A solidão de quem morre e de quem fica

A solidão de quem morre e de quem fica
Sepultamentos de pessoas no cemitério N.S. Aparecida, em Manaus (Foto: Fernando Crispim/Amazônia Real)

 

Ultrapassada a sombria marca de cem mil mortos por covid-19 no Brasil, a leitura do poema “Como sumir com o cadáver?”, de Suene Honorato, faz ressoar o apagamento das mortes e o seu impacto nefasto, presente e futuro, sobre todos nós como sociedade. Presente no poema, o recurso ao pensamento e aos rituais indígenas nos lembra que a morte diária de multidões não é novidade nessas terras, mas que poderia e deveria ser tratada de outra maneira que não com a displicência oficial, com o delírio negacionista, a frieza dos números e a solidão dos isolados (mortos e vivos). Comecemos pela última estrofe:

Pra que não fiquemos
cada vez mais pobres
cada vez mais ódio
olhando o cadáver
que dói,
ele sangra ainda
, sequer apodrece.

Uma das maneiras ocidentais de ritualizar a morte, o enterro é fundamental para aqueles que ficam, os vivos. O rito coletivo cumpre a função de organizar um acontecimento terrível e grande demais para ser assimilado individualmente. No poema, Honorato descreve um rito fúnebre antropofágico dos Wari: as pessoas que não eram parentes do morto iam comendo devagar até que o cadáver sumisse e os parentes compreendessem que o morto não era mais gente e assim começava a elaboração do luto. O corpo precisa ser visto, consumido como morto para que ele possa desaparecer e os vivos possam continuar a viver. A diversidade de culturas e tradições é uma diversidade de técnicas e formas de fazer a última travessia, tão incompreensível quanto garantida. Num tempo de mortes em massa, já banalizadas sob o símbolo universalizador e anti ritual das cifras, vale aprender com os que ainda sabem algo sobre morrer em comunidade, ainda que tão ou mais atingidos do que nós pela pandemia. É preciso aprender com os indígenas e com o poema essa forma superior de nós: o îandé.

Os índios deste continente têm sido descritos como especialistas em fins do mundo, a invasão europeia sendo o primeiro deles, seguido de outros: as mortes de milhões por infecções bacterianas e virais, a destruição dos ecossistemas, as desapropriações e assassinatos pelos militares, a luta contra garimpeiros e o retorno das epidemias produzidas fora, fruto de processos de modernização destruidora, que recaem justamente sobre os que mais resistem a esse processo. A pandemia de coronavírus repete de certa maneira, em escala global, aquele primeiro genocídio indígena. Sentimos agora a incompreensão diante do absurdo de uma quantidade monumental de mortes invisíveis, difíceis de ser simbolizadas, difíceis de serem adaptadas aos ritos que ajudam os que sobreviveram a seguir com a vida. Suene Honorato escreve:

Será que agora
somos todos indígenas
diante da doença desconhecida
aportada há séculos?

Uma das crueldades específicas dessa pandemia é a solidão tanto de quem morre quanto dos que ficam. Com o isolamento dos doentes em UTIs, parte do processo de adoecer e morrer na presença dos entes queridos é suprimido. As pessoas morrem sem que as vejamos adoecer e sem que possamos nos despedir. Circulou pelo mundo a dolorosa foto de um jovem palestino que escalou a janela do hospital para ver a mãe adoentada (e também para ser visto). Estamos diante de uma causa de morte invisível. E aos poucos, os contaminados são isolados e também desaparecem. Por fim, há apenas um velório de caixão fechado. A pessoa se transforma em estatística, é ignorada ou até mesmo negada por parte da população. Resta aos seus familiares um sentimento de alienação, de desligamento da experiência própria, dramática, da aparente passividade do resto do mundo. Nossas maneiras de ritualizar a doença e a morte e nosso processo de despedida (já bastante esterilizado na Modernidade) não dão conta, fazendo com que o absurdo da partida permaneça em estado de absurdo: uma morte difícil de aceitar que mantém o morto no mundo dos vivos e, ao mesmo tempo, prende os vivos no mundo dos mortos. O poema descreve:

Vivos estamos ainda
–se não nos enganamos–
com abraços falhados na despedida,
a máquina do luto enguiçada”.“Como sumir com o cadáver?
Ele dói, ele sangra ainda.

O direito primordial de enterrar os mortos seguindo ritos fúnebres, rememoração coletiva última, aparece na literatura ocidental desde sua primeira grande obra, a Ilíada. Um pai enfrenta o terrível assassino do seu filho em nome de um direito maior do que a guerra e as leis humanas, amparado apenas pelos deuses: é Príamo que roga a Aquiles para suspender a profanação do corpo de Heitor e o devolver para os ritos fúnebres. Um dos maiores dramas políticos da Grécia Antiga também trata desse direito: uma mulher decide questionar a ordem política inteira, arriscando a vida ao desobedecer um decreto real em nome do direito primordial de enterrar seu irmão morto: é Antígona desafiando Creonte pelo direito de enterrar Polinices. Sem o enterro digno a morte segue viva. O poema de Honorato lembra a persistência desses corpos esquecidos e pergunta:

Como sumir com o cadáver?
Ele dói, ele sangra ainda.

Se os indígenas são especialistas em morrer e sobreviver, os militares sul-americanos são especialistas em sumir com corpos. Sem corpo não há ritual a ser efetuado e os mortos não conseguem morrer, nem os vivos seguir com a vida. Nossa democracia é assombrada pelos fantasmas dos militantes e dos índios desaparecidos. E assim como os militares eram especialistas em sumir com corpos durantes as ditaduras, hoje as polícias militares continuam com sua prática profana: Cláudia Silva Ferreira teve seu corpo arrastado por um carro da Polícia Militar no Rio de Janeiro, repetindo com uma banalidade abismal o cortejo de Aquiles com o corpo de Heitor diante de Tróia.

Bolsonaro, produto e herdeiro das ditaduras, segue a mesma prática. Esconde os números de mortos pela covid-19 a tal ponto que os grandes jornais precisam fazer um consórcio independente para ter acesso a dados realistas. Ele decapita uma a uma as cabeças dos ministros da saúde, pois a máquina precisa ser travada, não pode funcionar, nem que seja nas mãos de um aliado. Sai em público e vai às redes reiteradas vezes para dizer coisas contraditórias (o vírus não é perigoso ou o vírus é perigoso e mata muito, mas a culpa não é minha, é dos governadores) com o mesmo objetivo de negar as mortes. Com isso, acelera a contaminação geral e causa mais mortes a serem escondidas. Os mortos morrem aos milhares sem serem reconhecidos pelo Estado ou pela sociedade, e na passagem da vida à morte eles e suas famílias deixam de ser gente para se transformar em número. Repetem assim a tragédia dos indígenas nas primeiras décadas do descobrimento. Suene Honorato pergunta, de novo:

Será que agora
somos todos indígenas
diante da impossibilidade
deles tão conhecida
de velar os mortos?

Já ultrapassamos o número oficial, subnotificado, de cem mil mortos por coronavírus. Multipliquemos esse número por familiares e amigos e estamos falando de mais de um milhão de pessoas que não tiveram a oportunidade de acompanhar o processo de adoecimento e de ritualizar apropriadamente a morte. A mentira oficial de um lado e o negacionismo histérico do outro bloqueiam o processo já naturalmente difícil de elaboração do luto. Não há dúvida de que sairemos dessa pandemia transformados como sociedade, não apenas pela ausência dos mortos, mas pela sua presença corrompida. Uma das vozes no poema de Suene Honorato informa sobre a situação de hoje no Xingu e sintetiza a nossa impossibilidade, de todos, de ritualizar coletivamente essa centena de milhares de mortes:

os tempos se confundem no cancelamento do Kuarup não vamos celebrar os mortos do ano passado e como nossas famílias sairão do luto e as mortes deste ano se acumularão de novo até quando

Até quando? O Kuarup existe porque parte de uma verdade que nós, outros, talvez tenhamos esquecido. A verdade só aparentemente contraditória de que esconder o corpo é diferente de esconder a morte. Pelo contrário, quanto mais escondida, mais a morte permanece, retorna. Se esquecemos, a história do Brasil não esquece. Quanto menos lembrados os mortos pela invasão européia, quanto menos lembrados os mortos pela escravidão, quanto menos lembrados os mortos pela ditadura, cada vez mais aparecem mortos nas ruas, nas esquinas e nas calçadas. Outras vozes do poema, diversas em suas histórias, comunais na repetição da violência e na ausência de luto, dizem:

“Eu não consigo respirar”
no cemitério-oceano Atlântico
“Eu não consigo respirar”
no Reformatório Krenak
“Eu não consigo respirar”
nos porões do DOPS
“Eu não consigo respirar”
no feminicídio”

Se quisermos sobreviver para além de uma sobrevida carregada de mortes mal morridas, é preciso – apesar de tudo – uma vida em que não “carreguemos um cemitério sobre as costas”. É preciso aprender com esses especialistas na morte e na sobrevivência a manter, adaptar e recriar rituais para os nossos mortos. É preciso lembrar de seus nomes antes de eles irem, para que possam ir e para que os que ficam possam ficar. Uma voz Yanomami, diz, como vêm dizendo há séculos: “todos os parentes ficaram com muita raiva de tanta morte de novo, não bastava o sarampo que seu povo sequer conseguia enlutar. Foram milhares de anos elaborando com o Omama o ritual para que a floresta continue de pé e os corações saibam lidar com o sofrimento e a morte e o céu não caia sobre nossas cabeças”. É preciso continuar elaborando o ritual, mesmo que o céu tenha caído (de novo).

***

Por todos os lados
na curta estrada da casa
a morte espreita
na dobra da página
sem ser sepultada.

Como sumir com o cadáver?
Ele dói, ele sangra ainda.

O governo tem a solução
: não falemos sobre o cadáver
, não pensemos sobre o cadáver
, não choremos sobre o cadáver
, não nos identifiquemos com o cadáver
nós que vivos estamos!
, não carreguemos um cemitério sobre as costas
que peso!
Vamos fingir que os mortos não morreram
para fingir que os vivos ainda vivem.

Vivos estamos ainda
–se não nos enganamos–
com abraços falhados na despedida,
a máquina do luto enguiçada.
Economia não pode consertá-la.

Já não podia:
“Eu não consigo respirar”
no cemitério-oceano Atlântico
“Eu não consigo respirar”
no Reformatório Krenak
“Eu não consigo respirar”
nos porões do DOPS
“Eu não consigo respirar”
no feminicídio

Será que agora
somos todos indígenas
diante da doença desconhecida
aportada há séculos?

Economia está furiosa!
Não quer o tempo do luto.
Vai moer os mortos
e oferecer em bandejas
no supermercado a preço de custo.

No massacre de Haximu,
crianças e mulheres assassinadas a facão pelos garimpeiros invasores não puderam ser enlutadas as cinzas de seus ossos não foram comidas com mingau de banana nas festas reahu e Davi Kopenawa Yanomami e todos os parentes ficaram com muita muita raiva de tanta morte de novo não bastava o sarampo que seu povo sequer conseguia enlutar e foram milhares de anos elaborando com o Omama o ritual para que a floresta continue de pé e os corações saibam lidar com o sofrimento e a morte e o céu não caia sobre nossas cabeças mas agora parece que caiu que vão fazer com o cadáver

Consumir o cadáver?
os Wari até um dia desses assavam o corpo do morto num moquém funerário e as pessoas que não eram parentes do morto iam comendo devagar até que o cadáver sumisse e os parentes compreendessem que o morto não era mais gente e assim começava a elaboração do luto ritual que as missões novas tribos destruíram em poucas décadas demonizando tudo o que era deles tudo em que eles acreditavam e eles que não queriam ficar sozinhos depois de mortos foram um a um se convertendo porque então tá bom lá no céu vamos voltar a fazer nossos rituais

E os rituais no país da mercadoria
que se crê civilizado
com corpos embalados por dinheiro
engravatados na grana
com rezas carpidas à moeda
nem esses
sobrevivem
à covid.

Enquanto isso, no Xingu
os tempos se confundem no cancelamento do Kuarup não vamos celebrar os mortos do ano passado e como nossas famílias sairão do luto e as mortes deste ano se acumularão de novo até quando

Será que agora
somos todos indígenas
diante da impossibilidade
deles tão conhecida
de velar os mortos?

E já perdemos
todos nós perdemos
–nós e eles e nós–

porque em tupi (antigo) se dizia “nós” com oré e îandé pra diferenciar eu e você dos outros e nós todo mundo nós todo mundo era o mundo todo diverso diferente com saberes guardados em tantas línguas a cada pronome a cada nome a cada verbo estamos precisando falar de novo îandé îandé palavra em que cabe a multiplicidade e pensar o mundo todo não somos todos indígenas mas somos todes e podemos ser juntes

tantas gentes
tantas formas
tantos ritos

Pra que não fiquemos
cada vez mais pobres
cada vez mais ódio
olhando o cadáver
que dói,
ele sangra ainda
, sequer apodrece.

 

Tomaz Amorim é doutor em Teoria Literária na USP. Estuda intersecções não-modernas entre as obras de Oswald de Andrade e Walter Benjamin no pós-doutorado na Unicamp. Autor de Plástico pluma (Urutau) e Meia lua soco (no prelo).

Suene Honorato é professora de literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC). Autora de N’oré îukaî xûéne! (Patuá)


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