‘A vida invisível’: entre o segredo e o sofrimento
Julia Stockler como Guida em 'A vida invisível', do cineasta cearense Karim Aïnouz (Foto: Diuvlgação)
As famílias têm segredos. E o que faz do segredo, segredo? Por que algo não pode ser dito? Medo de perder a honra. O que é honra? O cimento simbólico mais importante da família. Aprendemos que a honra é relacional. Ser um homem honrado depende do comportamento da mulher. Daí a fragilidade deste cimento. Dependo do comportamento do outro para ser o que sou. E quando o vínculo é rompido, os ossos são expostos. Guida, personagem do filme A vida invisível, de Karim Aïnouz (baseado no livro de Martha Batalha) será o personagem responsável pela (quase) fratura exposta da sua família. Após um tempo fora de casa, Guida volta grávida. Seu pai sabe que teria que carregar o peso desta vergonha insuportável. Expulsa-a. O pai da criança nega a paternidade. O pai de Guida, nega-lhe tudo: casa, comida e o encontro com a irmã Eurídice. Produziu-se um segredo.
Eurídice assume o lugar de Orfeu e, movida pela música de seu piano, busca Guida, sua irmã. Guida também tenta encontrar Eurídice, escrevendo-lhe cartas, inutilmente. O fiel guardador do segredo da família e das cartas torna-se o marido de Eurídice. Os anos passam. Guida, mãe solteira, inventa outra família, estratégia recorrente daqueles expulsos de suas famílias consanguíneas.
Segredo e sofrimento parecem ser irmãos gêmeos nestas estruturas familiares que operam o controle da vida dos seus membros pela heteronormatividade. Guida transforma-se no fantasma, aquele exterior constitutivo da vida organizada daquela família suburbana. É na díade presença-ausência de Guida que a família vê seu lastro moral ser preservado. Na casa dos homens, o pai de Guida conta o segredo para o marido de Eurídice. Guida estava no Rio e era mãe de um pequeno bastardo. O marido transmite a responsabilidade pela manutenção do segredo para o filho.
Logo após o surto de Eurídice, um buraco temporal se abre na narrativa fílmica. Vamos reencontrá-la velha, viúva e amparada por seus dois filhos. Eurídice, a pianista, que magicamente ficava invisível quando era feliz (ao tocar seu piano); Eurídice que, ao buscar a irmã buscava a si mesma, também morre quando sabe da suposta morte da irmã. Eurídice torna-se visível socialmente, cumprindo com os mandamentos: torna-se esposa e mãe.
Se não há nenhum personagem masculino no filme que nos permita relativizar a miséria do significante “homem”, a obra apresenta, como uma estrada marginal, uma terceira alternativa ao binário Eurídice (a mulher que tentava fugir, mas sempre era captura pelas normas) e Guida (e seu proto-feminismo). O terceiro termo desestabilizador está em Filomena. A mulher que acolhe Guida e seu filho e que ri um sorriso cansado diante da busca inútil de Guida por um homem. A solidão da mulher negra transforma-se em sabedoria e generosidade.
Seria a história de Guida e Eurídice testemunho de um passado que não nos assusta mais? Estaria superada a noção de honra, que sustenta a família e faz com que o indivíduo desapareça e dê lugar aos desejos de reprodução das normas? Tenho como hipótese que a honra familiar, mesmo em contextos urbanos e individualistas, continua operando como força regulatória da vida. Mas agora não são apenas as mulheres que podem manchar o lar, o bom nome da família, mas (e principalmente), os filhos gays, trans, lésbicas. Como explicar a interjeição: “prefiro um filho morto a um filho gay”?
A honra vive ainda seu momento de glória.
Berenice Bento é professora do departamento de Sociologia da UnB