Em livro de memórias, psicanalista relembra vida ao lado de Lacan

Em livro de memórias, psicanalista relembra vida ao lado de Lacan
O filósofo e psicanalista Jacques Lacan (Reprodução)

 

Em um final de domingo de 1974, preso no congestionamento ao voltar de sua casa de campo em Guitrancourt, norte da França, Lacan não pensou duas vezes ao jogar o carro no acostamento para cortar o trânsito. Parado pela polícia, inventou algo sobre uma urgência médica. Em sua companhia estava a escritora e psicanalista Catherine Millot, que narra o episódio em A vida com Lacan, publicado em agosto no Brasil pela editora Zahar.

Analisanda, amante e amiga do psicanalista entre 1972 e 1980, Millot reúne no livro lembranças relacionadas à convivência de oito anos com o psicanalista. “Escrevi para reviver os velhos dias e acabei reencontrando um Lacan ainda muito vivo”, afirma em entrevista por e-mail à CULT. Há desde lembranças corriqueiras até tentativas de desvendar a personalidade do psicanalista.

Em outro caso narrado pela autora, por exemplo, Lacan se recusa a entregar dinheiro a bandidos que invadem o seu consultório e por isso leva um golpe no maxilar – motivo pelo qual passa a carregar consigo um pequeno soco inglês. Nas muitas viagens que fizeram, principalmente à Itália, Millot guarda a lembrança de um homem obstinado, que insistia junto a seguranças de museus para que pudesse visitar exposições em horários proibidos.

“Conhecer Lacan ajuda a compreender, por exemplo, sua teoria do desejo. Ele a encarnava, era ele mesmo eminentemente um homem de desejo, um desejo livre de entraves neuróticos, um desejo ‘decidido’, livre das ambivalências que nos enreda”, afirma Millot. Ela afirma que sua intenção não foi fazer grandes revelações, mas apresentar ao leitor um “retrato mais fiel possível e que lhe faça justiça”.

A escritora Catherine Millot, autora do livro 'A vida com Lacan' (Foto Yann Revol / Divulgação)
A escritora e psicanalista Catherine Millot, autora de ‘A vida com Lacan’ (Yann Revol/Divulgação)

Formada em Letras, Millot leciona no departamento de psicanálise da Universidade Paris VIII desde 1975. Acredita que seu encontro com Lacan foi fundamental para guiar suas pesquisas na psicanálise, já que “ele foi um mestre tanto pelos seus ensinamentos como pela maneira de ser no mundo”.

“O encontro com Lacan estava-me destinado. Eu seria, talvez, psicanalista sem ele, mas certamente não da mesma maneira”, diz. Suas pesquisas, por outro lado, também podem ter influenciado o psicanalista, já que na mesma época em que Millot estuda a poeta e líder religiosa Hadewijch de Antuérpia, Lacan introduz o tema do gozo e do misticismo em seus seminários.

Millot, que acompanhou o psicanalista até a sua morte, em 1981, relembra como ele ficou cada vez mais obcecado pelos nós borromeanos ao final da vida. A tríade, que em sua teoria representa a interação entre o Real, o Imaginário e o Simbólico, era constantemente desenhada por ele com cordas.

“Lacan não era diferente como analista e como pessoa. Eu diria que ele era todo uma única peça”, afirma. “Talvez fosse o tempo todo analista, isto é, ele se afastava dos preconceitos e de qualquer posição de julgamento em sua relação com qualquer pessoa. Ele dava o sentimento que você estava livre para ser você mesmo.”

 

 

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