A ostentação teórica da insignificância

A ostentação teórica da insignificância

Eduardo Socha

A República de Weimar (período de constituição liberal-democrática da Alemanha nos anos 1919-1933) foi marcada por ciclos quase obscenos de hiperinflação e de desemprego: cinquenta milhões de marcos valiam um dólar americano em 1923; seis milhões de pessoas estavam desempregadas em 1932. A devastação econômica sem precedentes na história alemã formaria a clareira política e institucional necessária para a ascensão do Führer em 1933, dando fim à constituição de Weimar e início ao Terceiro Reich. Como se sabe, a continuação da história deu os contornos tragicamente precisos para aquilo que mais tarde se convencionou como a absoluta “banalidade do mal”.

No entanto, no breve interstício das crises anteriores a 1933, a era de Weimar franqueou algumas das produções artísticas e intelectuais mais impactantes da história da cultura europeia: Bertolt Brecht no teatro; Max Ernst e Paul Klee na pintura; Arnold Schoenberg e Anton Webern na música; Herman Hesse e Thomas Mann na literatura; Fritz Lang e F. W. Murnau no cinema; a escola de Bauhaus na arquitetura; o Instituto de Pesquisas Sociais (posteriormente Escola de Frankfurt), com Adorno, Horkheimer e Benjamin, na filosofia.

A efervescência cultural da década de 1920 fez da Alemanha um pólo de difusão das vanguardas que indicariam, principalmente no pós-guerra, os rumos oscilantes da modernidade. De todo modo, é no mínimo esquisito o alheamento que essa mesma modernidade impôs ao crítico, jornalista e escritor Siegfried Kracauer,  protagonista na cena intelectual do “período áureo” de Weimar.

Sim, é preciso reconhecer que Kracauer ganhou certa notoriedade como o primeiro teórico a pensar a arte cinematográfica sob a perspectiva de uma consistente filosofia da história, como comprova o livro De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão (publicado no Brasil pela Jorge Zahar em 1988). Nele, o autor descreve o alinhamento ideológico da crescente indústria cinematográfica às orientações internas  da política alemã, uma relação que atingiria seu paroxismo nos filmes da propaganda nazista. Os escritos sobre teoria e crítica de cinema, no entanto, deixaram à sombra a prolífica atividade de crítico cultural e crítico literário de Kracauer.

Correspondente e editor do Frankfurter Zeitung (jornal alemão onde escreveram Max Weber, Adorno, Benjamin, Mann e Stefan Zweig), Kracauer publicou mais de mil artigos e ensaios, a maior parte durante o período de Weimar, cobrindo uma diversidade temática espantosa. Alguns destes ensaios, que atestam seu vigor estilístico e sua argúcia no tratamento de temas corriqueiros, foram reunidos na coletânea O ornamento da massa, estabelecida pelo próprio autor e agora publicada pela Cosac Naify.

Precursor dos cultural studies

Se, no campo discursivo dos fenômenos culturais, ainda persiste uma teimosa inadequação entre, de um lado, as proposições teóricas e auto-reflexivas das análises acadêmicas tradicionais e, de outro, as exigências fundamentais de acessibilidade que caracterizam toda atividade jornalística, o livro de Kracauer aparece como notável exemplo histórico de conciliação. Afirmar que ele teria sido um dos precursores dos cultural studies, tendência que hoje anima  grande quantidade de pesquisas nos diversos departamentos de ciências humanas, já seria dizer muito. Mas as abordagens dos tópicos de “superfície”, vistos pelo estilo sóbrio de Kracauer, por sua escrita elíptica que provoca a vertigem das revelações inesperadas lá onde o senso comum só percebe insignificâncias, extrapolam as convenções acadêmicas e jornalísticas e inauguram um modo singular de compreensão dos fenômenos do cotidiano. Podemos conjeturar mesmo a existência de uma difusa e improvável tradição à qual pertenceriam Baudelaire, Kracauer, Roland Barthes e (por que não?) Slavoj Zizek.

