A imagem entre a privatização do público e a publicização da intimidade
Foto da série "Obs-cu-ra", concebida pelo fotógrafo Bruno Alencastro desde a janela do 4º andar do apartamento onde vive no bairro Copacabana, no Rio de Janeiro (Foto: Bruno Alencastro)
Desde o princípio da pandemia do novo coronavírus, a mediação entre a casa e o mundo exterior passou a ser feita predominantemente por meio de telas e de recursos digitais. Temos a impressão de que o consumo de imagens de natureza fotográfica, estáticas e, sobretudo, em movimento, nunca foi tão intenso. Nos tornamos também, numa frequência nunca antes experimentada, produtores de fotos, áudios e vídeos. As reuniões e as aulas se adaptaram exclusivamente ao mundo virtual e temos a sensação de que nos tornamos uma horda de youtubers do dia para a noite. Os debates com amigos e familiares se dão quase que exclusivamente pelas redes sociais, por onde também compartilhamos com os próximos e não tão próximos fragmentos cotidianos de nossa vida privada. Nesse contexto, cuja ruptura está mais na intensidade do que na inauguração de um fenômeno, como podemos repensar os limites entre as imagens públicas e as imagens privadas?
A complexa relação entre a imagem de natureza fotográfica – seja ela visual ou audiovisual – e a realidade faz parte de um debate tão extenso quanto infindável. O texto Ontologia da imagem fotográfica (1945), de André Bazin, foi rebatido por sua defesa de uma suposta objetividade da fotografia – que, para o crítico, destina-se a atender o desejo de substituir o mundo exterior pelo seu duplo. Numa linha contrária, Susan Sontag defendeu, na década de 1970, em Sobre a fotografia, que a imagem fotográfica estaria perigosamente relacionada a uma presunção de verdade em vez de apenas uma interpretação do mundo, assim como são as outras artes. A autora recorria ao famoso mito de Platão para definir a natureza da foto como uma sombra do real que alteraria nossas condições de confinamento na caverna. Em tempos de pandemia e isolamento, nunca estivemos tão permeados por essas imagens em forma de sombras. Corremos o risco de, retomando a tese de Sontag, sentirmos que o mundo nos parece mais acessível do que realmente é?
Quase tão extensa quanto o debate sobre a natureza ontológica da imagem fotográfica é a discussão sobre o tenso limite entre o público e o privado em suas distintas formas de apresentação visual. Ao longo da história, as imagens fotográficas, cinematográficas e videográficas cumpriram um importante papel público. Penso em imagens oficiais, em D. Pedro II e seu esforço fotográfico para converter a si mesmo na representação do Império no século 19. Penso em imagens de denúncia, como aquelas que atestaram a existência dos campos de concentração ou que ajudaram a difundir ao mundo a violência de golpes de Estado na América Latina. Penso em imagens testemunho, algumas vezes elevadas a um patamar similar ao evento público que registram e, reprisadas em demasia, chegam a causar anestesia do olhar, como as cenas do atentado contra o World Trade Center em 2001.
Não menos importante é o uso privado da fotografia e do audiovisual; fotos e filmes de família que construíram uma estética do amador. Fragmentos nada ou pouco narrativos, com baixa qualidade técnica, marcados pela necessidade de reter o tempo e enfrentar a precariedade do registro e do armazenamento. Imagens memórias, imagens íntimas, cujo desejo de durabilidade pode ou não estar presente já no momento da captura. E mesmo quando está, poucas dessas imagens poderão ultrapassar a dimensão do consumo para atingir uma dimensão de arquivo. Mas, o que vemos em 2020, este ano palíndromo que confunde fim e começo, é um emaranhado entre a esfera do público e do privado sobre o qual pesquisadores se debruçarão pelos próximos anos.
Não há nada de novo no debate. Os celulares, cada vez com câmeras mais precisas e portáteis, assim como a criação de redes sociais voltadas ao compartilhamento de imagens em detrimento de textos (como Instagram ou Tik Tok), são alguns dos fatores que nos converteram de meros consumidores em também produtores de imagens de natureza fotográfica. Apesar da difusão do acesso aos meios técnicos, é necessário considerar que nossos produtos imagéticos massivos ainda estão mais próximos da estética amadora do que da profissional.
Por outro lado, é necessário lembrar, igualmente, que não é recente a apropriação dos códigos narrativos do amador pelos produtores profissionais de imagens, como exemplificam os realizadores cinematográficos que, desde os anos 1960, aderiram às câmeras portáteis seja para captar a urgência da história (como no cinema militante), seja para criar um estilo e um olhar subjetivos (como no cinema em primeira pessoa). Será 2020, porém, apenas o pico dessa pandemia ou a causa de algum rompimento nos códigos representativos? Poderá este momento singular e temporalmente incerto constituir rupturas estéticas capazes de transformar a forma como pensamos a natureza da imagem fotográfica?
