A Hora da estrela

A Hora da estrela
Helena Ignez em "A família do barulho", de Júlio Bressane, 1970 (Foto: Divulgação)

Maria Clara de Campos Vergueiro
Fotos Marcelo Naddeo

Se a vida fosse dar uma segunda chance a Helena Ignez, ela, seguramente, não faria muita coisa diferente do que fez. Seria mais provável que fosse ela a dar uma segunda oportunidade à vida, reescrevendo o roteiro do mundo, salpicando os cenários de cores improváveis, cenas pouco convencionais e personagens maravilhosamente loucos. A atriz que foi musa do cinema novo, do cinema marginal e da trinca de diretores à frente desses movimentos (Glauber Rocha, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla)aproveita a nova fase da vida para orquestrar sua própria concepção de arte, dando recados muito claros aos ouvidos mais apurados.

A mudança da trama aconteceu depois da morte do marido, o diretor Rogério Sganzerla, há sete anos, vítima de um tumor cerebral. Dono de um baú de roteiros inacabados ou inéditos, Sganzerla estava retomando a continuação que havia escrito para O Bandido da Luz Vermelha, clássico de 1968, meses antes de morrer. Luz nas Trevas – a Volta do Bandido da Luz Vermelha (2010) foi o único caminho que a viúva apaixonada encontrou para enfrentar a perda do companheiro de 35 anos. Assumiu o texto, a produção e parte da direção, que dividiu com o diretor Ícaro Martins, e colocou no mundo o filho do bandido de 1968, com Djin Sganzerla (filha de Helena e Rogério), André Guerreiro Lopes e o cantor Ney Matogrosso no elenco. Foi como reafirmar o encontro com o cineasta, que aconteceu pela primeira vez durante as filmagens do primeiro Bandido, quando Helena Ignez interpretou a prostituta Janete Jane. “Ele é o meu eterno namorado”, declara.

Se a morte pode ser também um recomeço, foi a deixa que a atriz encontrou para dar início à nova condição de globetrotter, como gosta de se classificar hoje, viajando pelo mundo como estandarte da produção revolucionária do marido e das próprias criações. Em 2009, levou a Gramado e a festivais independentes fora do país o filme Canção de Baal, adaptação do texto de Bertolt Brecht, rodado numa fazenda de café no interior de São Paulo, no meio da Mata Atlântica. Dirigido por ela, levantou aplausos com a mistura de elementos do teatro à narrativa do cinema e levou um prêmio internacional de contribuição à linguagem na Itália. “Eu gostei da manchete de um jornal de Trieste, que nessa ocasião do prêmio dizia que a vanguarda brasileira estava nas mãos de uma ragazzina settant anni, ou uma garota de 70 anos. A gente continua na vanguarda, a vanguarda não tem idade, e o cinema que a gente faz é instável, independente.”

Os 33 filmes que somam a trajetória de Helena Ignez, como atriz ou diretora, não expressam o desejo de uma artista inquieta e comprometida com sua obra. “Os projetos eram muito mais numerosos e os livros de Rogério são cheios dessa informação. Isso é reflexo de uma política cultural e de distribuição mal organizada, além de uma espécie de punição por ser original, por acreditar na sua própria arte e trabalho. Se não estiver ‘adequado’, não tem incentivo. É assim até hoje”, protesta.

Santa e bandida

Para entender Helena Ignez é preciso lembrar que a moça de família católica e tradicional baiana passou a adolescência circulando nas festas mais “grã-finas” de Salvador, acompanhada de namoradinhos que depois se tornaram governadores, tomando muito uísque para representar o papel de glamour girl, enfeitando a sociedade, curtindo pequenas transgressões dentro da fantasia de “menina mais desejada da Bahia”, segundo ela mesma conta. Meio anjo meio Eva, ela desembarcou no curso de artes cênicas da Universidade Federal e encontrou pela frente um menino genial, de ideias muito acima da média e calças muito abaixo da cintura. “Finalmente eu tinha achado alguém na Bahia que eu amasse muito”, conta, relembrando o primeiro marido, Glauber Rocha. “Era uma admiração enorme, por uma pessoa da minha idade, aquela criatura louca que era Glauber, muito jovem e já com tanta coisa feita, culto, um contato que me enriquecia muito. Eu me apaixonei por isso, pelo frescor, no meio daquela sociedade que era tão sufocante e hipócrita.”

