À margem de Hollywood
O cinema de Kubrick é pautado por evitar o melodrama e o sentimento
Luísa Pécora
O norte-americano James Naremore, professor emérito do Departamento de Comunicação e Cultura da Universidade de Indiana, é autor de um dos mais recentes lançamentos literários sobre o cineasta Stanley Kubrick. Lançado em 2007 pelo British Film Institute, On Kubrick reúne análises críticas de cada um dos filmes do diretor, histórias dos bastidores e informações sobre o contexto cultural em que eles foram produzidos.
Este é apenas a mais recente obra de Naremore sobre cinema, já que ele também é autor de livros como More than night: Film noir in its contexts (University of California Press, 1998), The films of Vincente Minnelli (Cambridge University Press, 1993) e The world of Orson Welles (Oxford Union Press, 1978). Atualmente, ele edita uma série de monografias para a Universidade de Illinois que discutem a obra de diretores contemporâneos. Até agora, a coleção já publicou livros sobre quatorze cineastas, entre eles o americano Brian De Palma, o português Manuel de Oliveira e o brasileiro Nelson Pereira dos Santos.
Em outubro, James Naremore veio ao Brasil ministrar uma palestra sobre Stanley Kubrick e a estética do grotesco na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A revista CULT conversou com ele sobre a importância do diretor para o cinema contemporâneo.
CULT – Qual é o legado de Stanley Kubrick para o cinema?
James Naremore – Kubrick é um dos poucos diretores de filmes produzidos no passado que a atual geração de universitários considera especialmente interessantes. Grande parte de seu trabalho está disponível em DVD e seu impacto na cultura popular dos últimos 50 anos é palpável. Para dar alguns exemplos: nos Estados Unidos, [o seriado] Os Simpsons por diversas vezes fez paródias ou citou Kubrick; um recente vídeo da MTV é baseado em cenas de O iluminado; a música que toca no início de 2001: Uma odisséia no espaço é popularmente mais associada a Kubrick que a Strauss; e Dr. Strangelove [nome original de Dr. Fantástico] tornou-se um nome simbólico para um tipo político que infelizmente ainda existe entre nós. Além disso, a maioria dos filmes permanece relativamente atual. 2001, por exemplo, continua sendo uma experiência convincente e um comentário relevante sobre a evolução da inteligência mecânica, embora o milênio tenha passado. 2001 talvez seja o filme de ficção científica mais influente jamais feito, pois criou um novo estilo de ópera espacial. Por outro lado, é a última grande expressão do futurismo no cinema. Todos os filmes subseqüentes sobre o espaço, espetaculares e de grandes orçamentos, tiveram estilo retrô (como em Guerra nas estrelas, de George Lucas) ou distopiano (como em Alien, de Ridley Scott).
CULT – O senhor aponta um sucessor direto de Kubrick?
J.N. – Não conheço ninguém que possa ser descrito como um sucessor de Kubrick, embora ele seja uma espécie de modelo para alguns diretores contemporâneos. Em particular, citaria David Lynch, David Cronenberg e os irmãos Coen, que, como Kubrick, fazem filmes pessoais que combinam as convenções do cinema de arte com entretenimento.
CULT – Kubrick é mais importante como autor criativo ou como um técnico talentoso?
J.N. – Kubrick pode ser descrito com um cineasta completo que combinava os instintos de um showman com conhecimento técnico de alto nível e inteligência literária. Sem dúvida, ele era um grande técnico. Começou como fotógrafo e tinha muito conhecimento sobre cada um dos aspectos técnicos do cinema. Ele fez seus dois primeiros filmes praticamente sozinho, trabalhando não apenas na direção, mas também na fotografia, na edição e na mixagem de som. Alguns de seus filmes, incluindo 2001, Laranja mecânica, Barry Lyndon e O iluminado são extraordinárias realizações técnicas que foram pioneiras em novos tipos de efeitos especiais e técnicas fotográficas, muitos das quais ele mesmo desenvolveu. Mas também foi, sem dúvida, um autor. Muitos de seus filmes são adaptações literárias que parecem diferir entre si, mas estão unidas por uma sensibilidade, um estilo e uma atitude consistente em direção a fenômenos como crime, ciência, guerra e a família nuclear. Alguns traços estilísticos são recorrentes no trabalho de Kubrick, entre eles uma preferência pela luz natural, um amor por lentes de ângulo largo e foco agudo que distorcem o espaço, e um entendimento virtuoso de tomadas com encalço geométrico que viajam lateralmente por cômodos ou avançam sem remorso por corredores ameaçadores. Kubrick também encorajava um estilo de atuação pouco usual que oscila entre técnicas minimalistas, lentas, quase como as de Beckett, e o exagero (compare o comportamento dos astronautas de 2001 com o de George C. Scott em Dr. Fantástico).
