Karim Aïnouz: Fiz as pazes com a ideia de contar uma história
Karim Aïnouz: 'A arma com a qual eu consigo, de alguma maneira, me entender, é o cinema' (Foto: Loic Venance/AFP)
No Rio de Janeiro dos anos 1950, as irmãs Guida e Eurídice se desencontram. Guida se apaixona por um marinheiro grego e vai embora da casa dos pais para segui-lo pelo mundo. Volta algum tempo depois, abandonada e grávida, e é recebida a gritos pelo pai, Manuel, que a expulsa de casa. Por decisão do marido e do pai, Eurídice passa o resto da vida sem saber que sua irmã, confidente e melhor amiga, está de volta à cidade.
O novo filme de Karim Aïnouz, A vida invisível, parte dessa separação para explorar um tema caro ao diretor desde seu primeiro filme, O céu de Suely (2006): dinâmicas familiares. “Tinha um desejo muito grande de fazer um filme que, antes de qualquer coisa, fosse contra o patriarcado, mas que também questionasse a família de sangue, que tentasse falar da família como um lugar da escolha”, diz à Cult.
Mãe de um bebê recém nascido, Guida (Julia Stoklos) encontra suporte e afeto em Filomena, uma mulher solteira e sem filhos. Eurídice (Carol Duarte) se casa com Antenor (Gregorio Duvivier), um homem medíocre que sufoca seu sonho de se tornar uma pianista mundialmente famosa. “Acho que o grande tema desse filme é como a vida delas teria sido muito diferente se elas tivessem ficado juntas, diz. “É um filme sobre cumplicidade, sororidade, solidariedade – e sobre práticas e dinâmicas sociais que implodem essas possibilidades.”
Baseado no livro homônimo de Martha Batalha, A vida invisível foi o primeiro filme brasileiro a vencer a mostra Um Certo Olhar, parte da competição paralela do Festival de Cannes. Além disso, foi escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar. O filme, diz Karim, representa um segundo momento em sua carreira – ou o fim de um primeiro. “Se tem algo de aventura nova para mim nesse filme é o fato de eu ter feito as pazes com a ideia de estar contando uma história. Antes eu duvidava disso.” Leia íntegra da entrevista abaixo.
O que te fez querer levar essa história para o cinema?
Num primeiro momento encontrei no livro uma série de coisas que eram muito próximas da minha experiência pessoal, da família da minha mãe e da geração dela. Em 1993, eu fiz um filme – meu primeiro – sobre a minha avó, uma mulher que, na década de 1930, se separou e teve que criar as filhas sozinha. Depois disso, fiquei com vontade de fazer um filme sobre a minha mãe, e vi ela dentro daquele livro. Veio o ímpeto de contar como é que essas mulheres, que hoje estão nos seus 90 anos, chegaram até aqui. Como elas sobreviveram. O filme começa desse lugar muito privado, e vai para a ideia de fazer uma crônica do que era a vida dessas mulheres num momento histórico em que você não tinha a revolução sexual, a pílula anticoncepcional e uma série de conquistas que surgem a partir da década de 1960. E entender como é que algumas coisas mudaram para melhor e como algumas permaneceram igual. Tinha um desejo muito grande de fazer um filme que, antes de qualquer coisa, fosse contra o patriarcado, mas que também questionasse a família de sangue, que tentasse falar da família como um lugar da escolha. Falar não só da toxicidade do machismo, mas dessas relações de sangue. Isso era muito bacana na personagem da Guida e muito triste na personagem da Eurídice. É um tema que me interessa desde que eu comecei a fazer cinema: como é que a gente vive junto, como é que a gente constrói famílias que são eleitas, e não impostas pra gente.
O filme não mostra Guida e Eurídice como vítimas do patriarcado, mas foca no que elas têm de potência, resiliência, e como elas constroem essas outras relações que são muito baseadas na solidariedade. Era essa a ideia desde o princípio?
