A memética e a era da pós-verdade
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Estamos vendo a ressaca de um desses processos de memetização: a demonização, criminalização e desqualificação das esquerdas no Brasil e no mundo
Entramos na era da pós-verdade e do pós-fato, em que a verdade não é falsificada, ou contestada, mas de importância secundária. A campanha de Donald Trump nos Estados Unidos, a popularização dos enunciados criacionistas e da cura gay anunciados pelos parlamentares-pastores no Brasil, a campanha jurídico-midiática que produziu o impeachment, o repertório memético da direita e da esquerda, transformam questões complexas em evidências instantâneas, em sentimentos, preconceitos, caricaturas que podem ter apenas um efeito irônico e cômico ou podem, em uma campanha política ou de difamação, serem devastadores e destruir reputações, campos e a credibilidade de grupos inteiros.
A novidade é que a construção de fatos e notícias, o marketing, a comunicação de guerra e guerrilha, o jornalismo de comoção, a propaganda política, foram apropriados de forma massiva pelos não-especialistas, produzindo ondas viralizantes nas redes e contágio nas ruas.
Estamos vendo a ressaca de um desses processos de memetização: a demonização, criminalização e desqualificação das esquerdas no Brasil e no mundo. Uma onda obscurantista que viraliza a partir de truísmos, memes repetidos, capas de revista, bombardeio de fait divers na televisão e uma rua que foi aquecida com bordões, bonecos infláveis gigantescos, patos amarelos corporativos e, claro, gente munida com faixas e cartazes que expressam todo tipo de crenças que seriam insustentáveis se não houvesse um ambiente cognitivo que as acolhesse como desejáveis e verossímeis.
Saímos do domínio dos fatos para uma ensurdecedora guerra de slogans, certezas e dogmas. Um fundamentalismo comunicacional que prescinde de argumentação.
Verossimilhança e evidência são a matéria prima da pós-verdade e do pós-fato. Sua enunciação repetida e viralizada por muitos, sua expressão em imagens e memes antecipam o que queremos ver acontecer. Sua simples difusão e circulação, a quantidade de cliques e visualizações são o que dão legitimidade ao conteúdo que é exposto. A visibilidade máxima, o compartilhamento, o engajamento em comentários e cliques são a forma de legitimação do pós-fato e da pós-verdade. Algo que não necessariamente aconteceu, mas que a simples enunciação e circulação massiva produz um efeito de verdade.
A pós-verdade é a informação que buscamos para satisfazer nossas crenças e desejos. Como nas editorias de jornalismo em que o repórter sai a campo para encontrar as melhores “aspas” que comprovam um enunciado prévio. Fábrica de fatos e produção de notícias, mas que hoje ganha nas redes um poderoso complemento: a memética, a evidência instantânea, que produz sensações, ódio, riso, ridículo, inferiorização do outro através de uma imagem ou de um truísmo.
O Brasil desde as eleições de 2014 só viu intensificar a produção de pós-verdade e a construção de pós-fatos. O boneco inflável gigante do ex-presidente Lula vestido de presidiário, as inúmeras antecipações e simulação de sua possível prisão, em operações reais e operações simbólicas, a construção de um ambiente jurídico-midiático que simulou a derrocada de um governo e partido preparam para aceitarmos praticamente qualquer coisa.
O termo pós-verdade foi utilizado por Ralph Keyes no livro The post truth era: Dishonesty and deception in contemporary life (St. Martin’s Press, 2004) e retomado pela revista The Economist para tentar entender porque os eleitores de Donald Trump aceitam afirmações estapafúrdias como a que diz que a certidão de nascimento de Barack Obama foi falsificada, que ele não é norte-americano e que o presidente dos EUA ajudou a fundar o Estado Islâmico, que os Clintons são assassinos e que o pai de um rival político de Trump estava com Lee Harvey Oswald antes de ele matar John F. Kennedy.
Donald Trump também criou um novo patamar ético, ultrapassando todos os limites do que pode ou não ser dito em público, ao utilizar em sua campanha eleitoral expressões racistas, sexistas, acusações pessoais e desabonadoras, expressando todo o ódio, nojo, raiva, desprezo em praça pública, de forma a estimular uma exteriorização e exorcismo, uma visibilidade máxima de toda sorte de racismos, fascismos, machismos.
