Abolicionismo penal e garantismo: aliança precária, fundamentos divergentes

Abolicionismo penal e garantismo: aliança precária, fundamentos divergentes
Ilustração de Raul Souza (@rauiss) para o projeto Declaração Universal de Direitos Humanos Ilustrada (Reprodução)

 

Se nos últimos anos a academia funcionalista e os seguidores do realismo de esquerda ajudaram a incrementar o encarceramento em massa dos pobres no mundo, a realidade que vivemos exige um aprofundamento radical da crítica ao sistema penal e a suas funções constituintes: o controle dos resistentes e a manutenção da ordem do processo de acumulação de capital
Vera Malaguti

 

Quando falamos de abolicionismo penal e garantismo penal, é preciso ter em mente que estamos lidando com dois discursos, duas estratégias, duas visões de mundo que são distintas, e não raro, divergentes e antagônicas. Se, num exercício meramente teórico, pudermos decompor o campo penal em direção à ciência política, seria possível afirmar que o garantismo penal é uma perspectiva liberal, enquanto o abolicionismo é socialista e/ou anarquista. No fundo, o que está em discussão é o caráter que se atribui ao Estado como organização política, se é mais de pacificação (garantistas) ou mais de dominação (abolicionistas).

Na América Latina em geral, e no Brasil em particular, é comum, no entanto, ver o garantismo penal associado ao campo político da esquerda. Destaco aqui um fator, sem prejuízo de outros, que pode ajudar a explicar isso. Estamos lidando com uma região que foi brutalmente colonizada e os efeitos disso, em termos de colonialidade (ou seja, do que fica e do que se repete pós-colonização), é uma sociedade bastante autoritária. Assim, um discurso de limitação do poder do Estado parece mesmo dotado de alto teor de crítica e contestação, quase revolucionário. O garantista penal, com frequência, aparece em primeiro plano lutando contra os abusos do poder punitivo e, em seguida, afirmando que sem o poder punitivo estaríamos todos sujeitos a abusos de poder.

Garantistas assumem para si a premissa do contratualismo de que, sem o Estado, viveríamos em um estado de natureza muito violento e autodestrutivo, onde apenas os mais fortes sobreviveriam. Abolicionistas penais rompem com o contratualismo ao afirmar que se trata apenas de uma teoria de justificação e legitimação do poder do Estado, e que a própria ideia de um estado de natureza, portanto, não faz qualquer sentido. Do nosso lado, temos, por exemplo, a antropologia de Pierre Clastres, produzida a partir de sociedades ameríndias, e que se organizavam de forma a impedir a formação de um Estado, sem que isso implicasse na “guerra de todos contra todos”.

Com frequência, garantistas alegam que episódios de linchamentos e violência desencadeada por multidões atestam a propriedade da tese do estado de natureza. Nós, abolicionistas, achamos divertido como se atribui a um suposto estado de natureza o que é, obviamente, uma mimetização do todos contra um que organiza o sistema de justiça criminal, e onde se pode ver um promotor representando a sociedade contra um único indivíduo, acusado de cometer um crime. Consideramos, ainda, que fenômenos produzidos no âmbito de uma sociedade organizada a partir do Estado são mais facilmente atribuíveis ao Estado do que a uma ficção sobre a natureza.

Recentemente, em uma discussão no Twitter com Rubens Casara, ele me perguntou se eu abriria mão, enquanto abolicionista/estudiosa do direito penal, das garantias liberais que temos na nossa Constituição e que dizem respeito ao poder punitivo. Eu gostei da pergunta porque ela me dá a oportunidade de responder, de uma vez por todas, que sim.

Como pesquisadora do campo penal, olho para a superpopulação carcerária brasileira e penso na função limitadora do poder punitivo que as garantias constitucionais não desempenharam. Pelo contrário, para cada pessoa presa, todo um discurso sobre o porquê, naquele caso, as garantias não se aplicam, é elaborado e reafirmado, todos os dias, desde o processo de conhecimento (condenação) ao processo de execução (cumprimento da pena). E como, a cada caso, as garantias vão sendo afastadas pelas mãos dos juízes e dos tribunais, no final das contas, elas não se aplicam a ninguém. Ou quase ninguém. As garantias sofrem, portanto, de um vício de origem: ao dizerem que limitam o poder punitivo, elas o legitimam, e ao legitimá-lo, sua própria aplicação se torna uma exceção.

Mas a discussão se complexifica quando o garantista pergunta à abolicionista se, embora excepcional e rara, a aplicação de uma garantia constitucional que salva um sujeito, mesmo que seja um a cada mil, de uma prisão injusta e desnecessária, não seria suficiente para conduzir à defesa do conjunto garantista do direito penal liberal.

