A persistência do riso

A persistência do riso

Oh, sobrevivência, cada vez melhor!
René Char (Revista Polichinello nº 11, 2009)

Com imagens de Oswaldo Goeldi, encadernação delgada, monocromática, irrompia em abril de 2004 o primeiro sopro da revista Polichinello. Experiência decorrente de afetos da literatura cujas perspectivas cingiam a sinuosidade de um desejo mútuo, ideias para uma revista literária, zona de atrito no sentido de pensar no revés da conformidade.

Experiência de atravessamento entre escrita, imagem, pensamento. Não necessariamente numa estrutura de linearidade ou de acoplamentos,­ mas numa atmosfera de disjunção na qual as correlações – dobra sobre dobra – implicavam numa labiríntica zona de encontros.

Desde o primeiro sopro uma persistência: engendrar um espaço de fluxo sucessivo, na direção de uma experiência conjugada por pensamentos em intenso processo de diferenciação, cujo em-comum se articulasse numa rota de colisão com o presente.

A ideia da Polichinello, fala-se a ideia do tema, consiste numa deferência ao poeta Paulo Plínio Abreu (1921-1959), artífice de uma poesia que expressa, na sua unidade, uma sedutora potência imagética, plena de vertigens, eclipses, ocasos. Universo de uma primazia incomum da qual devém uma escrita densa e complexa personificada pela leveza de poemas como “o Comedor de Fogo”, “A estranha mensagem”, “o Espantalho”. Poderosa constelação poética da qual desponta ‘o desassossego de noites atravessadas por ventos que não cessam’. É deste horizonte profuso que vem “o Polichinelo” – e com ele o sentido da revista –, cujo espectro se apresenta pela potência de um gesto arrebatador: um riso de ironia.

Gesto vazio de autoridade, o riso do Polichinelo, é ‘de um humor profundo, amargo e doloroso’; riso de sabedoria o qual confronta, sem dissimular, as contingências postulando aquilo que enuncia o poema: “um mundo maior que sua alma”.

O Polichinelo

O seu se­­­­gredo era como o dos outros.
Seus olhos eram de vidro azul
e na boca vermelha
o riso da ironia.
O humor profundo, amargo e doloroso
vinha de sua boca;
o riso da sabedoria
e do desespero
gritava da sua boca aberta em sangue.
O riso do polichinelo
vinha do coração ausente, era uma advertência.
Era apenas o riso
e falava de um mundo
maior que sua alma.

Paulo Plínio Abreu, Poesia (Edufpa, 1978)

A poesia de Plínio traça uma curiosa recorrência com essa figura da commedia dell arte, a qual, numa outra situação de poesia, sobrevém como Saltimbanco (no poema O comedor de fogo). E a partir desses versos triangula, com o polichinelo, uma linha dupla que remete a um só tempo aos poemas de Rilke (cujo fundo sem fundo é a reverberação de uma influência jubilosa) e aos desenhos de Giandomenico Tiepolo. É com a figura da Pulcinella, de Tiepolo, que a poesia de Plínio, pela metáfora do bom encontro, alcança possibilidades e semelhanças.

O comedor de fogo

Veio do comedor de fogo e de seus milagres a esperança impossível.
Do comedor de fogo e de seus milagres à porta de sua tenda
Onde dormiam os cães numa nuvem de moscas.
Veio do comedor de fogo a esperança dos mundos impossíveis.
Veio dessa lembrança hoje apagada pelo tempo o sombrio desejo de evasão.
Veio do comedor de fogo a visão da vida aberta como um grande circo
E o convite irreal para a distância onde se esconde a morte.
Até o amor se perdeu nessa lembrança de um estranho comedor de fogo
E toda a infância confundiu-se com os milagres desse saltimbanco
E de seus cães doentes à porta de sua tenda.

