ABC de Bourdieu

ABC de Bourdieu
O sociólogo Pierre Bourdieu (Pierre Verdy/ Getty Images)

 

Um glossário com os principais conceitos pensados pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, desde seu “capital cultural” até sua “violência simbólica”.

 

Capital cultural

 

Conjunto de qualificações intelectuais produzidas pelo sistema escolar ou transmitidas pela família.

Esse capital pode existir sob três formas: em estado incorporado, como disposição duradoura do corpo (por exemplo, a facilidade de expressão em público, o domínio da linguagem); em estado objetivo, como bem cultural (a posse de quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas); em estado institucionalizado, isto é, socialmente sancionado por instituições (como títulos escolares).

“O capital cultural é um ter convertido em ser, uma propriedade que se tornou corpo, parte integrante da ‘pessoa’, um habitus.”

Não se adquire nem se herda sem esforços pessoais, sem um longo trabalho de aprendizagem e de aculturação; tende a ser estreitamente correlacionado ao capital econômico do agente.

 

Capital econômico

 

Conjunto de recursos patrimoniais (terras, bens imobiliários, papéis de crédito) e de rendas, sejam ligados ao capital (aluguéis, juros, dividendos) ou a um exercício profissional assalariado ou não assalariado (honorários de profissões liberais, benefícios industriais e comerciais para empresários, operários e comerciantes).

 

Capital social

 

Conjunto de contatos, relações, amizades, obrigações, relações socialmente úteis que podem ser mobilizadas pelos indivíduos ou grupos ao longo de sua trajetória profissional e social.

Variável que confere ao agente maior ou menos “espessura” social, poder de ação e reação mais ou menos significativo em função da qualidade e quantidade de suas conexões.

A rede de relações é o produto de “estratégias de investimento social” que o agente, conscientemente ou não, desenvolve a fim de criar, manter, reforçar, reativar ligações das quais pode esperar a qualquer momento retirar “lucros materiais ou simbólicos”.

 

Campo

 

Espaço social estruturado e conflitual no qual os agentes sociais ocupam uma posição definida pelo volume e pela estrutura do capital eficiente no campo, agindo segundo suas posições nesse campo.

Cada campo – um “campo de força” de agentes e instituições em luta – é dotado de regras de funcionamento e de agentes investidos de hábitos específicos (campo universitário, campo jornalístico, campo literário etc).

“O processo de diferenciação do mundo social que conduz à existência de campos autônomos diz respeito tanto ao ser quanto ao conhecer: ao se diferenciar, o mundo social produz a diferenciação de modos de conhecimento do mundo; a cada campo correspondente de um ponto de vista fundamental sobre o mundo que cria seu objeto próprio e que encontra em si mesmo o princípio de compreensão e de explicação conveniente a este objeto.”

A lógica de um campo, a hierarquização dos interesses e a discriminação dos objetos pertinentes instituídos funcionam como um pano de fundo impensado das práticas dos agentes.

“Esquecemos que a luta pressupõe um acordo entre os antagonistas sobre aquilo pelo que merece que se lute e que é recalcado no aparentemente evidente, deixado em estado de doxa – ou seja, tudo o que faz o próprio campo, o jogo, os riscos, todos os pressupostos que se aceitam tacitamente, sem mesmo que os saiba, pelo mero fato de jogar, de entrar no jogo.”

doxa (opinião) é uma “fé prática”, experiência primeira do mundo, relação de crença imediata que nos faz aceitar o mundo como evidente, uma experiência primeira do social. Faz parte dos pressupostos de inclusão num determinado campo.

 

Distinção

 

Corresponde a uma estratégia de diferenciação que está no âmago da vida social. É uma propriedade relacional que marca um desvio, uma diferença com relação a outrem e que funda uma hierarquia entre indivíduos e grupos – é o suporte de estratégias inscritas nas práticas sociais.

Assim, a burguesia possui uma maneira própria de se distinguir, por seu “gosto”, da ostentação ou da vulgaridade (ou ao menos do que se julga como tal) dos “parvenus” (arrivistas), da pequena burguesia. Sua relação com a arte, pela qual se diferencia de outras camadas sociais, se opera sob o modo do distanciamento, naturalidade, da cultura discreta. Quanto menos ostensiva a intenção de parecer “distinto”, melhor.