Aqui, minha resposta é não. É verdade que eu já vi juízes mobilizando garantias – presunção de inocência ou humanidade das penas – para deixar pessoas em liberdade. No entanto, pela raridade, tanto entre juízes como observando um mesmo juiz e a quantidade de prisões que ele determina em relação às liberdades que autoriza, cheguei à conclusão que o aleatório e o imponderável explicam melhor as decisões garantistas do que uma interpretação consistente e sistemática que faria das garantias uma proteção aos indivíduos e suas liberdades frente ao Estado.

Em outras palavras, o fato de serem de excepcional aplicação me faz pensar duas coisas. A primeira é que se a exceção é a proteção do indivíduo, a regra é a proteção do poder punitivo. E é para isso que as garantias servem de maneira tão ampla, majoritária e explícita. A segunda é que me parece mais razoável pensar, quando um juiz ou tribunal mobilizam uma garantia do direito penal liberal para assegurar a liberdade de alguém, que a garantia foi a linguagem pela qual o aleatório e o imponderável se expressaram.

Assim, o alívio das hemorroidas ou da gastrite, uma boa noite sexo ou de sono (quem sabe, até, as duas coisas), uma excelente refeição ou um novo flerte, tudo isso é provavelmente mais motivo para a aplicação da garantia constitucional do que uma interpretação consistente a favor da liberdade individual. Como esses bons momentos não podem ser nomeados numa decisão, então o juiz, que no dia anterior decretou todas as prisões que o Ministério Público mal e porcamente fundamentou, nomeia o bem-estar da sua evacuação, do seu estômago, do seu sono ou do seu sexo como “presunção de inocência”. Isto é suficiente para que garantistas digam que a função das garantias é preservar a liberdade dos indivíduos. Porém, quem já precisou bajular juiz para conseguir uma liberdade provisória (atuação também conhecida como “despachar com o juiz”) sabe que é menos a garantia constitucional, e mais o ego ou o humor, que fundamentam a decisão.

Mas há ainda outra dimensão, a meu ver, mais importante, que responde à pergunta feita a uma abolicionista, quando se indaga se ela abre mão do direito penal liberal. É preciso que tal pergunta seja endereçada à população negra, periférica, pobre, mais do que à pesquisadora. Porque o pressuposto de “abrir mão” é ter, antes, o que se avalia abandonar. Assim, só pode abrir mão de garantia constitucional do direito penal liberal quem tem acesso a estas garantias. Quem não tem garantia de nada, não tem como “abrir mão”.

As pessoas moradoras de determinadas regiões da cidade nunca tiveram nem a garantia de dormir em casa sem que a porta seja arrombada por policiais para plantar um flagrante. Em defesa destas pessoas, suscitamos a inviolabilidade de domicílio como quem faz uma prece e espera pelo aleatório e imponderável alívio dos gases de quem julga. A pergunta, portanto, sobre abrir mão das garantias, tem um ponto cego, algo comum na posição social privilegiada de quem a elabora.

É claro que em vários momentos da política nacional, garantistas e abolicionistas enfrentam forças reacionárias lado a lado. É uma aliança possível, desejável e precária, com toda aliança em movimento. Esta aliança, não raro, aparece na defesa de uma garantia processual, o que é aparentemente paradoxal para abolicionistas. É assim que defendemos, por exemplo, que a mal formulada “prisão em segunda instância” é inaceitável.

 

Mas é preciso um pouco mais
de atenção para que aliança
não se confunda com identidade
e o garantismo não capture as
sensibilidades abolicionistas.

 

 

De uma perspectiva abolicionista, a “prisão em segunda instância” é a mesma coisa que a “notícia”, de todo ano, a respeito das saídas temporárias de Suzane Ritchthofen: enunciados que performam a imprescindibilidade do sistema de justiça criminal. E quando falamos que performam, dizemos que atuam, fazem, constroem e mobilizam a justiça criminal e o poder punitivo. Somos contra, portanto, a “prisão em segunda instância” na medida em que este discurso encontra na prisão dos “ricos e poderosos” mais uma reiteração da prisão como instituição necessária à nossa sociabilidade. Dito de outra forma, somos contra a prisão. Ponto.

Dito tudo isto, estou aqui escrevendo dentro da perspectiva a qual me propus quando comecei a coluna. Trato de um campo de tensões produtivas quando faço a distinção entre abolicionismo e garantismo, pois percebo uma constante tentativa de captura dos termos e lutas abolicionistas por uma razão garantista que infantiliza e joga o abolicionismo para o recanto das utopias. É fato, no entanto, que as alianças entre as duas perspectivas dão o tom, hoje, da urgência política de combate ao avanço do fascismo. Penso, porém, que se luta melhor quando se conhece bem os limites, não só daquilo que se combate, mas também dos próprios aliados.

Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Direito também pela UFS. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia


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