Paulo Plínio Abreu (Polichinello nº 05, 2006)

É a partir dessas curvas sinuosas que sopram as linhas de forças pelas quais a experiência (em revista) se desloca – em revigorante processo de singularização –, numa relação-ativa com o possível e para além dele, experimentando territórios múltiplos, na direção do que vem, fala-se do poema a vir. E nessa rota em aberta sintonia com Blanchot, no entendimento de que “apenas por existir o poema o futuro é possível” (1997, p. 105).

Em 17 edições um norte, o desvio ao imperativo de uma linha condutora, em favor das escritas, para se livrar de uma vez da noção de identidade ou rosto, apostando num cruzamento fecundo, no sentido de cópula, entre “um desejo de partilha” e “o que não cessa de vir”.

Escrever para supraviver
por um momento, ou ser
inteiramente num instante
em que passado, presente
e futuro se fundem numa
chama única e transparente.
Escrever para ver num lago
branco o lado negro de Narciso,
luz e sombra velando-se e
revelando-se nas pontas do
sorriso – anjo-monstro, que
nas águas aparece refletido.
Escrever, riscar à carvão na própria
lápide o brilho cego de diamantes.
Escrever, morrer e aspirar, eterna
mente, a poeira de uma estante.

Antônio Moura (Polichinello nº 10, 2009)

doppelgänger

dois corpos atados pelos braços
silhuetas sem rosto

uma mulher e sua sombra
o espaço vazado deixado na passagem

gestos moldados na penumbra
sobre a tela em branco

para onde foi a transparência
apenas uma projeção – o duplo

não reflete no espelho
duas gêmeas fendidas

intervalo de imagens, isômeras
tensão impossível da unidade.

Virna Teixeira (Polichinello nº 10, 2009)

E no curto-circuito entre a unidade e o duplo nenhuma síntese, mas a convergência recíproca entre mundos, sem sossego, pela afirmação da desconformidade, numa aposta cuja diferença é o vazo comunicante.

O fator essencial se desdobra, neste caso, através do que corta a superfície, fala-se das escritas que migram sem cessar. Essa é a articulação que interessa: as escritas em processos de diferenciação pelos quais a poesia experimenta e excede os seus limites.

A escrita é um reduto de beleza cuja duração intraduzível, por si mesma, nos devolve a ameaça que perdemos. A escrita deve colocar a ocasião das “parturientes leves e das parturientes ensombrecidas” (Rilke) que desmancham o “fogo errante” (Mandelstam) numa constelação invertebrada de árvores plantadas na desordem da estação.

 Arturo Gamero (Polichinello nº 15, 2014)

 Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou sozinha e escrevo. Não, não estou sozinha. Há alguém aqui que treme.

Alejandra Pizarnik (Polichinello nº 16, 2015)
Trad. Davi Pessoa & Vinícius Nicastro Honesko

É nessa coreografia das intensidades (em ramificações diversas) que a experiência move seus laços, sempre numa correlação fugidia, no embate sucessivo contra um tempo duro e melancólico. Combatendo fora da zona de conforto, enfrentando os temas, entre a literatura e o pensamento, numa insistência que se afirma por um repertório movente, excurso entre fluxos e devires, pelos quais as possibilidades se renovam, na direção da poesia.

E assim movemos e somos movidos, empurrados por uma pequena multidão de afetos (amigos, poetas, escritoras, artistas, insurgentes) e com eles afirmamos nossa errância numa espécie de ritual da imanência, fazendo da experiência literária um modo de combate.

Essa aventura é a prova de uma dor em direção à qual convém ir. Caminho difícil que não exclui a festa.

Roger Laporte (Polichinello nº 13, 2011)
Trad. Sônia Fernandes

Nilson Oliveira faz parte do núcleo editoria da revista Polichinello. É autor de A Literatura e os Possíveis da Escrita Literária (Lumme, 2010) e Nietzsche/Deleuze: Natureza-Cultura (Org. com Daniel Lins e Roberto Barros), (Lumme, 2011).

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