A polifonia das lutas

A polifonia das lutas
Joy Hester, Sem Título, 1947-1948 (Foto: Reprodução/Wikiart)

 

Primeiro, gostaria de agradecer a Eduardo Leal, a Helena Vieira e a Yuri Fraccaroli pelos comentários e críticas a respeito dos textos que escrevi, nesses últimos meses, para a Cult, sobre certas questões ligadas à relação entre experiência do sexual e política. O debate demonstra, a meu ver, a necessidade de constituir campos polifônicos de compreensão de fenômenos que dizem respeito ao corpo social como uma totalidade.

A base do argumento que procurei apresentar parte do princípio de que a heteronormatividade é uma estrutura disciplinar que encontra resistências de múltiplas formas, mesmo que várias dessas resistências não se traduzam imediatamente em lutas sociais, ao menos até agora. Na verdade, o tamanho da resistência potencial é medido pela extensão das múltiplas formas de sofrimento, de sintomas, de inibições e de angústias que a integração dos corpos a tal dispositivo disciplinar produz. Talvez uma maneira de explicitar certas dimensões do problema seja se perguntando sobre o que tais fenômenos efetivamente significam.

Ao pensar sobre o que poderíamos chamar de “o trabalho da heteronormatividade”, Eduardo Leal afirma a necessidade de reconhecer “que se trate em última instância de tecnologias, estas não apenas agem sobre corpos e sujeitos, mas sobretudo os produzem”. Helena Vieira e Yuri Fraccaroli concordariam ao afirmar que “não se trata de atestar a existência da heterossexualidade, nem da homossexualidade, ou seja, não se trata de uma questão de ordem ontológica, mas tecnológica”.

Por um lado, não discordaria em absolutamente nada que Vieira e Fraccaroli disseram a respeito da gênese da heterosexualidade como categoria, mas não vejo em que tal discussão colocaria o que afirmei em questão. Por outro lado, as discussões sobre a natureza meramente tecnológica da noção de sujeito parece-me importante por expor um dos eixos de várias discordâncias que podem se produzir. Há certas palavras que nos parecem evidentes e, no entanto, elas corporificam matrizes muitos distintas, as vezes contraditórias, de compreensão. Pois eu diria que não é completamente claro o que pode significar, nesse contexto, falar em “produzir sujeitos”.

Há quem acredite que fazemos profissão de fé materialista, que saímos do céu rarefeito dos nefelibatas e enfim tocamos o chão concreto quando mostramos que nossas categorias sacrossantas são fruto de processos histórico-materiais. E, como dizia Molière, nessa desqualificação clássica ao “mundo das ideias” descobrimos por que sua filha é muda. Mas talvez fosse o caso de se colocar perguntas como: mas sobre exatamente o que agem esses processos de produção de sujeitos, que matéria tais tecnologias conformam? Ou estamos dispostos a criar a imagem de uma máquina social que parece poder produzir do nada, sem exterioridade alguma, como se tudo o que um dia se imaginou ser atributo de Deus agora fosse secularizado como potência da máquina social que produz sujeitos a sua imagem e semelhança?

Quando se coloca questões dessa natureza, rapidamente há quem se indigne por imaginar que logo virá  o esquadrão da normatividade natural, das disposições inatas, e sabemos muito bem o que isso significa quando se começa a falar sobre o campo do sexual. Mas eu insistira que há outro caminho a trilhar e que me parece mais condizente com a experiência prática da produção necessariamente sintomática que os dispositivos de heteronormatividade realizam. Ele consiste em lembrar que mais do que “produzir” sujeitos, discursos “dividem” sujeitos entre aquilo que, deles próprios, eles conseguirão nomear e aquilo que irá insistir corroendo todo processo de nomeação, lembrando da violência que a nomeação implica, e usando o corpo para expressar as marcas inconscientes dessa violência.  Claro que tais divisões se dão de múltiplas formas e que tal impacto é vivenciado de várias maneiras, mas seria um erro político (além de outras formas de erro) negligenciar tal divisão como efeito genérico de subjetivação.

Por que erro político? Porque essa é uma força pulsional de resistência que pode vir de todos os lados do corpo social, desde que saibamos operar a polifonia que ela pede, com suas dissonâncias constituintes. Em dado momento de sua réplica, Eduardo coloca a questão: “por que devemos supor que fantasias, circuitos de afetos e dinâmicas de gozo constituem uma vivência do sexual mais concreta do que práticas corporais ou performances circunscritas por injunções sociais?”.

