A relação entre imagem e som nos filmes de Kubrick

A relação entre imagem e som nos filmes de Kubrick
Cena de '2001: uma odisseia no espaço', de Stanley Kubrick (Foto: Divulgação)

 

“Eu tentei criar uma experiência visual que atravessasse o mundo verbal e penetrasse diretamente no subconsciente com um conteúdo emocional filosófico”. Assim Stanley Kubrick definia 2001: Uma odisseia no espaço numa entrevista para a revista Playboy em 1968, ano de estreia do filme. E é esta a primeira ideia que nos vem quando pensamos em Kubrick: um diretor que iniciou sua carreira como fotógrafo e criou obras que impressionam pela beleza e precisão de suas imagens. Mas Kubrick, mais que um artista visual, foi um autor cinematográfico em sua essência. Um autor que conhecia o poder da relação imagem/som.

A grande maioria dos filmes realizados no período sonoro tem na palavra sua base. É a palavra que nos explica o desenvolvimento da trama e as emoções das personagens; a música reitera de forma quase subliminar essas emoções, enquanto o ruído situa a história no tempo e no espaço. Nessa forma narrativa, é o diálogo que conduz o filme. Por ele passa toda a nossa percepção. Não só do que pensam, sentem e fazem as personagens, mas é através dele que lemos a própria imagem.

Kubrick pertence a uma outra tradição cinematográfica, aquela que tem por princípio a utilização da palavra como mais uma das possíveis estratégias a serem utilizadas para se contar uma história. Uma tradição que vem da passagem do cinema silencioso para o sonoro e que tem em René Clair um dos seus maiores representantes. No fim dos anos 20, quando o cinema sonoro se tornou um fato comercial, houve uma grande discussão entre profissionais e pesquisadores em torno de como deveria ser a relação entre som e imagem. Alguns diretores, por medo de o cinema se transformar em um “teatro filmado”, defendiam o uso da palavra apenas quando não houvesse outra forma de expressão.

“Grande parte dos filmes não passam de peças de teatro com mais atmosfera e ação. Acho que a liberdade e a flexibilidade das histórias dos filmes cresceriam muito se emprestássemos uma coisa diretamente da estrutura dos filmes silenciosos onde o que não precisasse de diálogo seria apresentado com um plano e um intertítulo”, disse Kubrick a Michel Ciment em uma entrevista publicada em seu livro Kubrick, de 1980.

“Algo como: Título: Tio do Billy. Imagem: O tio dando um sorvete para o Billy. Em poucos segundos você apresentou o tio do Billy e disse algo sobre ele sem travar a cena. Essa economia dá ao cinema silencioso uma extensão e uma flexibilidade muito maior na narrativa do que temos hoje. Na minha opinião, existem muito poucos filmes sonoros, incluindo alguns que são considerados obras-primas, que não poderiam ser montados de forma eficaz em um palco de teatro, com um bom cenário, o mesmo elenco e boas interpretações. Você não conseguiria fazer o mesmo com um grande filme silencioso.”

Para cumprir esse ideal, Kubrick se utilizou de todo o conhecimento que obteve ao longo de sua evolução no mercado cinematográfico. Em seu primeiro trabalho de ficção, ele foi fotógrafo, diretor, montador, assistente de montagem e editor de som. A partir daí, com o conhecimento adquirido, passou a supervisionar de forma perfeccionista todas as etapas de produção de suas obras, dedicando maior tempo ao processo de finalização: “Eu gosto de montar. É o mais próximo que se consegue do aceitável no trabalho criativo”, afirmou para Philip Strick e Penelope Houston numa entrevista para a revista Sight&Sound, em 1972. “A montagem é o único aspecto da arte cinematográfica que é exclusivo. Ela não se encontra em nenhuma outra forma de arte: literatura, interpretação, fotografia, aspectos essenciais do cinema, também não são únicos a ele, mas montagem é.” A articulação audiovisual de Kubrick, como se pode perceber, é criada durante o processo de montagem.