Se é verdade que não há nada de novo, seria prudente refletir sobre de que modo a falta de fronteira entre público e privado, imposta pelo “fique em casa”, poderá alterar nossas formas de representação e nossa leitura visual do mundo. Nas eleições de 2018 vimos como o uso da estética do tosco, uma variante do amador, foi mobilizado pelo então candidato Jair Bolsonaro para aproximá-lo dos eleitores a partir de uma suposta autenticidade atestada pelo aparente improviso.
A falta de fronteira entre a apresentação pública e o ambiente doméstico do futuro presidente, justificada pela reclusão causada pelo atentado, acabou por vincular estreitamente os vídeos de campanha à ideia de realidade. Esse exemplo nos revela que a ontologia da imagem bazaniana permanece socialmente disseminada, e que uma filmagem pode adquirir um selo de autenticidade quando feita sob efeitos do amadorismo e de uma aparente falta de cuidado com o momento do registro.
A potencialidade da live, trunfo de Bolsonaro em 2018, atinge com a pandemia uma proliferação que, talvez, resulte em um enfraquecimento gradual do formato. Trata-se, claro, de uma mera hipótese. Mas já é possível vislumbrar que a repetição exaustiva de lives nos faz começar a duvidar do grau de espontaneidade presente nas filmagens amadoras e domésticas. Percebemos que é possível que o que vemos na tela seja apenas a sombra de algo que está fora de campo, fora da caverna que nos enclausura. No início do isolamento, vários vídeos virais nos divertiam com a falta de traquejo de alguns novos youtubers. Lembro do padre de Itajubá, que esqueceu de desligar o filtro do Instagram enquanto transmitia uma missa para milhares de espectadores. Porém, com o passar dos meses, de tão frequente, a presença de crianças, gatos e desnudos deixou de ser notícia.
O que passamos a ver recentemente é o fenômeno da profissionalização das lives, como a do aniversário de Gilberto Gil que, sem perder um clima intimista, entrará para a história como um dos momentos sublimes da programação cultural da quarentena, entre outras razões, por sua cuidadosa produção. Por outro lado, essa profissionalização passou a colocar os acidentes visuais domésticos sob suspeita. O que pensar do corpo nu da esposa de Fábio Porchat, que em sua passagem pela gravação amadora do marido, esteve sob o enquadramento preciso para que pudéssemos ver tudo e nada, ajudando a viralizar uma entrevista não pelo seu conteúdo, mas sim pela curiosidade a respeito da intimidade doméstica alheia?
Paradoxalmente, é possível que a onipresença do amador nos leve a desconfiar da natureza ontológica da imagem fotográfica. Uma vez que nos tornamos todos massivamente produtores de imagens, talvez seja possível perceber o grau de construção que está presente em todas elas. Enquadramos nossas câmeras do celular e do computador, buscamos um cenário apropriado, testamos os fones e microfones em busca de sermos escutados. Nos isolamos nos cantos mais improváveis de nossas casas em busca de silêncio e concentração, e optamos por deixar a tela negra quando não nos sentimos representados à altura por nossos duplos fotográficos. Seria utópico e falso estender essa reflexão para todos, pois as desigualdades sociais fazem com que apenas uma parte de nós esteja, neste momento, recorrendo ao mundo digital para manter-se seguros. Porém, é possível alimentar a esperança de que algo aprenderemos, enquanto sociedade, sobre o nosso próprio olhar.
A observação e a reflexão sobre o que vemos nas imagens são mecanismos que devem ser aprendidos. Não é automático nos determos sobre elas e procurar, dali, extrair uma interpretação sobre o mundo e a realidade. A quarentena pode nos ajudar a estabelecer os sábios limites entre o ver e o crer. Há um risco, sem dúvida, de que esse questionamento atinja outro patamar perigoso, o de não crer no que se vê. O relativismo exacerbado desconsidera que há algo do mundo que respinga numa foto, num filme ou num vídeo. O relativismo, sabemos, é necessário desde que não se transforme em negacionismo. As imagens públicas e privadas muito nos dizem, e são elas que podem diminuir a escuridão que invade nossas cavernas. Quem sabe não é a hora de exercitarmos leituras visuais que considerem os limites e as potencialidades das imagens de natureza fotográfica.
Carolina Amaral de Aguiar é professora do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Autora de O cinema latino-americano de Chris Marker (Alameda, 2015) e organizadora de Cinema e História: circularidades, arquivos e experiência estética (Sulina, 2017) e Cinema: estética, política e dimensões da memória (Sulina, 2019).