“Saltburn”: Uma fábula anarcocapitalista dançante

“Saltburn”: Uma fábula anarcocapitalista dançante

 

Acabei de ver Saltburn, filme sensação da britânica Emerald Fennell, uma versão gótica, pop e anarcocapitalista de Sonhos de uma noite de verão, de Shakespeare, tornada uma comédia de “erros” remixada com um sombrio e sarcástico Harry Porter.

Oliver, o fabuloso protagonista, vai passar da aristocrática e esnobe Universidade de Oxford ─ mais farfalhante e ostentatória que a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts ─ para o coração de uma família de ultra ricos caricaturais, que naturalizam todos os instintos e desejos com luxúria e têm suas próprias regras de condutas sociais e sexuais com a segurança e a extravagância dos que fazem parte dos 1% da elite global.

O filme é também uma espécie de versão anarcocapitalista (anarquismo de livre mercado, cioso de todos os privilégios privados) do perturbador e libertário filme Teorema, de Pasolini, e ainda traz os toques de psicopatologia do fascinante Tom Ripley, de Patricia Highsmith, aquele personagem amoral e criminoso com quem simpatizamos de forma inelutável, mesmo que isso destrua nossas vidas e valores (como fazia Hitchcock com seus vilões).

Ripley é uma referência que a própria diretora explicita ao falar do filme. Ripley é um sujeito cada vez mais genérico e contemporâneo, que rima com Milei. Uma psicopatia social capaz de encantar multidões e eleitores.

A diretora produz uma imediata complacência e simpatia por Olivier, Barry Keoghan (o ator performa uma impressionante transformação ao longo do filme), ao acompanharmos sua entrada na Universidade de Oxford como bolsista, com suas roupas de brechó, tímido e intimidado, um plebeu, jovem de classe pobre ou classe média, apartado dos estudantes ricos, intimidado e perdido em um mundo pouco amigável de sobrenomes, famílias e tradição.

Se ficássemos por aqui já teríamos um conto contemporâneo sobre as pequenas e grandes humilhações que vêm com a descoberta das classes e grupos sociais e o esforço para se adequar a elas, se enturmar, sorver algo dessa riqueza, ser pelo menos amigo do colega ultra belo, charmoso e rico. O olhar assujeitado de quem convive com, mas está irremediavelmente fora da partilha da riqueza dos mundos.

Mas Saltburn não vai tratar de nenhuma tomada de consciência social, luta contra assimetrias e privilégios, desigualdades e injustiça. Porque o que vemos é um personagem que passa a desejar profundamente esse mundo. Não há ressentimento nem revolta, mas desejo de ser o outro, de usufruir de todos os seus privilégios.

Como Olivier, ficarmos totalmente deslumbrados pela beleza escandalosa e charmosa de Félix, o estonteante Jacob Elordi, que já tem no nome o signo de tudo que o mundo vende como felicidade e sucesso. Félix de feliz, de afortunado, de riqueza material herdada, de beleza que seduz todos os gêneros, um “favorecido dos deuses”, uma espécie de hipérbole, muito além de todos os privilégios brancos, padrões e heteronormativos.

Aliás, um detalhe importante: a aristocracia inglesa do filme parece dizer, assim como a elite econômica global, com deboche e comiseração, que a sexualidade normativa é “coisa de pobre” e de classe média, afinal a hipersexualidade, a fluidez e a mobilidade sexual também são uma das formas de exercer não apenas a liberdade, mas também o poder.

O tímido e desmonetizado Oliver logo descobre que seus bons modos sociais (“você é tão real”, diz uma das personagens, querendo dizer “você é tão simplório”) e seu capital sexual são das poucas coisas que de fato têm a oferecer para toda a família.

A performance do ator Barry Keoghan surpreende e segura as reviravoltas do filme, mas é só como fábula que o vemos passar, em pouco tempo, do menino intimidado e franzino que se submete a excentricidades da família inglesa para um jovem que vai ganhando corpo, se desnudando e seduzindo por ouvir, compreender, até chegar ao Oliver autoconfiante que debocha e manipula a dor dos outros, exatamente como a família Catton opera.

A sexualidade em Saltburn é quase uma sequência de violações consentidas e cúmplices. Usa-se o sexo para assujeitar o jovem negro, o primo menos abastado da família, o sarcástico personagem Farleigh (Archie Madekwe), o único a desconfiar que Oliver quer muito e obsessivamente partilhar desse mundo da riqueza, em que as pessoas falam o que pensam uma para as outras sem eufemismos, jantam e jogam tênis de smoking enquanto bebem champagne, numa espécie de alegre e debochado savor-faire adquirido com todos os privilégios da riqueza.

Hackeando as transgresões

As cenas dessa hipersexualidade que atravessa todos os personagens têm menos a ver com um imaginário libertário e mais com o exercício dos poderes. Nenhum dos personagens limita os seus gozos pelas convenções sociais, todas as possibilidades estão na mesa da aristocracia inglesa e Oliver aprende rápido que sexo é poder.

