Abjeção: A construção histórica do racismo – Introdução aberta

Abjeção: A construção histórica do racismo – Introdução aberta

.

O livro O conto da Aia, deparamos com histórias de mulheres que se veem despossuídas de seus corpos e direitos, depois de um golpe de Estado que levou ao poder uma seita religiosa. As mulheres mais jovens passam a ter como única função social a reprodução, a geração de filhos/as que serão apropriados/as por famílias respeitáveis da sociedade. Ou elas se submetem às novas leis, ou serão deportadas para colônias. A primeira vez que li o livro, compartilhei as interpretações que circulavam e que caracterizavam o texto como distópico, um tipo de ficção científica resultante da criatividade da escritora, Margaret Atwood, e que dialogava com os nossos medos em relação a um tipo de retrocesso como o que aconteceu na República Gilead, local onde o drama das mulheres-útero se passava. Por alguma razão, voltei a lê-lo recentemente no exato momento em que estava mergulhada no estudo dos debates parlamentares que aconteceram entre os meses de maio e setembro de 1871 no Brasil. Deputados e senadores travaram tensas discussões sobre o projeto de lei encaminhado pelo imperador Dom Pedro ii e cujo objetivo, entre outros, era determinar que os/as filhos/as das mulheres escravizadas nascessem livres a partir da data da promulgação da lei, o que aconteceu em 28 de setembro de 1871. Essa proposição ficou conhecida como Lei do Ventre Livre.

Ao longo dos debates parlamentares, os nomes das mulheres não eram citados, tampouco suas histórias pessoais. Discutia-se qual o destino dos “frutos da árvore” que continuaram pertencendo aos/às senhores/as escravocratas. Para muitos parlamentares, o projeto era inconstitucional, pois, se a mulher escravizada pertencia ao senhor, seus/suas filhos/as também lhe pertenciam. A solução para acabar com a escravidão, de forma indireta, gradual e controlada, não foi uma invenção do Brasil. No Canadá, país de Margaret Atwood, a lei que “libertou” o útero da mulher escravizada foi aprovada décadas antes do Brasil.

Assim como a protagonista do romance, Offred (Of Fred — de Fred), os sobrenomes das mulheres escravizadas eram uma declaração pública do título de propriedade. Eram Marias pertencentes aos Malheiros, Jacinta dos Reis. Como Offred, as mulheres escravizadas tiveram seu direito à maternidade negado. E, como Offred, as mulheres escravizadas eram estupradas para reproduzir. Contudo, ao contrário dos/as filhos/as que nascessem de Offred, os/as das mulheres escravizadas não iriam compor a sociedade, não seriam reconhecidos/as como filhos/as legítimos/as do senhor. Seriam registrados/as nos livros de contabilidade da família, ao lado da quantidade de galinhas e gado. Se houve um horror diante das imagens propostas por Margaret Atwood, eu tive de me curvar diante de um fato: a realidade histórica das mulheres negras escravizadas era incomparavelmente pior do que a de Offred. Por que o livro não foi considerado uma adaptação da história real de mulheres que foram submetidas à escravidão por séculos (a abolição no Canadá aconteceu em 1833, nos Estados Unidos em 1865, e no Brasil em 1888)? Por que aparece na classificação de “romance distópico, ficção científica, ficção especulativa”? Será que a verdade histórica é tão insuportável que se fez a opção por negá-la, apagá-la? Mas quem operou esse apagamento?

A farsa da suposta originalidade da história de Offred é uma obra de arte. Ela se apresenta diante de nós como o impensável, aquilo que nos tira o ar. A genialidade da autora é saudada por ter criado um mundo de horror para as mulheres e, ao fazê-lo, nos alerta: cuidado, isso pode acontecer. A imagem desse futuro habitado por mulheres-útero produz calafrios. Afinal, o romance é sobre um futuro distópico ou sobre um passado assombrado? Considerar a obra como “ficção” é negar a existência dessa experiência. Ou será que a obra foi escrita para mulheres brancas, as que nunca conheceram o horror de serem mulheres-útero? Por quase quatrocentos anos, mulheres negras foram abjetadas de suas condições de gênero.