E o que é mais importante: Kubrick tendia a evitar certos traços do cinema hollywoodiano popular. Ele costumava evitar o melodrama, o sentimento, e fazia com que fosse difícil para o público se identificar com seus protagonistas, que quase sempre eram criminosos ou homens insanos (as exceções seriam Glória feita de sangue e Spartacus, produzidos por Kirk Douglas com a intenção de melhorar sua imagem como herói de ação e humanista liberal). Finalmente, no sentido mais geral, diria que Kubrick tinha um interesse permanente pelo conflito entre a hiper-racionalidade e a sua sempre presente sombra, o inconsciente freudiano. Ele fez filmes sobre mundos masculinos e seus assuntos favoritos eram guerra e ciência, mas ao mesmo tempo era muito crítico em relação à sexualidade masculina, que repetidamente associou a instintos fascistas.
CULT – Em qual filme Kubrick atingiu seu auge como diretor?
J.N. – Pessoalmente, meus filmes favoritos são os em preto e branco, especialmente A morte passou por perto e Dr. Fantástico, além de Barry Lyndon, que na minha opinião é a sua mais subestimada grande produção.
CULT – Kubrick tem uma obra regular?
J.N. – Kubrick foi um técnico perfeccionista que geralmente controlou todos os aspectos de seu trabalho e que manteve um padrão de inteligência e qualidade fora do comum. Apesar disso, alguns de seus filmes são decepcionantes. Fear and desire, o primeiro, é um experimento juvenil que sofre por ter baixo orçamento e uma certa pretensão artística. Spartacus é melhor que a maioria dos filmes de sandália e toga, mas Kubrick teve pouco controle sobre ele. O filme era mais de Kirk Douglas do que seu.
CULT – Como o senhor analisa a produção cinematográfica nacional?
J.N. – Como a maioria dos amantes de cinema norte-americanos, estou mais familiarizado com o período do Cinema Novo, um movimento extremamente importante que obviamente deve algo aos neo-realistas e à Nouvelle Vague, mas que também tinha seu próprio caráter. O uso que Glauber Rocha fazia de materiais folclóricos específicos para o Brasil, por exemplo, é muito especial. A idéia brasileira do “cinema da fome” me parece altamente relevante atualmente, particularmente na era da tecnologia digital, que eu espero que permita aos indivíduos fazerem filmes mais baratos e combinarem ficção e documentário para fins políticos progressistas. Infelizmente não sei ler português, mas li diversas obras sobre o cinema brasileiro que foram publicadas nos Estados Unidos. Conheço o excelente trabalho de Ismail Xavier e dos acadêmicos americanos Robert Stam e Randal Johnson. O melhor (e único) livro sobre Nelson Pereira dos Santos nos Estados Unidos é o publicado na coleção que eu edito, escrito por Darlene Sadlier, professora da Universidade de Indiana.
CULT – Por que você escolheu Nelson Pereira dos Santos para a série Cineastas Contemporâneos?
J.N. – Nelson Pereira dos Santos é um dos meus favoritos. Acho interessante o jeito com que sua longa carreira passou de um período neo-realista para um período de adaptações literárias que serviam como comentário político, para uma fase meio Godard, e então para um interesse pela cultura popular do Brasil. Sua obra mais recente é uma espécie de filme noir, gênero sobre o qual escrevi um livro e pelo qual tenho particular interesse. Espero que, no futuro, outras figuras brasileiras, como Walter Salles, estejam representadas.