Na mosca. O filme é sobre cumplicidade, sororidade, solidariedade – e sobre práticas e dinâmicas sociais que implodem essas possibilidades. E “solidariedade” é uma palavra que está meio que sumindo, entende? Isso me deixa muito assustado. Eu não estou falando de “empatia”, porque acho esse negócio um pouco patronizing. Eu estou falando de outra coisa, de relações humanas baseadas na solidariedade mesmo. E cada cena que a gente escrevia tinha que ser sobre isso, e mais, sobre o quão trágico pode ser quando você não tem essas relações, que é um pouco o que acontece na vida dessas meninas. Mas sem vitimizá-las em nenhum momento, porque eu nem acho que essa é uma matéria dramatúrgica interessante. O melodrama não trabalha na chave da vitimização, mas da resistência, da resiliência. Acho que o grande tema desse filme é como a vida delas teria sido muito diferente se elas tivessem ficado juntas. A vida delas foi destruída porque elas não ficaram juntas, e as duas resolveram isso de maneiras distintas. Nenhuma perdeu a dignidade, uma coisa me lembra muito a minha avó. Ela nasceu em 1905, no Ceará, casou, teve duas filhas e aos 23 anos o marido foi comprar cigarro e nunca mais voltou. Ela nunca conseguiu emprego porque ninguém dava emprego para uma mulher separada, então ela começou a trabalhar dentro de casa, costurando. Eu nasci e minha avó já tinha mais de 70 anos, ela morreu aos 108 e eu nunca vi essa mulher chorar, reclamar. Era isso o que me interessava – principalmente na personagem da Eurídice, que é quem fica viva até o final. Falar de solidariedade e do preço altíssimo que existe quando esses laços são rompidos. E falar disso politicamente.
Acha que essa história vai se conectar politicamente com o público?
Eu aposto nisso. Tenho a sensação de que quando a gente sai de casa, quando liga a televisão, a gente não quer ver o que estamos vendo aqui. Não sei quão produtivos são esse realismo e esse naturalismo, inclusive para pessoas mais jovens. E eu já fiz isso, mais naturalista que O céu de Suely não tem como. Também existe uma vontade minha de experimentar outra maneira de contar história, falar do que está acontecendo agora, mas sem filmar o agora. Porque aí eu posso entrar num registro mais fabular, um registro que é do artifício e não do naturalismo. Como é que você faz um filme sobre um país que tem um estupro a cada 11 minutos? Como é que fala disso? Eu acho que você fala disso de uma maneira discursiva ou sensorial. Então a aposta é essa: de que fazendo um filme que se passa há 50 anos, mas que trata de questões que infelizmente tem permanências, eu possa ser mais contundente do que falando diretamente das questões que vivemos hoje. Alguém vai querer sair de casa pra ver uma história de alguém que foi assassinado por um crime de ódio sexual? Eu preciso falar desse assunto, mas eu posso fazer isso através da época e do gênero, através de códigos que possam te afetar sem necessariamente te descrever e explicar.
Era importante que não fosse uma história com final feliz?
Eu acho muito bacana quando você sai de um filme triste, e também com raiva. A operação política nesse lugar da narrativa se dá muito aí. Eu te confesso que em um determinado momento da montagem ela não encontrava a sobrinha-neta, ela só encontrava as cartas, ia para aquela varanda da casa e ficava ali sozinha. Mas algo faltava. Não é uma ponta de esperança [o encontro com a sobrinha-neta], porque também não é como se ela fosse viver mais dez anos. A crueldade era um ponto muito importante nesse filme, porque a condição daquelas mulheres naquele momento era cruel. Era importante que não fosse um filme fofo, mas também era importante que em algum momento essa personagem tivesse algum afago da vida.
A intenção foi operar mais no campo da emoção e menos no do choque, como em Bacurau, por exemplo?
Sim, a operação do melodrama é essa. Como é que você cria alguma empatia com personagens que são asfixiadas? Essa é a definição de melodrama, que é um gênero muito comum em épocas de crise, muito produtivo. Porque a gente está sendo asfixiado constantemente, ou pelo capitalismo ou pelas consequências dele. E há um desespero do patriarcado para se manter a qualquer custo e a qualquer preço, não só no Brasil, mas no mundo. Por definição, o melodrama é a história de alguém que está tentando colocar a cabeça pra fora da água enquanto o mundo quer que ela se afogue. É isso o que estamos vivendo.
