A política de e a partir de Bacurau
Bárbara Colen como Teresa em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (Foto: Victor Jucá)
Talvez o mais impressionante de Bacurau (2019), filme de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, seja o fato de o filme ter se tornado capaz de suscitar variadas projeções em que se realizam de forma catártica as expectativas e valores de parte da população. Ungido instrumento de combate político, tornou-se recipiente de comentários e agendas políticas que, apesar de ressoarem nele, o ultrapassam em grande parte. Por tudo isso, são dadas duas tarefas. Como a recepção se antepõe ao filme, é preciso tematizá-la e desenredar o que a obra, sozinha, diz. Como as lutas de hoje é que a sobrecarregam de sentido, temos que discutir os conteúdos políticos que estão ou que se pensam ver ali – e avaliar seu alcance real.
Bacurau se passa “daqui a alguns anos”, em um futuro que reconhecemos como distópico por sinais dispostos com sutileza. Bacurau, cidade nordestina e interiorana de um Brasil com escassez de água, sobrevive como que abandonada à própria sorte. O prefeito, faminto por votos, assistencialista escabroso, visita o local para largar lá alimentos vencidos e despejar (literalmente) livros velhos. Na outra ponta do espectro político, a população tem como referência guerrilheiros que, pressupomos, enfrentam um estado militarizado (que, ao menor exemplo de atenção, dispara para cima em ameaça). Assim, pobreza, cinismo e violência política — em duas formas — dão a baliza onde a narrativa se desenvolve.
O povo dessa cidade será ameaçado por um grupo de estrangeiros que quer matá-los por esporte. Com as estradas e sinal de celular bloqueados, com a própria existência do município no mapa do Brasil excluída, os moradores estão isolados, à mercê dos “caçadores” que, com armas vintage, disputam pontos pelas mortes de cada um deles. Bacurau vai reagir, bala contra bala, e vai vencer. É uma fábula de vingança bem ao gosto de Quentin Tarantino: não está deslocada ao lado de Django livre ou Bastardos inglórios, tanto pela derrocada de inimigos ideais (o escravista e o nazista nos últimos citados – no que tange Bacurau, veremos daqui a pouco) quanto pela brutalidade (lúdica, até) de algumas cenas.
Essa comparação, aliás, delimita desde já uma medida da política de Bacurau: Bastardos inglórios e Django livre dizem quanto, de verdade, dos períodos históricos, dos assuntos que abordam? Me agradam esses e outros trabalhos de Tarantino, gosto do seu exagero e sinto prazer pelas vitórias que eles me deixam saborear – mas se extrai algum caminho político dos seus filmes? Esgotam-se na catarse que proporcionam; e é o que buscam.
Os inimigos ideais de Bacurau são, como esboçado, a classe política egoísta, demagoga, e o invasor estrangeiro, autocentrado e arrogante, em dupla variedade: o americano (ou o europeu) e o sudestino. Em conversas, fui levado a perceber que essas caracterizações dos invasores invertem estereótipos do cinema: os americanos não são salvadores, mas agressores; os sudestinos não são aqueles que olham e exotizam, são os que tornam estereótipo.
Em oposição a essas figuras-tipo estão os moradores, que (esse é possivelmente o maior valor do filme) são bastante vívidos, com histórias de vida e personalidades que parecem concretas e próximas. Ademais, apresentam um potencial de representatividade grande – desde Lunga, o líder da guerrilha, com sua aparência andrógina, até Domingas, a líder da comunidade, que é lésbica (a sua cena de beijo é terna e delicada), passando, como já foi indicado, por um Nordeste não construído pelo olhar do Sul. Na luta pela suas vidas, esses personagens agirão em conjunto e organizados, ao ponto em que é possível dizer que, como nos filmes de Serguei Eisenstein, o protagonista é o sujeito coletivo.
Tudo somado, pode-se dizer que o central na obra é o olhar sobre o outro. Mais do que americanos ou sudestinos, o antagonista é quem não enxerga nos demais pessoas, mas recursos de manobra política, objetos exóticos, animais para o abate. O adversário, em Bacurau, é a reificação. Mesmo o chefe dos vilões se recusa a ser reduzido ao tipificado: ele aponta o pobre clichê de ofender um alemão com “nazista” e mostra como, por suas décadas de moradia nos Estados Unidos, é até mais americano do que o ofensor. Contra essa razão instrumental, o heroico está no irredutível da vivência – o que é aludido no diálogo entre a turista carioca e o menino da terra: “Quem nasce em Bacurau é o que?” – “É gente!”.