Há uma resposta possível: porque o inconsciente é, acima de tudo, uma forma política de luta e uma nova disposição da clínica passaria por fazer dessa forma uma força. Fantasias, afetos, gozo são exatamente aquilo que tem a força de decompor e instabilizar performances e práticas circunscritas por injunções sociais. Práticas que Vieira e Fraccaroli descrevem ao falar da “inumerável parafernália sexual de incitação à heterossexualidade, da representação pornográfica à telenovela, passando pela literatura, pela clínica psicanalítica, pelo romantismo, pelas representações da masculinidade (carros, barba, música, futebol) e da feminilidade (estética, esmalte, unhas pintadas e batom)”.

Nada a respeito do inconsciente como forma política de luta potencial implica negligenciar formas concretas de sujeição e dominação que se repetem, de maneira brutal, tendo em vista marcadores muito específicos de gênero e determinação sexual. Nada disso implica não reconhecer a necessidade de dar visibilidade a lutas cotidianas fundamentais e decisivas que enfim conseguem se fazer ouvir e produzir mecanismos de mudanças que, muitas vezes, tocam a maneira com que nossas sociedades definem a preservação da vida de alguns e a indiferença à morte de outrxs.

Mas como disse anteriormente, as tarefas políticas se conjugam no plural. Elas pedem formas múltiplas de estratégias, e uma dessas estratégias passa, necessariamente, por dinâmicas genéricas de desidentificação. Todo poder caiu quando desidentificações foram politicamente assumidas, quando sujeitos não se viram mais como dentro de normas que definiam uma nação, um Estado, uma religião, um regime econômico, um conjunto de tradições e hábitos, uma norma de relação a seus gozos e desejos.

Por isso, de fato discordo de colocações, como as feitas por Vieira e Fraccaroli, para quem “no que tange a presente discussão, isso significa dizer, ainda na esteira de Wittig, que esses discursos totalizantes, tais como ‘não existem heterossexuais’ ou ‘existem homossexuais’, só podem ser enunciados desde o interior do regime heterossexual”. De certa forma, essa já é uma proposição totalizante. Uma proposição que se organiza na forma “todo discurso X só pode ser dito em posição Y”. A própria Wittig tem várias proposições totalizantes que se dão na forma “existe X, não existe Y”.

Insistiria que a crítica de proposições de natureza universalizante no campo político é contraditória e vai na contramão de processos históricos concretos. De fato, não concordo e nunca concordei politicamente com críticas dessa natureza. Lutas feministas, só para ficar em um exemplo, mobilizaram várias proposições universalizantes clássicas como “nenhuma mulher pode ser tratada de forma inferior a um homem em nenhum contexto, em nenhuma situação”. Nem todas proposições universalizantes são substancialistas, mas existe certa tendência a desqualifica-las como tais. Por sinal, há verdadeiras mutações estruturais profundas quando aquelxs que foram expulsos da universalidade formal falam em nome da universalidade real. A revolução haitiana mostrou o tipo de explosão que isso produz.

Por fim, diria que há uma convergência involuntária em colocações como: “Desidentificar-se da heterossexualidade não significa rejeitar a alcunha heterossexual, mas engajar-se em práticas sexuais não-heterossexuais, não-reprodutivas, porque são as práticas que constituem os sujeitos, e não os nomes”. Poderia assinar embaixo tal colocação sem maiores problemas. É isso o que, de certa forma, tentei falar. No entanto, sei que a compreensão que damos para o que está aí em jogo é diferente.

Ao menos de minha parte, o ponto que creio ser importante salientar consiste em lembrar que “práticas sexuais não-heterossexuais e não-reprodutivas” não estão vinculadas à assunção de nomes e identidades específicas. Elas se desdobram na integralidade dos espaços nos quais o gozo habita. Não existe sujeito desprovido de práticas sexuais não-heterossexuais e não-reprodutivas. A questão é para onde vão tais práticas. São elas, inclusive, que os marcam em seus circuitos de afetos. Por isto, nunca foi uma questão de compreender tal processo como simplesmente o ato de abandonar nomes, até porque, um nome nunca é apenas um nome, assim como abandonar “nomes” nunca foi algo “simples”. Nomes produzem efeitos, paralisam processos, impedem circulações. Mas não se trata de abandonar nomes porque se trata de dar força política à disparidade do sexual que habita todo sujeito. Valeria a pena pensarmos sobre isso para a configuração das lutas que virão.

Vladimir Safatle é professor titular do departamento de filosofia e do instituto de psicologia da USP


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