A partir de Glória feita de sangue (1957), um uso menos convencional da relação imagem/som começou a se estabelecer. Kubrick percebeu o potencial da banda sonora para expandir o espaço da imagem e fez um emprego constante do ambiente de batalha que cercava as personagens. A opção por pouca música e por ruídos e vozes montados em perspectiva, criando uma sensação de extrema profundidade, realçava o caráter verossimilhante e envolvia o espectador na mesma guerra onde estão as personagens. Em Spartacus (1960), Kubrick aplicou de forma ainda mais minuciosa, em um processo de mixagem que se prolongou por nove meses, o poder do som em conduzir a narrativa e dirigir o olhar do espectador.

Mas é a partir da sua ida para a Inglaterra, e consequentemente de Lolita (1962), que Kubrick começou a procurar uma linguagem que se afastasse da hegemonia do diálogo e se assemelhasse mais à proposta audiovisual de alguns dos primeiros filmes sonoros, como Sob os tetos de Paris (1930). E é em 2001: Uma odisseia no espaço que ele conseguirá concretizar magnificamente esse projeto.

2001 é um filme de 141 minutos dos quais 40 são de diálogos. Não que isso demonstre um desprezo pela palavra. Muito pelo contrário, um dos personagens principais do filme existe praticamente pela voz: o computador HAL 9000. Como nota Michel Chion, um dos maiores pesquisadores de trilhas sonoras cinematográficas, em sua obra La voix au cinéma, HAL é “visto” poucas vezes durante o filme através de uma lente vermelha, mas sua voz habita toda a nave, onipresente, onisciente e onipotente. E sua morte também é representada pela sua voz.

Quando Bowman desliga o computador, não há explosões, fumaça ou partes sendo despedaçadas. A solução é mais econômica e expressiva: a voz que possuía características humanas vai alterando de tom, como um disco que fosse desacelerando até parar, assim como suas palavras que primeiro exprimem a agonia de um ser consciente (“Pare, Dave… Estou com medo, Dave… Minha consciência está se esvaindo…”) até se transformar em uma gravação (“Boa tarde, senhores. Sou um computador HAL 9000…”).

Os outros 101 minutos da trilha sonora são construídos por ruídos, respirações, música e silêncio. Como notou Mario Falsetto em Stanley Kubrick: A narrative and stylistic analysis: “Sua ambição em 2001 é, de certa forma, voltar o cinema à noção de filme como experiência, uma noção que caiu para segundo plano com as aspirações narrativas da mídia”. Assim como o filme faz experimentações com a narrativa, “ele também se interessa em criar uma experiência visual e aural tão única que o espectador sentirá como se estivesse vendo um filme pela primeira vez”.

Se em toda a primeira parte do filme (“A aurora do homem”) Kubrick cria um rico ambiente sonoro através do uso exclusivo de ruídos para acentuar a verossimilhança da sua narrativa – de caráter quase documental –, é na sua segunda parte que o silêncio do vácuo dominará a trilha sonora. Eventualmente, o som claustrofóbico da respiração das personagens dentro de seus trajes espaciais será tudo que o espectador irá ouvir, acentuando ainda mais a sensação do vácuo à nossa volta. As oscilações dessas respirações, como na mesma sequência onde HAL é desligado, também servirão para indicar o estado emocional dos astronautas.

É na música que 2001 tem sua grande força. Desde seu lançamento em 1969, sua trilha musical se tornou uma das mais conhecidas da história do cinema. Hoje, grande parte do público identifica Assim falou Zaratustra, de Richard Strauss, como “a música de 2001”.

É uma trilha cercada de lendas e mistério, assim como o próprio filme. Ao que tudo indica, a música de 2001 já estava resolvida nos planos de Kubrick desde o início do projeto, mas por insistência do estúdio o diretor foi obrigado a contratar um compositor. Ele escolheu Alex North, com quem já havia trabalhado em Spartacus. North compôs e gravou aproximadamente metade da música do filme e nunca foi chamado para finalizá-la, nem sequer informado que sua música não seria utilizada. Só ficou sabendo desse fato quando foi assistir ao filme em uma sessão em Nova York. Em 1993, Jerry Goldsmith homenageou North gravando em CD a trilha esquecida.