Anacronismos viralizantes
No Brasil, a construção de pós-verdade produziu suas aberrações e anacronismos, entre elas ressuscitou e alimentou o temor concreto de um comunismo apocalíptico, uma espécie de fim dos tempos políticos – que tem em Cuba e na Venezuela seu modelo aterrorizante – e que será implantado a qualquer momento que governos e representantes progressistas ou de esquerda cheguem ao poder.
Pouco importa que sejam vereadores de cidades do interior, deputados estaduais ou federais, prefeitos, governadores ou presidentes da República que jamais atuaram ou propuseram ações nesse sentido. A implantação mágica do comunismo virou um divisor de águas e um meme crível, uma pós-verdade e uma crença popular. Uma fantasmagoria que traz toda sorte de malefícios e mutações comportamentais inusitadas, como a indução de crianças a mudarem de sexo e de gênero, por professores comunistas e doutrinadores nas escolas.
Mas como combater pós-verdades e pós-fatos sem mudar o ambiente cognitivo e afetivo como um todo? Claro que a crítica e a contra-narrativa também são meméticas. E os memes chegam potencializando tanto a ignorância, a desinformação e o regime de crença de diferentes grupos quanto a inteligência popular, o humor e a ironia. Os memes também atualizaram as verdades que de para-choques de caminhão. Mais do que isso nos dão as “evidências” de que precisamos para derrotar, humilhar, rir, desqualificar uma pessoa, um grupo, um pensamento.
Os regimes de pós-verdade produzem mais do que fatos e informações, trabalham com os regimes de crença. Visões de mundo, preconceitos, sentimentos. Se antes o propósito da mentira política era criar uma falsa visão do mundo, agora trata-se de reforçar preconceitos e sentimentos, não apresentar ou analisar fatos. É algo do campo da irracionalidade.
A política na era do gerador de memes
É como se as pessoas, munidas de um gerador de memes, de um vídeo no youtube, uma timeline e uma conta no Twitter se tornassem editorialistas de suas próprias crenças, falando para as bolhas do Facebook, dos seguidores, dos iguais. Uma audiência capaz de validar e chancelar o que é dito, produzindo pertencimento e identificação, ou o ódio e uma guerra memética impermeável, em que não há perdedores, pois ninguém se ouve e todos têm razão.
Trata-se de uma nova forma de produção de consenso, por cliques, likes, compartilhamentos, anuência que cria uma comunidade imaginada de iguais, no momento em que as instituições produtoras de consenso entraram em crise de credibilidade: a Justiça, a Mídia, a Escola, os Políticos, a própria Ciência.
Produzir nichos, comunidades de identidade que não suportam a ruidocracia e a polifonia, que não suportam o dissenso, que não suportam a hiper fragmentação de fontes, notícias, boatos, rumores, mensagens e memes descontextualizados que nos exigem um enorme esforço de decodificação ou um clique e um like de cumplicidade.
É simbólico que a memética, teoria inspirada nos memes replicantes proposta por Richard Dawkins venha da biologia, indicando uma confluência de campos e novos paradigmas no pensamento dos meios e da comunicação.
A ideia do “gene egoísta” que para sobreviver e se replicar precisa desesperadamente de vetores, corpos, que o impulsionem. Nós nos tornamos os vetores dos memes e das ideias prontas que circulam no infinito dos boatos, histórias, truismos, verdades e pós-verdades que, colocadas para circular, perde-se o controle.
Essa produção instantânea realizada por uma multidão heterogênea desloca os intermediários clássicos: a corporação jornalística, o jornalista profissional, as agências de noticias. Põe em xeque a “reserva de mercado” que existia para os formadores de opinião corporativos e aponta para outros modelos e campos, expandidos em que não se pode pensar o “homem” desconectado de suas próteses e dispositivos.
A discussão que interessa é como as redes sociais, com sua miríade de singularidades e processos de subjetivação rompem com a lógica da reprodução através da informação e da comunicação que neutraliza e domestica os acontecimentos, reduzindo a imprevisibilidade, conformando ao já sabido.
Essa proliferação e disseminação pós-mídias de massa já está acontecendo e criando uma nova ecologia midialivrista, uma quantidade muito de grande de coletivos, redes, grupos e também de “perfis”. Pessoas que individualmente começam a se ver e assumir como produtores relevantes de conteúdos. Essa percepção de que a mídia somos nós, esse conjunto de singularidades que podemos acessar, com quem podemos interagir e trocar realmente é uma mutação antropológica. E, mais do que isso, não é o jornalismo que se tornou o modelo das trocas nas redes.