Ao lê-lo pela segunda vez, já imersa nos estudos históricos, tive de me fazer esses questionamentos. Por que me tornei tão solidária a Offred e não percebi a farsa ali montada? Como meus sentidos de solidariedade ou de sororidade foram estruturados? Sou resultado daquele ato inaugural da República, uma memória em cinzas. O ato que fundou a minha memória aconteceu em 1890, quando o ministro Ruy Barbosa ordenou que todos os documentos referentes à escravidão desaparecessem. E assim foi feito. No dia 14 de dezembro de 1890, o ritual macabro de apagamento da memória teve início. Talvez para prevenir futuros pedidos de indenização dos/as senhores/as escravocratas ou para expressar simbolicamente o desejo da nação de se livrar da presença negra. Há, contudo, uma certeza: as fogueiras foram acesas e pilhas de documentos viraram cinzas. Um tipo de Holocausto da memória. Sou resultado dessa política intencional de conduzir nossas memórias e afetos para lugares inventados. A dor pelo sofrimento de Offred, eu senti na mesma medida do desconhecimento da história de mulheres reais, das que existiram antes de mim e, por caminhos que ainda desconheço, viabilizaram a minha existência. Não é possível relatar a si mesmo ou contar a história do Brasil sem fazer referência à escravidão. Eram os úteros das mulheres negras escravizadas que garantiam a estabilidade ontológica de todo sistema, mediante o princípio da hereditariedade biológica. Perto da tragédia das histórias de mulheres reais, Offred se transforma em uma conversa de salão no chá das cinco das sinhás.

Impossível escapar das políticas da memória promovidas pelo Estado. Ao longo da minha formação nas instituições formais de educação, nunca estudei a escravidão no Brasil. Um tipo de sequestro da memória reiteradamente praticada. Durante a minha formação como cientista social, a escravidão chegou até mim pelas mãos dos herdeiros escravocratas que passaram a ser o lócus produtor da verdade. Afinal, quem é aquele “nós” que aparece em Gilberto Freyre? Durante as décadas de 1980 e 1990, circulei em partidos de esquerda, me envolvi em discussões densas sobre estratégias e táticas na luta política, pensei o Brasil ao lado de camaradas que sonhavam com um país de liberdade e justiça social. E, naqueles espaços, vi companheiros/as sendo silenciados/as quando tentavam pautar a questão racial. Acompanhei os debates que Lélia Gonzalez e Carlos Alberto de Oliveira trouxeram para o pdt com um tipo de pé atrás próprio das esquerdas, afinal, tudo o que fugia aos embates sobre as lutas de classe deveria ser denunciado como “influência dos movimentos liberais dos Estados Unidos”. A questão racial se constituía como “uma não questão”. Dos movimentos sociais à universidade, aprendi que a escravidão no Brasil se diferenciava das demais pela bondade do/a senhor/a. Essa unidade funciona, de fato, como uma “estrutura de atitudes e referências”, conceito proposto por Edward Said (2020) para interpretar e mapear a base cultural que sustentou internamente a legitimidade do imperialismo, “em casa”. As “estruturas de atitudes e referências” não se referem a um grupo ou classe específica da sociedade; em vez disso, atravessam-nos transversalmente.

É como se o ato inaugural da República fosse reencenado todos os dias, em todas as esferas das relações sociais no Brasil, bem como um processo de produção incessante de sujeitos alienados de si mesmos mediante a incorporação de uma memória outra. A forma como se lê a História é um efeito de como as subjetividades são estruturadas. Por quem eu choro, com que me identifico? Sofri por Offred, mas não vi as mulheres escravizadas que fizeram o Brasil. E, com isso, dou meu testemunho do êxito da produção de uma estrutura de atitudes e referências, que localiza a escravidão como um ponto borrado em nossa História.

Não foi Offred, contudo, que me levou aos arquivos dos debates sobre a Lei do Ventre Livre, mas Jair Bolsonaro. Em 2018, após a sua eleição, eu me vi atormentada pela pergunta: “Como isso aconteceu?”. Acionei os instrumentos analíticos de que dispunha e acompanhei a produção de textos que começaram a ser publicados em profusão e que estavam imersos nesse mesmo turbilhão interpretativo: como explicar a emergência e a adesão a Bolsonaro? As interpretações foram múltiplas. Alguns localizaram na ausência de políticas da memória, no descuido do Estado brasileiro pós-ditadura, a explicação para o fato de um ex-militar, ao transformar a tortura e a morte em programa político, ter angariado adesão ao seu discurso. O referente histórico nesse campo interpretativo foi a ditadura militar. Não me convenci. Eu desconfiava de que Bolsonaro precisava ser enquadrado em uma perspectiva histórica de maior alcance. A genealogia política de Bolsonaro não começou nas casernas, mas nas casas-grandes. Essa foi a conclusão geral a que cheguei.