O ornamento da massa está dividido em seis seções, difíceis de classificar, a exceção de Perspectivas, que trata especificamente de teologia, filosofia e literatura, e da seção Cinema, que traz passagens certamente compreensíveis nos dias de hoje, mas inusitadas para a década de 1920, como “a produção de filmes estabilizou-se tanto quanto seu próprio público, mostra motivos e tendências típicos, sempre recorrentes, e mesmo os filmes que diferem da média já não oferecem tanta surpresa” (Cinema, 1928).

Nas demais seções, a panóplia de assuntos inibe aquela conveniente estabilidade dos rótulos. Kracauer tece relações entre a nova indústria do turismo de massa e as danças de salão, discorre sobre lobbies de hotel, urbanismo, uma tourada, o tédio, o isolamento, a ginástica rítmica. Analisa o fenômeno dos best-sellers e do crescente sucesso publicitário das biografias. Analisa o impacto das “revistas ilustradas” nos quiosques que, ao estampar as conquistas da produção e da reprodução fotográficas, livram as imagens de seus despojos (estamos falando ainda, é bom lembrar, de uma era pré-photoshop). Em particular, neste ensaio sobre as consequências  da fotografia, Kracauer prenunciava a fragilidade de formalização simbólica e o torpor contemporâneo diante da inundação de imagens esterilizadas: “Se a fotografia se oferece à memória como suporte, é a memória que deve determinar a escolha. Mas esta torrente de fotografias varre todos os seus diques. O assalto de coleções de imagens é de tal modo violento que talvez ameace destruir os traços decisivos à consciência.” (A fotografia).

Filosofia do cotidiano

Kracauer apontou para aquilo que mais tarde seria o preceito fundamental da filosofia de Adorno (que reconhecia, aliás, em Kracauer uma das referências centrais de sua obra) e também dos autores daquela difusa tradição mencionada: a crença de que o confronto teórico com os fenômenos concretos de sua época torna-se imprescindível para o desvelamento do núcleo histórico da verdade. Aqui, o filósofo abdica da pretensão de totalizar a descrição do real por sistemas transcedentais e inoperantes. Pois sua aposta reside na identificação da estrutura implícita e singular do detalhe, nas determinações sociais que subjazem a toda manifestação cultural e aos gestos mais banais da experiência cotidiana, o que permitiria encontrar a autenticidade discursiva do mundo. Assim, o efêmero, o que é marginalizado da cultura, os próprios rituais da cultura de massa, recebem de Kracauer o mesmo estatuto teórico concedido às questões metafísicas ou aos tratados sociológicos formais (ver o famoso resumo dos objetivos do ensaísta – a “análise das discretas manifestações” de uma época – no trecho da página seguinte).

No longo ensaio que dá título ao livro, o autor observa a mecanização taylorista e a padronização, no domínio do corpo, na coreografia das tillergirls (grupo de dançarinas treinadas à maneira militar, semelhantes a alguns musicais de hoje). O ornamento da massa, que sem as lentes do observador social pareceria desprovida de significação marcante, reflete, para Kracauer, “a racionalidade aspirada pelo sistema econômico dominante”, ou seja, a redução da totalidade da razão à ratio setorizada da organização capitalista. O ornamento da dança das girls (que se opõe ao ritual cênico do ballet) consiste “em milhares de corpos assexuados em roupas de banho”, alinhados por movimentos que se situam no vazio e impulsionados apenas pela regularidade sincrônica de linhas paralelas. A personalidade da dançarina, partícula da massa, aqui se dissolve na precisão decorativa do cálculo.

Declarando não mais do que a forma vazia e inorgânica, o ornamento da massa confirmava assim o turvo “retrocesso na mitologia” da abstração racionalista, uma retração inevitável da consciência. Ou ainda, como formalizariam Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento em 1947, percebemos eventos que denunciam a interversão da razão em mito. Kracauer, neste ensaio escrito em 1927, via no ornamento da massa o paradigma expressivo de sua época. A sinistra semelhança com aquilo que aconteceria poucos anos depois nas aparições públicas de Hitler, geometricamente concebidas e ensaiadas, certamente não lhe pareceu casual.

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