O modelo da comunicação pós-mídia de massas é a conversação e/ou a memética, ideias replicantes, memes que buscam se reproduzir e para os quais somos um dos formuladores e vetores entre outros (objetos, redes, dispositivos). A memética interessa menos pelo seu “darwinismo cultural” (os memes como genes egoístas que querem se multiplicar a qualquer custo e sobreviver), mas por explicitar o potencial multiplicador e viralizante de ideias, imagens, sons, desenhos, valores estéticos e morais, línguas.
Tudo o que possa ser transmitido, duplicado, remixado de forma autônoma. A memética e a vida e morte dos memes nas redes sociais são uma boa expressão dessa potência e erótica da comunicação, para o pior e para o melhor.
A conversação infinita
As teorias da informação e da comunicação clássicas não se deram conta de que a conversação é a base de uma nova erótica do contato, da contaminação, da experiência da insurgência em fluxo.
O que seria a memética como potência? Ruidocracia e acolhimento do contraditório? Temos que compreender essa outra lógica do sentido, esse cooperação entre muitos, entre singularidades quaisquer que estabelecem uma “conversa infinita” como propunha Blanchot , uma outra comunicação, quando ela escapa ao poder.
Não se trata de “informar” no sentido jornalístico, mas efetivamente experimentar uma prática dialógica, em que a conversação entre muitos cria pensamento.
É uma experiência que altera ontologicamente o jornalismo pensado como prática de poder, que se esconde sob o manto do informar, “reportar”, reproduzir. Estamos vendo um deslocamento da comunicação para sua função expressiva e de invenção, nessa conversação de muitos com muitos. Não que essas funções clássicas desapareçam.
Mas do que nos serve estar “informado” se não temos autonomia ou meios para criar conhecimentos derivados, para fazer da informação potência de transformação dos desejos e das crenças? A mídia de massa, na sua prática pseudocientífica ou “neutra” e “imparcial” funciona com palavras de comando ou de ordem, como colocam Deleuze e Guattari .
O jornalismo e a publicidade massivos trabalham com comandos: “ordenar, interrogar, prometer, afirmar, não é informar” (…) “a informação é apenas o mínimo estritamente necessário para a emissão, transmissão e observação das ordens consideradas como comandos”, dizem de forma certeira, pois essas informações trazem pressupostos implícitos, não discursivos, obrigações sociais.
A questão hoje é menos nos informar, do que entender justamente que “palavras de ordem” e mundos estão embarcados na informação e nas controvérsias. Mapear essas controvérsias, como propõe Bruno Latour, para arrancar, explicitar, as palavras de ordem que as habitam. Para criar outros possíveis e sensíveis.
O que entendo como comunicação “massiva” é tudo o que nos rouba a potência de efetuar outros mundos e pensamentos. A distinção pode ser feita também nesses termos: existe um jornalismo massivo que funciona buscando a unificação e a centralização, a homogeneização, a diminuição da polifonia, que desconsidera a ruidocracia e a heterogeneidade das falas.
Buscar essa unidade na variedade tem seu preço e é diferente de buscar a multiplicidade e as diferenças em si mesmas. São pressupostos realmente distintos.
Ou seja, vejo um midiativismo que não se fechou em uma narrativa “monolinguistica” que só fala para um grupo, atravessou mundos apontando como grupos distintos veem a si mesmos e aos outros no mundo. A troca de pontos de vista entre singularidades em luta podendo constituir um Comum, além de apontar, de fato, para a “possibilidade de sermos outros do que somos”, como no perspectivismo de Eduardo Viveiros de Castro.
Essa mobilidade, essa capacidade de entrar e sair das controvérsias construindo lugares comuns de lutas é uma das características do midiativismo, pós redes sociais. Essas ideias sugerem uma possibilidade de redefinição relacional de dualismos estéreis a partir do conceito de perspectiva ou ponto de vista.
Nesse sentido, a teoria do perspectivismo do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro pode ser muito inspiradora ou pelo menos pode ser um bom ponto de partida para uma outra teoria da comunicação. Um perspectivismo propriamente memético. Se não for pedir demais!