Qualidades de violência
Parte da recepção tendeu a ver em Bacurau um chamado à ação revolucionária. Isso é visível tanto em autores de esquerda, como Xico Sá (“Essa terra ainda vai tornar-se uma imensa Bacurau”) e de direita, como Miguel Forlin (“A baixeza de Bacurau”). Penso que esse entendimento perde de vista que o filme não descreve uma revolução e não afirma ideais coletivos de transformação. Na obra, mais do que o elogio da ação armada, existe uma reflexão sobre como caracterizar a violência ou o que é a violência justa.
Lembremos que citei duas formas de violência política – do Estado e da guerrilha. Ambas estão lá como que autoevidentes: não precisamos ser convencidos sobre como agem os regimes de exceção, nem instruídos sobre a precariedade da luta armada. Mas há outras que surgem no filme com uma elaboração maior. A primeira é a dos caçadores de gente. A segunda é a da autodefesa, brutal e alucinada, dos moradores de Bacurau.
Os caçadores justificam a sua atividade em vários momentos. Seus argumentos podem ser resumidos assim: (1) agem segundo as regras de um jogo (utilizam só armas antigas, limitam a quantidade de tiros por jogador, pontuam de acordo com avaliação externa); (2) têm uma definição de quem é matável (por isso, repreendem o par de brasileiros que são seus aliados circunstanciais por terem assassinado “dos seus”); (3) veem a violência como uma libertação pessoal ou uma fruição da própria intensidade (é o caso do homem que não pudera matar a namorada ou disparar à toa no shopping, mas agora Deus lhe dera uma chance; é o caso da mulher que mata o casal de velhos e demanda transar na sequência). Constroem assim a própria violência, para si, como não-violenta.
Esse ato que elude o seu caráter violento por se afirmar lúdico ou hedonista ou por ser direcionado àqueles em relação aos quais não temos responsabilidade, esse ato mesmo assim é chamado a expor suas razões. Repetidamente, os criminosos ouvem a perplexa pergunta “por que vocês estão fazendo isso?”. Se essa questão fosse respondida, aceitar a morte se tornaria minimamente plausível? Sabemos que não seria inédito na história…
No caso dos moradores, a violência nunca se mostra como um recurso natural de ação, mas como um ponto fora do campo da razão – é só sob alucinógenos que a população se põe no conflito. Não se trata da revolta como continuação da política por outros meios: é desespero, fúria, delírio. De maneira a demonstrar a distância atual desse povo em relação a esse tipo de ato, todas as preparações que tomam frente ao conflito são uma recuperação do esquecido ou do largado às bordas: as armas, pegam no museu; a prisão de punição máxima, cavam para descobri-la; Lunga, figura da agressividade per se, ele é invocado como um demônio ou força da natureza, algo bom e mau, que não se controla depois de convocado.
O que parece ser dito é: a racionalidade pode ser, às vezes, espúria, presta-se a recobrir de pseudojustiça a barbárie; e o descontrole pode ser, às vezes, a única rota de justiça. Observando cabeças decepadas, um personagem pergunta “Lunga não exagerou não?”, ao que é respondido: “Não”. O ponto da ruptura teria sua própria legalidade. Reparemos mais uma vez, no entanto, que a oposição é entre racionalidade e descontrole, não entre duas racionalidades (uma delas, revolucionária). O filme se mantém no esquadro de um pensamento liberal (Locke diz justo o direito à rebelião contra o tirano) e conservador, tendo em vista que a insurreição popular como caos é figura típica dessa corrente.
À espera do milagre da ação
Resta atentar a uma outra faceta da recepção: a ideia de que Bacurau se refere a dados concretos do nosso presente. Esse posicionamento em relação a ocorrências concretas daria peso às proposições sociais mais abstratas de que vimos tratando. É aceitável esse entendimento e, caso seja o que ele diz sobre o mundo? Pensado desde 2009, gravado entre março e maio de 2018, o filme comenta diretamente a nossa atualidade?