Durante a pesquisa sobre a Lei do Ventre Livre, articulei os objetivos específicos da pesquisa com o desejo de tentar encontrar linhas de continuidade entre os senhores escravocratas que usavam seu lugar de poder político, como parlamentares, e a posição política de Bolsonaro. Ou seja, tentei atar pontas, construir pontes e, a partir daí, sugerir uma cultura política que organizasse o Estado brasileiro e que tivesse na categoria abjeção dos corpos negros um dos seus núcleos estruturantes. Nessa empreitada de investigação, os clássicos da sociologia brasileira (Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior) passaram a fazer parte da estrutura de atitudes e afinidades que, no caso brasileiro, se caracteriza pela negação do racismo. A categoria abjeção, o terceiro termo ausente da dialética, lugar em que habitam os corpos que estão fora da ontologia, tornou-se central para produzir um tipo de espelhamento entre aqueles deputados que definiam a escravidão (leia-se: pessoas negras) como “cancro” da nação e as posições de Bolsonaro, que assumiu para si a tarefa de continuar o trabalho inconcluso dos/as senhores/as escravocratas: acabar com a presença negra no Brasil.

Inicialmente, a pesquisa se articulava em torno de perguntas sobre os debates internos do Parlamento (por exemplo: qual noção de gênero operava a interpretação dos parlamentares dos corpos das mulheres escravizadas?). Enquanto lia pesquisas historiográficas, fiz (e sigo fazendo) um tipo de letramento sobre as lutas de pessoas negras (antes e depois da abolição), aproximando-me também do feminismo negro. Comecei a fazer as leituras em contraponto, metodologia proposta por Edward Said, que nos alerta para não ficarmos em uma única narrativa. Foi no contraponto aos discursos dos parlamentares de 1871 que deparei com a resistência diária das pessoas escravizadas, o que me permitiu problematizar e discordar das interpretações sobre a passividade negra como um eixo estruturante da sociologia.

Ainda que os estudos que realizei dos anais e das pesquisas historiográficas tenham sido determinantes para os resultados que irei apresentar, meu objetivo é pensar como o passado segue operando na vida social brasileira, seja nas disputas internas dos feminismos, na psicanálise, na compreensão de mudança social (e sujeito histórico) e, principalmente, nas políticas oficiais do Estado brasileiro. Em outras palavras: nada do que se teorize sobre quem somos está acima ou fora do período colonial e escravocrata. Em linhas gerais, aponto como os marcos da escravidão devem nos orientar em nossas análises sobre as políticas e epistemologias vinculadas não apenas ao gênero, mas a todas as esferas da vida social.

O livro está organizado em três partes. Conforme disse, a pesquisa, a princípio, se concentrava exclusivamente nos debates parlamentares sobre a proposição do “ventre livre”. Embora outras perguntas tenham sido incorporadas ao longo da pesquisa, aquele momento histórico (de maio a setembro de 1871) passou a ser uma referência para as análises que irei apresentar. A Parte i é composta por dois capítulos. No primeiro, “Lei do Ventre Livre: Política de promoção da morte”, faço uma imersão nos debates parlamentares. Destacarei os principais pontos que mobilizaram os parlamentares, tanto os dissidentes quanto os governistas. Veremos como o “horror ao comunismo”, tão familiar em nossos dias, ali operava e fazia os parlamentares tremerem diante da possibilidade de perder suas propriedades, ou seja, as pessoas escravizadas. Analisarei os sentidos da expressão “abolição lenta e gradual” reiterada nos discursos, cotejando-a com uma proposta alternativa apresentada pelo deputado Perdigão Malheiro. O meu objetivo é perceber linhas de continuidade das ações do Estado em relação à população negra e tentar atar pontas das temporalidades entre o genocídio da população negra na contemporaneidade com as estruturas escravagistas, num esforço de fazer o passado falar como um lampejo do “agora”. A concepção de História que inspira minhas reflexões é a de Walter Benjamin (1986).

A interpretação que ofereço das disputas que aconteceram no Parlamento brasileiro não tem como objetivo exclusivo limitar-me à análise textual, mas tentar contribuir com as construções das genealogias em curso no Brasil sobre o racismo como um elemento estruturante da cultura política nacional, ou seja, das “estruturas de atitudes e referências”. Não tenho uma concepção de História que retém aqueles parlamentares como personagens históricos. Em vez disso, tento encontrar as continuidades de suas posições nas políticas do Estado. Desconsidero a palavra “ainda”, como é comum escutarmos (depois de mais de cem anos, “ainda” somos um país racista). O “ainda” pressupõe uma concepção de História fundada na noção de progresso, como se houvesse estágios de mentalidades e o racismo fosse uma sobrevivência que persiste mesmo depois de mais de um século do fim da escravidão. O trabalho do Estado tem sido exatamente o de não interromper a produção de corpos negros como abjetos. O segundo capítulo, “A guerra demográfica: Genocídio, genocidade e necrobiopoder”, será dedicado a discutir os conceitos de necrobiopoder, genocidade e abjeção, pilares fundamentais que sustentam as minhas análises.