O uso que Kubrick faz da música é tão pouco convencional quanto a estrutura audiovisual do filme. Como bem notou Dariusz Roberte em um artigo sobre a trilha musical de 2001: “A música não é empregada para enfatizar as ações, emoções ou diálogos das personagens – na verdade, nenhuma música é tocada em segundo plano – a música está praticamente na mesma intensidade da imagem e, juntas, elas atuam como um diálogo”. Sobre a relação entre música e imagem no filme, Kubrick disse: “Ela tenta se comunicar mais com o subconsciente e com os sentimentos do que com o intelecto.”

A escolha de peças de diferentes compositores eruditos leva o espectador à experiência sensorial proposta por Kubrick. O “Dies Irae” do Requiem de György Ligeti, um cluster microtonal de vozes e orquestra, é a voz da inteligência extra-terrestre; a leveza do ‘Adágio’ da suíte Gayaneh, de Aram Khatchaturian, reflete a suavidade da Discovery deslizando pelo espaço, enquanto Richard Strauss intensifica a força da transformação da humanidade.

lolita-kubrick
Sue Lyon como Lolita no filme homônimo de Stanley Kubrick (Foto: Divulgação)

Um dos momentos mais marcantes da trilha é a sequência em que uma nave espacial vinda da Terra faz sua aproximação da estação espacial em órbita da Lua. Nela ouvimos em versão integral a valsa O Danúbio azul, de Johann Strauss. O próprio Kubrick se encarregou de plantar outra lenda que diz que a incorporação da valsa foi fruto do acaso, pois ele a ouvia enquanto editava a sequência. A afirmação do diretor nos remete imediatamente à questão: mas por que ele ouvia exatamente essa música enquanto editava a sequência? Não importa. Acaso ou não, a escolha da valsa é uma das mais felizes de todos os tempos. A opção de Kubrick pela valsa trouxe para aquele momento do filme uma riqueza simbólica que faz da sequência um exemplo de articulação poética audiovisual.

Essa riqueza simbólica pode ser explorada partindo-se de muitos pontos de vista. Tecnicamente é uma articulação brilhante de som e imagem. O compasso ternário da valsa, sua circularidade, articula-se perfeitamente com o movimento circular da estação espacial. Ele também possui a leveza da ausência de gravidade, sem deixar de ter energia. É como se tempo e espaço rodassem juntos.

Além disso, percebemos que, ao incorporar a valsa, Kubrick trouxe para o filme tudo o que ela representa em nossa cultura. É a música de uma época em que se acreditou que a ciência resolveria todos os problemas da humanidade. É também a música que carrega o glamour de uma aristocracia pujante e segura de seu poder. A valsa, tal como nos é apresentada hoje pelas artes e pelos meios de comunicação é símbolo de um mundo e de um tempo em que os conflitos pareciam não existir, ao menos para os que valsavam.

gloria-feita-de-sangue-kubrick
Kirk Douglas em ‘Glória feita de sangue’ (1975) (Foto: Divulgação)

Essa sensação nostálgica que carrega a valsa é posta no filme em paralelo à representação de um mundo tecnológico. Esse mundo é apresentado como a realização do projeto da era da valsa, mas paradoxalmente é também o atestado de seu fracasso, pois a ciência e a tecnologia não foram capazes de resolver todos os problemas da humanidade. Sucesso e fracasso da tecnologia manifestam-se em simultaneidade na demência de HAL, o supercomputador, que enlouquece justamente por ser sofisticado a ponto de desenvolver uma personalidade própria e, por conseguinte, o conflito. HAL se aproxima de algum modo do humano, e sua incapacidade para lidar com o conflito interior é o estopim de sua loucura.

O homem, por sua vez, é ainda um ser frágil e confuso, tentando dominar o mundo que criou para si mesmo. Tão inseguro e indefeso quanto seus ancestrais hominídeos que aparecem no início do filme, escondendo-se dos predadores e amedrontados pela escuridão a cada noite. Os homens, que agora são capazes de colonizar a Lua e construir uma nave tripulada para Júpiter, ainda contemplam com a mesma perplexidade um simples monólito, cuja origem é inexplicável, e que eles acreditam ser obra de uma cultura alienígena mais desenvolvida que o homem. Isso é dito por eles, mas Kubrick em nenhum momento confirma a hipótese. O que fica para o espectador é o mistério e a perplexidade.