Em algumas passagens, é evidente que sim. Momentos sutis, como quando, ao se ler em voz alta os nomes de quem foi morto no ataque, lista-se Marielle, Marisa Letícia, João Pedro Teixeira, indicando qual luto o filme compartilha com seu público. O sádico assalto a Bacurau é assimilado desse modo ao assassinato da vereadora do PSOL em março de 2018 (quando começaram as gravações…), à “perseguição” sofrida pela primeira-dama do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, à morte do líder camponês retratado no filme de Eduardo Coutinho, Cabra marcado para morrer. São esses nossos caídos, enuncia-se (e, assim, a catarse envolve uma vitória sublimada sobre atiradores e mandantes, redes sociais e procuradores, ditaduras e seus seguidores. É como ter tido a revanche…).
Noutro momento, vemos de passagem na tela de uma televisão o anúncio de execuções públicas no Vale do Anhangabaú, com horário marcado. O incontroverso, o puro serviço da notícia indica que esse evento não é nada demais, agora uma marca do cotidiano. A chacina pública como acontecimento apoteótico dá os tons da distopia que permanece no fundo de Bacurau, a de um estado policial e punitivo (o qual sempre nos espreita?).
Por esses elementos, e também pelo histórico do diretor Kleber Mendonça Filho, é que Bacurau foi sentido como uma estocada contra o governo do atual presidente. Essa perspectiva foi condensada na capa da revista Cahiers du Cinema que, com uma cena do filme, manchetou: “O Brasil de Bolsonaro” (nesse sentido, mas sem a mesma adesão, o crítico Marcelo Coelho falou que a obra faz um “bolsonarismo às avessas”). De forma geral, isso é razoável: é claro que Jair está do lado oposto de tudo o que a obra defende; em pessoa ou por meio de quem mobiliza direta ou indiretamente, ele representa uma ameaça às “existências mínimas” que Bacurau põe em primeiro plano. Por outro lado, é uma interpretação frouxa permitida pelo filme, mas que podia facilmente não ser levantada ou dar espaço a outras. O problema maior, de todo modo, é ver aí uma explicação do Brasil sob a presidência atual.
O antagonismo entre uma população acuada e invasores cruéis pode ser simplesmente real em alguns casos (como é para os indígenas), não obstante pode ser fantasioso para certa esquerda que vê na sua derrota simploriamente a derrota do esclarecimento (em Bacurau temos a fantasia da vingança e da redenção como em Democracia em vertigem, de Petra Costa, temos a fantasia da vítima…). Isso porque esse autoelogio travestido ignora as nuances da base de apoio e do eleitorado de Bolsonaro, e essa incapacidade de enxergar implica em inação política. Enfim, entende-se o apelo de Bacurau: centraliza o tema do reificar, do ver o outro como coisa; provê uma satisfação catártica, sublimação das perdas reais; realiza ações político-simbólicas no campo do imaginário e congrega, chamando-o pelo nome, um grupo que compartilha certas ilusões perdidas e fracassos. Seu limite está na medida do seu encanto: pode travar a recepção nesse conforto, pode induzi-la a pensar que sabe tudo sobre seus oponentes, pode convencê-la a só esperar pelo milagre.
O milagre… é curioso que Bacurau deixe em alguns a sensação de ter sugerido caminhos, quando o que faz é prometer que um dia, a afronta será demais e tudo vai estourar. O horizonte político trazido por Kleber Mendonça e Juliano Dornelles é: um dia, teremos que agir, pois isso será o único caminho restante; um dia, os excluídos perceberão tudo o que percebemos e se erguerão; um dia, faltará passividade ou sobrará raiva. Por outro lado, talvez seja essa a fonte da força do filme: representar o que o espírito do tempo pode crer sobre a ação política.
Agradeço à jornalista Marcella Affonso o comentário sobre o repúdio do líder alemão à pecha de nazista e à professora Letícia Silva os pontos sobre inversão de estereótipos.
Duanne Ribeiro é jornalista, pesquisador e escritor. Mestre em Ciência da Informação, especialista em Gestão Cultural e bacharel em Filosofia, é autor do romance As Esferas do Dragão (Patuá, 2019)