A tragédia da política
Há uma continuidade profunda e fundamental entre O Príncipe e Hamlet, que se deve a terem ambos uma plena compreensão da natureza trágica da ação política
São bem conhecidas as páginas em que Nicolau Maquiavel diz que o príncipe que deseje engrandecer sua pátria deve “aprender a não ser bom” e dispor-se, se o exigirem as circunstâncias, a perder a alma em prol de seu Estado. São também célebres as passagens em que ensina que, como “a fortuna é mulher”, o príncipe deve tratá-la impetuoso e impiedoso, porque só assim conseguirá conquistá-la. As duas recomendações nos fazem conceber o herói maquiaveliano como um homem de ação, capaz, num contexto de incerteza e insegurança, de escolher uma via, adotá-la determinado e não olhar para trás.
Quando se compara esse personagem com o que menos de um século depois William Shakespeare nos ofereceria, em sua obra mais famosa e enigmática, saltam à vista as diferenças. Porque em Hamlet, ao contrário de Maquiavel, o príncipe, em cuja alma atormentada duelam sem quartel sistemas éticos opostos, e que enfrenta – também ele – um mundo incerto e cheio de riscos, não age, mas demora, dilata a vingança, vacila, dá mil voltas. Procrastina. Não se decidindo a agir, o príncipe de Shakespeare parece, diferentemente do de Maquiavel, não só experimentar a vivência subjetiva do trágico, como esgotar todo o seu ser nessa experiência sem saída.
Contudo, sob essa diferença entre os tipos de experiência íntima desses dois príncipes renascentistas que ora comparamos, é possível notar uma continuidade mais profunda e fundamental, que se deve a haver em Maquiavel – como mais tarde na tragédia isabelina – uma plena compreensão da natureza trágica da ação política. Que nada tem a ver com o fato, relativamente anedótico, de que o príncipe seja mais – ou menos – temerário ou circunspeto, mas com a compreensão teórica de que a ação ou a inação dos homens sempre se desenvolve ante um vazio último de determinações e garantias.
Em primeiro lugar, de garantias morais: os sistemas de valores que se enfrentam no espírito do príncipe são incompatíveis e incomensuráveis, não há nenhuma “meta-moral” que nos diga qual deles é melhor ou “mais” moral, e qualquer opção implica perder algo pelo caminho. Em segundo lugar, de garantias de êxito: por virtuoso que seja o ator político, a fortuna nunca deixa de governar “a metade de suas ações” e por isso o melhor plano pode fracassar. Com essas duas descobertas fundamentais, Maquiavel inaugura a história do pensamento político moderno como a história de uma aventura incerta, perturbadora e fascinante.
(trad. do espanhol por Renato Janine Ribeiro)
Eduardo Rinesi
doutor em Filosofia pela USP; seu doutorado – Política y tragédia: Hamlet, entre Maquiavelo y Hobbes -– saiu pela editora Colihue, Buenos Aires. Leciona na Universidade de Buenos Aires e nas Universidades Nacionais de General Sarmiento e da Patagônia.
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– Maquiavel republicano, Newton BIGNOTTO. Loiola.
– Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, Antonio GRAMSCI. Civilização Brasileira. ?
– As formas da História, Claude LEFORT. Brasiliense.?
– Maquiavel, Quentin SKINNER. Brasiliense.
– Fundações do pensamento político moderno, Quentin SKINNER. Companhia das Letras.?
– “A originalidade de Maquiavel”, em Estudos sobre a humanidade, Isaiah BERLIN. Companhia das Letras.
– “Nota sobre Maquiavel”, em Signos, Maurice MERLEAU-PONTY. Martins Fontes.
– Política y tragédia: Hamlet, entre Maquiavelo y Hobbes, Eduardo RINESI. Editora Colihue (Buenos Aires).
– O sorriso de Nicolau – História de Maquiavel, Maurizio VIROLI. Estação Liberdade.
– Biografia de Nicolau Maquiavel, Roberto RIDOLFI. Editora Musa.
– Maquiavel e a Itália da Renascença, J.R. HALE. Jorge Zahar.