A Parte ii, com três capítulos, tem como fio condutor a problematização dos sentidos conferidos à categoria gênero. O capítulo “Gênero: Uma categoria útil de análise?” tem como objetivo geral apontar os limites da categoria gênero quando se pensa nos corpos escravizados. O diálogo principal será com o texto de Joan Scott “Gênero: Uma categoria útil de análise histórica” (Scott, 1990). As mulheres escravizadas não eram mulheres, mas homo sacer, vidas matáveis. A categoria gênero, em vez disso, refere-se a corpos humanizados. Inicialmente, problematizo a centralidade da diferença sexual como definidor das masculinidades e feminilidades.

No capítulo “Diferença sexual e abjeção: Qual o gênero das negras escravizadas?”, articulo os conceitos de performatividade e interseccionalidade para interpretar o lugar que as mulheres negras escravizadas ocupavam na estrutura social. Destacarei como a diferença sexual produziu uma falsa interpretação de que mulheres livres e mulheres negras escravizadas habitavam o mesmo mundo ontológico do gênero, uma vez que trazem nos corpos as mesmas marcas da diferença sexual. Aqui, apresento a “honra” como atributo diferenciador entre o mundo das mulheres livres e das escravizadas. Retomarei o texto de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre (2006), lendo-o como um dispositivo intelectual que contribui para produzir a representação de que as mulheres da casa-grande e as negras da senzala, embora com certas diferenças, seguiam ocupando, na ordem de gênero, os mesmos lugares reservados ao feminino. Ou seja, como o gênero feminino (e uma suposta sororidade entre mulheres livres e escravizadas) se torna um elemento-chave na construção da democracia racial.

Em “Guerra feminista: Limites das categorias gênero e patriarcado”, apresento e discuto as divergências entre o feminismo negro e o feminismo que estou propondo nomear de “patriarcalista”. O cerne das disputas epistemológicas está no lugar que as categorias gênero, raça e patriarcado ocupam nas lutas políticas com recorte de gênero. Argumento que o feminismo patriarcalista, ao conferir à categoria gênero o caráter de variável independente para explicar as opressões e violências contra as mulheres, encontra no patriarcado o referente a operacionalizar suas leituras sobre as estruturas de gênero. O feminismo negro aponta que a raça aparece com anterioridade no posicionamento dos corpos das mulheres, não apenas nas estruturas de gênero, mas em todos os âmbitos das relações sociais. Essa anterioridade descentra o protagonismo da categoria patriarcado, que é ocupado pela “população negra”, tornando-se inseparáveis a compreensão e a transformação da exclusão das mulheres negras dessa população. Isso implica alianças com homens negros estranhas ao feminismo patriarcalista. Para analisar os antagonismos entre esses dois campos feministas, aproximo-me das interpretações oferecidas por ambos os feminismos para o feminicídio.

Na Parte iii, reúno capítulos que expandem o debate sobre racismo na psicanálise e no pensamento social brasileiro vinculado à tradição marxista. Aqui notaremos como a ideia das “estruturas de atitudes e referências” sobre a presença/ausência negra emerge. No capítulo “Quando a História começa? Lutas e revoltas negras durante a escravidão no Brasil”, discuto sobre os sentidos de “sujeito histórico”, aquele corpo político-ideológico que carrega e explicita as contradições fundamentais do sistema dominante. Parte considerável da historiografia brasileira considera que pessoas escravizadas nunca chegaram a ocupar esse lugar, uma vez que não reuniam as condições objetivas e subjetivas para reivindicar essa posição. Minha hipótese para a negação da presença das pessoas escravizadas no fazer da História está na filosofia da história hegemônica, que interpreta as transformações do mundo social pelas lentes da dialética. Nessa perspectiva, o terceiro termo, encarnado nos corpos abjetos das pessoas escravizadas, não passaria de fantasmas históricos. Ainda que haja uma longa historiografia que aponte as lutas e as resistências micro (na esfera doméstica) e macro (as revoltas e as organizações de quilombos) durante todo o período da escravidão, o olhar da historiografia de orientação marxista segue negando esse protagonismo.

Em “Qual a família da psicanálise? Entre a abjeção e a psicose cultural”, discuto como a ausência da categoria raça no mapa analítico da psicanálise contribui para a reiteração da “psicose cultural” brasileira, conceito que proponho para interpretar os efeitos da chamada “democracia racial”. A psicose cultural se caracteriza pela negação continuada da existência de estruturas sociais racistas. A ausência de pessoas negras na cena psicanalítica (seja como pacientes, seja como psicanalistas) se deve ao (não) lugar que as famílias negras ocupam no mapa epistemológico desse saber. Não se trata apenas da exclusão de pessoas negras como indivíduos, mas de uma população que é observada sob o signo do abjeto.

Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da UnB e pesquisadora do CNPq.


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você. 

Deixe o seu comentário

Novembro

Artigos Relacionados

TV Cult