da cisgeneridade ao afirmar que presos e presas serão separados sempre por sexo. Ou não, talvez seja óbvio.
Seria demasiado questionar se o sequestro dos corpos trans pelo sistema de justiça criminal teria muito mais a ver com fazer funcionar essa operação delegada constitucionalmente à prisão – de dizer quem é mulher e quem é homem – do que com qualquer ilícito penal que justificasse o encarceramento? Esta é uma pergunta que não pode ficar fora dos debates sobre a seletividade da justiça criminal elaborados pelos abolicionismos penais.
Abolicionismos estes que contam com intelectuais, ativistas, militantes e figuras públicas trans como Erica Malunguinho, deputada estadual em São Paulo, e que precisam ser lidas, ouvidas, e suas formulações atentamente estudadas por abolicionistas cisgêneros como eu. A coluna de hoje é também um convite para que ocupem este espaço.
Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Direito também pela UFS. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia