A saga que se move
Quando a obra de Erico Verissimo se transforma em imagem na televisão brasileira, exige, inicialmente, democracia e abertura
Duas obras de Erico Verissimo foram tema de minisséries na Rede Globo. A primeira, O tempo e o vento (1985), veio no contexto de dois momentos importantes: o país entrava na Nova República, com a esperança frustrada com a morte de Tancredo Neves, depois de 21 anos de governos militares, e, por um olhar mais particular, a Globo partia para a comemoração dos seus 20 anos de efetivo funcionamento e crescimento, tendo como auditório, naquele momento, quase 18 milhões de lares brasileiros em cerca de quatro mil cidades do país. Desde o final da década de 1970, a emissora já iniciara uma inflexão política, apresentando os seriados Malu mulher, Carga pesada e Plantão de polícia, lembrados até hoje, a fim de aproveitar a vaga de chamada abertura “lenta, gradual e segura”, inaugurada pelo governo Geisel (1974 – 1979). Já Incidente em Antares (1994), quase dez anos depois, teve como cenário concreto um Brasil com nova Constituição, denominada de Cidadã; porém, às voltas com a eleição e a destituição de Collor, buscando, com o polêmico Plano Real, livrar-se da inflação que inquietava assalariados e todos os segmentos produtivos que não lucravam com a ciranda financeira.
Se do ponto de vista das indústrias da cultura tanto o Brasil como a América Latina vivem sob a pressão da dominação econômica, sobretudo norte-americana, nas áreas do livro, do disco e do cinema, no plano da ficção televisiva seriada abriu-se uma cunha interessante, primeiramente com as telenovelas e depois com os seriados e as minisséries. A relação da literatura com a televisão, embora sempre tenha existido, mesmo nos momentos agudos da censura política, com adaptações de obras como Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, em 1976, que ainda hoje circula pelo mundo, ganhou, com as minisséries, um patamar de valorização mútua: por um lado, os veículos de massa buscando legitimar-se diante dos novos tempos, exibindo obras mais polêmicas – como Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa; O pagador de promessas, de Dias Gomes; O primo Basílio, de Eça de Queirós; Capitães da Areia, de Jorge Amado; ou Agosto, de Rubem Fonseca –, por outro, um fenômeno muito interessante, que fez com que muitos críticos impiedosos da televisão passassem a observar esse veículo como um aliado estratégico para a divulgação de obras centrais da cultura letrada. Sem exceção, todos os livros adaptados para a televisão se tornam sucessos de livraria.
No prefácio para a edição brasileira do livro sobre uma oficina de roteiros, de Gabriel García Márquez, Me alugo para sonhar, Doc Comparato conta que durante a sua primeira viagem a Moscou, em 1987, estava no saguão do hotel, à espera do carro que o conduziria para os estúdios da televisão soviética, quando alguém o cutucou no ombro, dizendo de imediato: “Até que enfim te encontro. Muito prazer. Hoje à noite você janta comigo e Mercedes.”. Era Gabriel García Márquez, com seu jeito notoriamente expansivo. Conta, ainda, Comparato, que tempos depois, já trabalhando um roteiro com o Prêmio Nobel de Literatura, quis saber como havia sido identificado e Gabo não se fez de rogado: explicou que, como presidente do júri do Festival Internacional de Havana, em 1986, havia defendido a premiação, com entusiasmo, da minissérie O tempo e o vento (1985), o que resultou na concessão do maior prêmio da competição, o Coral Negro, à adaptação televisiva.
Assim como no português oral utilizamos com freqüência a expressão “puta admiração”, García Márquez teria usado uma outra, “coño!”, uma forma popular para o mesmo encantamento, que significa o órgão sexual da mulher; pois foi assim que ele começou a explicar para Doc a história do seu encontro com a obra de Veríssimo: “Coño! O tempo e o vento foi um dos três livros que estudei para escrever Cem anos de solidão. Verissimo foi genial ao manejar a saga de uma família através dos tempos. É uma pena que tão poucos brasileiros reconheçam isso. Enfim, te escolhi para trabalhar comigo porque você conseguiu adaptar minha fonte inspiradora.”.
O tempo e o vento
A parte da obra levada para a televisão abrange apenas o primeiro volume da trilogia, O Continente, mostrando a saga da família Terra Cambará e, com ela, a formação racial, política e cultural do Rio Grande do Sul ao longo de mais de cem anos de história (1777 – 1895). A ação caminha por cinco tramas contidas no livro e situa-se em Santa Fé, cidade imaginária da Zona da Campanha, nas vastas planícies onduladas do sudoeste gaúcho. As cenas de guerra, como a da invasão do Uruguai por tropas brasileiras durante o Segundo Império, não se esgotam em si, mas no gosto do espetacular, como exige a televisão. Daí que estão sempre subordinadas e servem de moldura para os conflitos entre as personagens. Na cena da batalha, por exemplo, os quinhentos figurantes participam para mostrar como se formou a personalidade guerreira, ousada e conquistadora do Capitão Rodrigo. O fio da estória, na adaptação, foi puxado pela memória da matriarca Bibiana Terra Cambará, que, em idas e vindas pelo tempo, reconstituiu a trajetória de sua família, desde a avó, Ana Terra, iniciadora da saga. Bibiana é vivida por três atrizes diferentes na juventude, na idade adulta e na velhice. Seu marido é o mulherengo e valente Capitão Rodrigo.
Ao lado do tema regional, da formação de fronteiras, com disputas políticas separando espanhóis e portugueses, diante da ocupação de terras indígenas, ganha força dramática a rivalidade entre os Terra Cambará e os Amaral, com a adaptação veiculando os temas universais, como o amor que triunfa sobre os preconceitos (a paixão de Ana Terra pelo Índio Missioneiro), o da solidão da velhice (Bibiana vivendo entre os seus fantasmas) e o da força da terra e da natureza sobre os destinos humanos (a figueira prosseguindo cravada no solo enquanto as gerações se sucedem). O sotaque gaúcho foi tratado de forma discreta porque os realizadores entenderam que esse ponto tem sempre suscitado polêmica na televisão brasileira. Assim, os 30 capítulos da minissérie, que equivalem a quase 15 filmes de longa-metragem, foram realizados em apenas quatro meses. Até uma cidade cenográfica foi montada em Pedra de Guaratiba, no Rio, para as cenas da fictícia cidade de Santa Fé. No total, 780 cenas e cerca de cinco mil pessoas entre atores e figurantes. Apesar das proporções gigantescas para a realidade brasileira, a adaptação decepcionou alguns, que esperavam um épico na linha de superproduções como Guerra e Paz. Paulo José, mais uma vez, cortou o barato desse tipo de expectativa. Em entrevista para a revista Afinal (nº 40, junho, p. 4, 1985), dizia que essa era uma cobrança equivocada porque a adaptação não era um épico no sentido hollywoodiano, mas sim uma série em que os personagens são mais importantes, muitas vezes, que o painel de época.
A adaptação também foi acusada de hermética, sobretudo na primeira semana de exibição, por causa do uso do recurso técnico de flash-forward, que consiste em mostrar antecipações do que ainda virá, além do flash-back, o recurso inverso. Essa reclamação tem muito que ver com o fato de a televisão atingir públicos heterogêneos, com diferentes graus de intimidade com a linguagem audiovisual, motivo pelo qual as inovações são sempre muito testadas e inseridas de forma lenta e convivendo sempre com as formas já convencionadas. Além dos flashes, as mudanças de época exigidas pela obra vinham fragmentando ainda mais a narrativa por conta das interrupções dos intervalos comerciais. Em síntese, os primeiros capítulos pareciam arrastar-se, sem que atingissem aqueles momentos de ápice dramático. Esses problemas, detectados pela recepção não só da mídia impressa como dos telespectadores, foram corrigidos a partir da segunda semana. O certo, no entanto, é que a adaptação televisiva de O tempo e o vento, com freqüência, foi vista como a versão brasileira de …E o vento levou. Em entrevista para a Folha de S. Paulo, na época (22/04/1985, p. 37), o diretor Paulo José explicava: “Não interessou dar um tom hollywoodiano à minissérie, com pirotecnia cênica, mas deixar claro que a história de um povo começa e acaba em pessoas simples”.
Vale retornar a Paulo José, gaúcho como Verissimo, que sempre sonhara com a adaptação de O tempo e o vento para a televisão, na entrevista para Afinal: “Foi lenta porque a narrativa era para ser assim mesmo. No episódio de Ana Terra, que era uma pessoa solitária e introspectiva, não havia como fazer o programa com narrativa de western. Erramos em alguns exageros de fragmentação, hoje sabemos que ela tem limites na televisão, que já é um veículo por si mesmo fragmentado. Também nas viradas de época, as mudanças às vezes ficaram muito bruscas. Quando Doc escreveu a primeira versão, ela era mais novelesca, e quando entrei no projeto eu me bati pela integridade da obra e o Doc a reescreveu para a série ficar mais fiel ao livro. A literatura geralmente produz obras menos dramatizadas, com uma estrutura mais difícil. É bom que esta minissérie tenha uma estrutura mais sofisticada e as pessoas gostem. Acho ótimo que a televisão tenha assumido o programa assim mesmo, porque prova que ela e seu público podem romper um código conven-cional sem problemas. A minissérie foi também vista como a positiva confirmação de que a qualidade de uma obra de arte não é empecilho para que se atinja o grande público”.
Incidente em Antares
Na adaptação da obra de Verissimo, de 1994, como no romance, escrito em 1971, o pano de fundo é uma cidade, Antares, que poderia estar no Brasil ou em qualquer outro país latino-americano. Apesar de ambientada na década de 1960, Erico Verissimo inicia a ação em uma sexta-feira, 13 de dezembro. Para as novas gerações, essa data diz muito pouco, mas, para o imaginário político da geração que viveu o 1968, ainda está vivo o dia em que o general Costa e Silva assinou o Ato Institucional número 5, o famoso AI-5, que suspendeu todos os direitos e as garantias democráticas, fazendo o país ingressar no que ficou conhecido como o segundo e mais sanguinário momento do golpe de 1964. O romance e a adaptação para televisão são cáusticos com relação à corrupção, à hipocrisia e à injustiça. No entanto, a crítica política, bem mais visível no romance, acabou na minissérie ganhando tintas mais fortes de certo realismo fantástico.
E não poderia ser diferente ao trazer para imagens em movimento a história de sete defuntos que não são enterrados por causa de uma greve geral. Lado a lado, aguardando serem sepultados, estão a matrona da cidade, um anarquista espanhol, um jovem pacifista morto sob tortura, um poderoso advogado, um bêbado contumaz de qualquer cidade, um pianista suicida e uma prostituta tísica. Insepultos, os mortos voltam à vida para exigir o que lhes é de direito: o enterro, e acabam por detonar toda a miséria moral e política do pequeno grande mundo que é Antares.
O mesmo Paulo José de O tempo e o vento utilizou a figura de uma telefonista fofoqueira para fazer a ligação entre os capítulos da minissérie. São destaque os efeitos especiais, como a eliminação do reflexo dos insepultos diante do espelho, assim como a simulação de sobrevôo da prostituta e do bêbado pela cidade. A ênfase no realismo fantástico foi facilitada pelos novos recursos técnicos, enfatizando o velho trabalho da maquiagem.
Essa minissérie veio no contexto do Plano Real, cruzando com Anos rebeldes (1992), com Agosto (1993) e com Decadência (1995), que forneceram um panorama do Brasil recente, pelo ângulo da ficção, valendo destacar, nesse meio tempo, o sucesso sem igual de Memorial de Maria Moura (baseada em obra de Rachel de Queiroz), marcando certa inflexão para um Brasil rural e violento, sob o signo do cangaço.
Uma última observação: a obra de Verissimo, refratando tanto o passado quanto o presente exige, antes de mais nada, democracia e abertura; a outra parte – a recepção e a recriação – fica por conta dos muitos milhões de fruidores. De ontem e do futuro.
Narciso Lobo
jornalista e professor do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, na Universidade Federal do Amazonas. É autor do livro Ficção e Política: o Brasil nas minisséries, Manaus: Editora Valer, 2000
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