A Mãe
Conto originalmente publicado na Revista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Ano 64- número 2. Abril, maio, junho de 2012. P. 68.
Triste ver a mãe limpando a folha de papel fotográfico, a imagem do menino desbotando ao sol que entra pela janela da pequena casa de dois cômodos, indo dar na porta a dividir os ambientes, a imagem, abertura e fechamento em seu tamanho natural, tons róseos e alaranjados na queimação dos raios, a imagem, que a todos vem assustar, menos à ela, que não estranha aqueles olhos pedintes contornados pela cabeleira lisa, parecendo um cartaz promocional, dos que se usam em portas de loja em tempos de liquidação para chamar clientes, a imagem é um display, diz a vizinha, só que o menino não ri, e ela não se conforma, pois que o pariu, imagem, para que risse sob os olhos escuros, meteoritos apagando-se no ar, as maçãs protuberantes sob as olheiras fundas fazem o rosto e o silêncio, algo que ele não chama de mãe vem e olha bem de perto, a vizinha, sempre ao lado, não tem certeza de que ele não fala com ela, tampouco sabe o que ela sente, não se pode imaginar por que fica ali parada o dia todo e chama a todos para vê-lo, e os outros, por que não fogem da cena bizarra, dizem que é o único caminho pra chegar em casa no final da rua, é a pena que me dá dirá a vizinha que aos poucos deixa saber que toda tarde tenta convencer os outros a entrarem com ela, só Agnes não olha, bebe a água que havia no copo, logo sobe a ladeira com pressa, deixando um desprezo no ar pelo mover das pálpebras, acendendo um cigarro, dizendo de uma vez vou me embora, desenhando um risco de cumplicidade perdida junto com o cheiro da fumaça misturado ao perfume de sabonete de seu corpo forte, com o cheiro de café e vela de dentro da casa, se encontrando na porta com o olfato renitente de quem se acostumou ao odor dos porcos.
É aí que chego eu. Eu que crio os porcos e observo Agnes. Meus olhos já não aguentam ver sempre a mesma coisa. O cenário se refazendo ao sol que tudo desbota. Essa vela infindável acessa sobre o resto de sebo petrificado. Sempre fui sensível. Mais ao que se vê do que aos cheiros que agora me dão asco. O chão do quartinho, pista de patinação no branco da gordura. Tenho o lodo, os meus porcos, não preciso ver a mãe escorregando. As cortinas de voal sedoso pesadas na densidade da fuligem de anos. As paredes pintadas de prata. Tudo é sujo e, no entanto, ordem. A lâmpada do teto num lustre de vidro antigo, azulado, translúcido. O teto esfumaçado escondendo as moscas que no verão vem passar a noite camufladas entre as demais. Uma ou duas sobre os olhos do pequeno estigma. Ele me olha como um condenado que pedisse água. O copo na mesa ao lado está vazio. Foi Agnes. É dentro desse copo, sobre o qual jamais falei, nem ela, é nele que deixamos uma frustração que nos pertence. Ficava ali, boiando sobre a água sempre limpa, trocada a cada dia, a lucidez que permitiria pensar em coisas como falta, medo, absurdo. De vez em quando me levanto pra sair. Ela me pega pela mão com tanta força e me conta novamente sobre os anos passados entre as sombras, conversa de corredores vazios. O dia em que tentou se matar. Diz-me que era finta com o filho. Que eu nunca conte a ninguém o que sei. Que está só no mundo como um animal a ser extinto. Sem saída, volto à cadeira. Penso em Agnes. Segurando-me as mãos com medo de que eu fuja, repete o que já sei: quem não sobrevive à sombra é que nunca foi humano.