Obviamente que as resenhas e críticas nas redes e jornais sobre Staltburn só se atêm a isso. “[Filme] traumatiza internautas com cenas pornográficas perturbadoras em banheira e cemitério” é apenas uma das chamadas sensacionalistas, reforçando e valorizando os produtos culturais aditivados com uma dose de escândalo fabricado. Hiper estímulos que vendem e engajam, novo modelo de negócios universal.

Mas o que os “escândalos” e “polêmicas” sexuais dizem mesmo? Ao mesmo tempo que vemos a ascensão de uma extrema direita conservadora e normativa no mundo, tudo que vende tem que ter algo escandaloso, libertário, “pervertido”, ou não normativo como ativador dos imaginários. Hoje, o próprio ideário extremista se apropriou das “transgressões”.

Eu diria até que o imaginário libertário pós-1968 da contracultura, do parlamento dos corpos, da fluidez dos gêneros, é o playground inconfesso dos conservadores. “Proteja-me do que eu quero” parece ser a denegação global de certa classe média e de ultraconservadores em todo o planeta. As palavras liberdade e libertário, por outro lado, também ganharam contornos conformistas!

Não há transgressões nas cenas de sexo de Saltburn, não vemos nada de escandaloso, diga-se. Só no final do filme, a diretora dará, aí sim, um sentido perverso à sexualidade desperta de Oliver, como instrumento de ascensão social e de poder. O que a meu ver quase estraga o filme e trai a ambiguidade do personagem, tornado um “psicopata” clichê.

Mas, claro, as cenas de sexo, curtas e cenarizadas, estão totalmente integradas à trama, que sempre vai nos surpreendendo. O clima feérico de Saltburn, o décor, os figurinos, a fotografia deslumbrante, verdes bosques iluminados, claro escuro dos quartos suntuosos, as fantasias imaginativas da festa de aniversário para Oliver no bosque de verão shakespeariano, tudo isso ameniza qualquer eventual “choque” comportamental.

Não há escândalo, mas as cenas podem ferir sensibilidades pelo padrão higienizado com que o sexo é representando no cinema, bem longe dos fluidos corporais reais e das práticas que os personagens se permitem realizar: sexo com uma mulher menstruada. Oliver sorvendo com ardor a água da banheira em que Félix se masturbou. Oliver deitado nu e se esfregando sobre a terra da sepultura de Félix.

As cenas de sexo no filme têm muito mais um caráter de posse e profanação. Oliver vai transando com os que consegue dominar psicologicamente: Venetia (Alison Oliver), a irmã de Félix, dependente de sexo; o primo Farleigh (Archie Adekwe), um jovem negro “punido” sexualmente por Oliver em uma cena homoerótica; e, ao final, a cena de intimidade e morte da mãe de Félix, Elspeth: a maravilhosa atriz Rosamund Pike, seu ato final de domínio da propriedade, de profanação dos corpos e sua transmutação.

O filme provoca e debocha do espectador mais normativo com signos culturais de vampirismo, fetichismo e morbidez, que poderiam ser lidos como parte da trama e da personalidade de Oliver, ao descobrir sua única possibilidade de ascensão e intrusão social naquela família, pelo desejo e sexualidade.

Oliver ama o mundo que Félix encarna. Não existe amor e nem paixão que não inclua o desejo pelo mundo do outro. É o que nos ensinam Proust e Deleuze. E é muito fácil ficar obcecado pela beleza estonteante de Félix e a suntuosidade de Saltburn.

O filme embasbaca e fascina o espectador pela visualidade farfalhante, gótica e pop. Usa a linguagem do videoclipe em pelo menos dois momentos decisivos. Quando Félix protagoniza uma espécie de videoclipe da riqueza e ostentação, ao mostrar a mansão e seus aposentos para um Olivier intimidado chegando para as férias de verão na propriedade de sonhos que é Saltburn.

E o suntuoso clipe final em que Oliver coreografa seu triunfo em Saltburn, passando pelos aposentos da mansão, celebrando suas posses e seu corpo nu, quando usurpa o lugar e se torna, ele mesmo, Félix, dançando pelos salões ao som da música “Murder on the Dancefloor”, de Sophie Ellis-Bextor.

Oliver é Félix. Voltamos ao proverbial personagem Ripley: “Sempre pensei que seria melhor ser um falso alguém do que um verdadeiro ninguém”. No caso, de fato, Oliver toma posse de Félix e de seu mundo.

Eis a fábula anarcocapitalista dançante. Eis o triunfo do “chegar lá” vendido por todos os coachs contemporâneos do sucesso e da prosperidade. Feérico, sarcástico, o filme é bem mais escandaloso por isso. Oliver transmutado, liberação do inconsciente inundado por uma alegria sinistra da posse e da propriedade.

Ah, mas você gostou do filme? Sim, o filme é fascinante porque lida com imaginários contemporâneos, sentimentos contraditórios e perturbadores, ações que nos seduzem ou produzem aversão, confrontando nossos valores. Gostar ou não gostar significa pouco diante da tarefa que temos hoje de entender, analisar, perceber e transformar o estado das coisas.

Ivana Bentes é professora do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ.


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