Bourdieu foi prenunciado pelas análises do esnobismo social, intelectual e artístico feitas por Marcel Proust em Em Busca do Tempo Perdido.

 

Capital simbólico

 

Conjunto de rituais (como a etiqueta e o protocolo) ligados à honra e ao reconhecimento. É o crédito e a autoridade que conferem a um agente o reconhecimento e a posse das três outras formas de capital (econômico, cultural e social). Ele é o produto da “transfiguração de uma relação de força em relação de sentido”, designando o efeito de violência imaterial das outras formas de capital
sobre a consciência.

Um exemplo típico das transmutações das outras espécies de capital em efeitos simbólicos é o “grande nome” (de uma “grande família”), patronímico que condensa simbolicamente todas as propriedades materiais
e imateriais acumuladas e herdadas.

A compreensão da lógica dos efeitos simbólicos de posições e de recursos advém de uma “economia dos bens simbólicos” (da qual a economia propriamente “econômica” não é senão uma das dimensões), que dá conta das estratégias de acumulação, de reprodução e de reconversão das diferentes espécies de capital por um indivíduo, com vista a manter ou melhorar sua posição no espaço social.

 

Espaço social

 

Representação multidimensional e relacional da estrutura da sociedade de acordo com o volume e a estrutura do capital (econômico, cultural) em posse das diferentes classes sociais em conflito.

O conceito de espaço social permite ultrapassar as concepções naturalizantes do mundo social, que tendem a coisificar entidades ou oposições conceituais – que, para Bourdieu, são apenas projeções dos valores e categorias dominantes no momento (classes, possuidores/despossuídos, povo…). Essa coisificação favorece a ignorância da verdadeira lógica da dinâmica social.

Já o modo de representação espacial permite considerar a sociedade não como um mecanismo natural, mas como um “universo de propensões” (Popper) ou de tendências. Trata-se de um espaço de distribuição, ou seja, um vasto conjunto de posições hierarquizadas através de múltiplas dimensões (os campos e as espécies de capital que eles privilegiam).

O espaço social, recortado por tensões e dominações, “é definido pela exclusão mútua, ou distinção, das posições que o constituem, ou seja, como estrutura de justaposição de posições sociais, elas mesmas definidas como posições na estrutura de distribuição das diversas espécies de capital”.

 

Habitus

 

Noção que tem uma longa história, de Aristóteles a Norbert Elias, passando pelos filósofos medievais, Leibniz, Husserl e Merleau-Ponty. Talvez seja o conceito central do pensamento de Bourdieu, definido por ele como um sistema de “disposições duráveis e transponíveis”, isto é, que podem gerar práticas em esferas alheias àquela de origem, adquiridas pelo indivíduo no curso do processo de socialização que engendra e organiza as práticas e as representações de indivíduos e grupos. São potencialidades objetivas que têm a tendência a se atualizar e a operar nas práticas e representações que elas moldam de forma duradoura.

O habitus é produtor de ações e produto do condicionamento histórico e social – embora Bourdieu recuse a pecha de um determinismo social rígido, ao admitir uma margem de manobra para o “jogo” e a improvisação.

O habitus não pode ser revertido por uma mera tomada de consciência devido à profundidade com que se inscreve nos corpos, gestos e posturas. O habitus configura um universo de classificações e de possibilidades que o agente que o internalizou assume como apriorismos mentais e práticos que se fazem perceber mas não são necessariamente percebidos, muito menos explicitados num cálculo racional.

 

Hysteresis (do Habitus)

 

Do grego husterein: estar atrasado.

Associa-se à ideia de defasagem, descompasso (uma vez que, por exemplo, as estruturas sociais mudam e não são mais conformes àquelas que foram interiorizadas quando da formação do habitus).

 

Violência simbólica

 

Violência não percebida, fundada sobre o reconhecimento, obtida por um trabalho de inculcação da legitimidade dos dominantes sobre os dominados e que assegura a permanência da dominação e a reprodução social. Por exemplo, a transmissão da cultura escolar, que veicula as normas das classes dominantes, é uma violência simbólica exercida sobre as classes populares.

 


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