Aliás, mistério e perplexidade são duas das marcas de 2001. Muito já foi dito a respeito do argumento do filme. As questões em aberto são tantas que podemos explorar 2001 à exaustão sem jamais esgotar o assunto. Mas há algo que parece bastante palpável no filme. Esse algo é a transformação do ser humano. Essa transformação nos é apresentada em dois momentos da história humana. O primeiro deles é a transformação do hominídeo em homem, no início do filme. O segundo é a transformação do homem em outro ser. Que ser é esse, não é dito. Fica para o espectador o trabalho de imaginar esse ser e recriá-lo em si mesmo. Esse novo ser é simbolizado no último plano do filme, que nos mostra um feto em desenvolvimento sobre o fundo negro do espaço.

É justamente nesse aspecto do filme que reside a simbologia mais fascinante da sequência da valsa. Não existe novo ser, ao menos tal como nós compreendemos a geração de novos seres, sem que haja a união de masculino e feminino. E são muitos os símbolos ligados ao binômio masculino-feminino em 2001. Eles permeiam todo o filme. Já na abertura vemos a Terra e a Lua. Por trás surge o sol jogando seus raios sobre as duas. A própria nave Discovery possui um formato que se assemelha ao de um espermatozoide. Ao se aproximar de Júpiter é como se aproximasse de um óvulo, inclusive pelos seus tamanhos.

Nesse contexto, a sequência da valsa funciona como uma metáfora do encontro dos dois princípios, a formação do par. A sequência começa no silêncio. Algumas naves orbitam a Terra. Todas têm formas fálicas. A valsa se inicia lentamente. Vemos a estação espacial, um círculo perfeito, feminina. Seu movimento circular lembra o movimento dos casais no salão, mas tudo acontece muito lentamente, como esperamos que sejam as coisas no espaço e preservando a delicadeza do momento. Vemos então a nave, e ela é como uma seta. O andamento da música se acelera. O casal está apresentado. O baile vai começar. Um corte leva o espectador para o interior da nave. Dr. Floyd dorme em sua poltrona. Sua caneta flutua na ausência da gravitação, fazendo daquele ambiente um microcosmo do que nos foi anteriormente mostrado. Aí também há a simbologia do encontro, pois será a comissária de bordo que virá pegar a caneta e colocá-la novamente no bolso do inocente passageiro.

Lá fora o baile continua. Todo o restante da valsa servirá para mostrar a aproximação do par. A ação é mostrada sob todos os pontos de vista: geral, o da nave e o da estação. O clímax da valsa acontece justamente no momento da aproximação final, quando finalmente ocorre o encontro do casal e a nave penetra na estação.

Inevitável nessas circunstâncias é perguntar: mas será que Kubrick pensou em tudo isso? Provavelmente não, mas 2001 foi criado como uma obra aberta. O próprio diretor afirmou isso diversas vezes, como em entrevista para Joseph Gelmis, publicada no livro The film director as superstar, em 1970: “Um filme como 2001, onde cada espectador traz suas próprias emoções e percepções para preencher um tópico específico, um certo grau de ambiguidade é valioso, porque permite a platéia ‘preencher’ sua experiência visual. De qualquer forma, quando você está lidando em um nível não verbal, ambiguidade é inevitável. Mas é a ambiguidade de toda a arte, uma bela peça musical ou uma pintura – você não precisa de instruções escritas para ‘explicá-las’. Reações à arte são sempre diferentes porque são sempre extremamente pessoais.”

Com a morte de Kubrick, o cinema perdeu um de seus últimos artistas. Como escreveu em seu blog Wendy Carlos, que compôs as trilhas musicais de Laranja mecânica (1971) e de O iluminado (1980): “Muito do que somos levados a ler, a ouvir, a ver e até a comer, parece o resultado de um expediente, uma questão pura de comércio. Inteligência, até toques de genialidade (como ele tinha abundantemente) viraram relíquias curiosas de outras eras. A perda é nossa.”


Eduardo Santos Mendes é professor da ECA-USP
Ney Carrasco é professor da Unicamp

Deixe o seu comentário

TV Cult