Como surgiu esse conceito de melodrama tropical?
Surgiu quando o filme ficou pronto, não foi um cálculo. Era muito importante pra mim estar nesse lugar do melodrama primeiro por uma questão muito pessoal, porque é um gênero que eu adoro, me comove, gosto de ver – e hoje em dia penso muito nos filmes que vou fazer como filmes que eu gostaria de ver. Eu me lembrava muito do melodrama egípcio, mexicano, o melodrama americano de família da década de 50; o pequeno-burguês da França do século 18, e me perguntava o que é o melodrama brasileiro. Como é que a gente traduz esse gênero, se apropria dele e faz com que ele seja só nosso? E aí veio essa palavra tropical, que me pareceu adequada. Então fui tentar entender quais são os nossos códigos.
Essa procura passou pelas telenovelas?
Claro. Tinha algo ali no começo da teledramaturgia, nos anos 70, que me interessava enquanto uma semente do que depois viria a ser a teledramaturgia como conhecemos hoje – uma versão desidratada, anêmica perto do que já foi. Mas também tinha um desejo de falar com um público maior. E digo sem nenhum problema, explicitamente. Desejo que vem de um certo desespero, quando você vê que, em outubro de 2018, 52 milhões de pessoas escolheram um país… [pausa]. Que país é esse e quem são essas pessoas? Claro que isso [a eleição de Bolsonaro] foi depois do filme, mas já era algo eu estava sentindo depois do impeachment.
A vida invisível difere bastante dos seus demais filmes. Onde ele se insere na sua obra?
Não sei se eu tenho obra, não gosto de pensar assim. A minha obra é um eterno aprender. Sei que isso parece bobo, mas antes de Madame Satã eu só estive em um set de cinema na minha vida. Eu fui fazendo. Dos filmes que eu já fiz até hoje, talvez A vida invisível seja o começo de um segundo tempo ou final de um primeiro. Se tem algo de aventura nova para mim nesse filme é o fato de eu ter feito as pazes com a ideia de estar contando uma história. Antes eu duvidava disso. Eu sempre me interessei por outras coisas, pela sinestesia, pelo sensorial, o fluxo, o retrato de um personagem. Achava que “contar história” era uma camisa de força. E nesse projeto pensei, bom, vamos lá. Vou fazer uma adaptação literária, trabalhar um gênero clássico e contar uma história clássica. E eu vou te falar que eu gostei. Foi uma delícia fazer porque eu consegui dizer algumas coisas que eu queria com mais clareza, mas não com menos poesia. Fiz as pazes com isso, acho que tudo bem contar história. E eu nunca achei que era tudo bem. Vamos ver até quando vou achar isso.
O que A vida invisível diz para esse Brasil de hoje?
Fala “não vamos fazer isso de novo, não?”. Não vamos mentir, não vamos tentar salvar a família a qualquer custo e a qualquer preço. Deixa as pessoas serem o que elas são. Parece um pouco banal dizer isso, mas é muito sério. Deixa as pessoas terem sua própria voz. É disso que o filme fala no título, inclusive. É sobre a vida invisível, a voz silenciada, a vida apagada. A sensação que eu tenho no Brasil especificamente é de desamparo. É um pouco o que você sente com a Eurídice no final do filme.
O audiovisual vem sendo um alvo de Bolsonaro, que ataca principalmente produções LGBT. Qual deve ser a postura dos realizadores diante disso?
É um momento trágico, assustador, mas também nunca foi tão importante abrir câmera. É um desastre, mas não vão nos calar. É um negócio assassino, um plano de extermínio, de desmonte. A maneira como eu sei responder é fazendo cinema. A arma com a qual eu consigo, de alguma maneira, me entender, é o cinema. E acho que teve um negócio maravilhoso no audiovisual nos últimos dez anos que é: hoje eu pago meu aluguel com isso, o que não acontecia há 20 anos. Mas a gente também não pode perder a potência do amadorismo, porque ele é um ato político radical no momento em que a gente vive, no audiovisual especificamente. E ele é possível.