Unidos pelo encontro das diferenças, Glauber e Helena Ignez casaram-se e em cinco anos fizeram juntos o primeiro filme dele (O Pátio, de 1959, em que ela participa como atriz) e a primeira filha dela, Paloma. “Se tivéssemos tido um relacionamento aberto, acho que teríamos ficado mais tempo juntos”, profetiza. Glauber era machista (“e qual homem não é?”, me pergunta a atriz) e logo quis que Helena mudasse a cor dos cabelos, de loiro para castanho, para chamar menos atenção. Imediatamente virou “a mulher do Glauber Rocha”. “Eu era a moça bonita e ele era o gênio. Evidentemente as pessoas queriam olhar para mim e ouvir a ele, que passou a ser o porta-voz da minha personalidade. Eu detestava passar por burra e, embora eu sempre tenha sido uma artista muito livre e corajosa, pessoalmente tinha dificuldade de me expressar. Estar do lado de um cara como Glauber era ainda mais intimidador para mim”, lembra. O casamento acabou com Helena no papel de vilã, depois de vir à tona um romance paralelo com um colega de faculdade. A guarda da filha, Paloma, ficou com Glauber, que a criou junto com a mãe, dona Lucia. A separação ganhou tons dramáticos e Helena sentiu na pele o peso de ser uma mulher inexata. “Acho que o único que percebeu que não era muito fácil a minha situação naquele casamento foi Joaquim Pedro de Andrade [que a dirigiu em O Padre e a Moça, de 1965]. Se hoje já é delicado viver uma situação como essa, imagine naquela época.” Helena e a filha Paloma nunca chegaram a viver juntas, embora tenham conseguido construir, nas palavras da atriz, “uma relação de profundo amor”.

Dona de características aparentemente inconciliáveis numa mulher, Helena caminhava “entre a santidade e a sexualidade”, como o mesmo amigo Joaquim Pedro definiu uma vez, tentando aplacar suas incoerências a cada novo amor. Em 1985, já casada com Sganzerla, com as duas filhas do casal, Sinai e Djin, entrando na adolescência, Helena recolheu-se no lado santo de sua alma e passou um longo período de introspecção.

“Eu vinha de uma formação cristã, com uma origem muito devocional a Maria e Jesus. Depois tive uma fase política e esse lado ficou esvaziado. Tinha várias angústias existenciais nesse período, como todo mundo, interrogações sobre eternidade, tempo, e vi que várias culturas religiosas clássicas se debruçam sobre esses temas. Fui estudá-las e acabei conhecendo melhor o hinduísmo e o taoísmo, mas entendo bastante também a mente budista, então acho que tenho muitas religiões.”

Uma só
Glamour girl, musa marginal e globetrotter são facetas que a atriz assumiu com a mesma dedicação e o mesmo trabalho com os quais encara seus personagens. Mas a maturidade pôde libertá-la dos limites de cada um desses rótulos e fazer dela uma representante da arte vanguardista, uma espécie de elo perdido daqueles revolucionários de 1970, mas com a capacidade paradoxal feminina de transformação e adequação a este mundo, longe de ser ideal, assim como ela. “Quando eu vi o roteiro de Luz nas Trevas, pouco antes de Rogério morrer, vi que tinha duas coisas com a mesma força: uma perda inimaginável e também um ganho na nossa própria vida, minha e de minhas filhas. Era um presente que ele estava me dando. Não achei que fosse ter forças para lidar com a perda dele, mas hoje parece que eu trazia em mim essa despedida, não com ele indo, porque eu sempre achei que era eu que ia morrer, mas com ele promovendo, outra vez, uma transformação enorme na minha vida.”

Nas viagens pelo mundo, da Índia à Nova Zelândia, identifica a miséria, os avanços tecnológicos, a conscientização ecológica, o desperdício, a perda da humanização nas relações. Como pode então o teatro, uma arte humana por excelência, baseada no contato e na troca, sobreviver num mundo desumanizado? Helena responde com outro projeto: pretende montar Madame Blavatsky, de Plínio Marcos, com algumas modificações. “O teatro é uma arte arcaica, terapêutica, e está além desses limites. Estou louca para dirigir esta peça, Madame Blavatsky, que Plínio Marcos me disse, há dez anos, que eu deveria fazer. Mas quero tirar o que é episódico desta personagem e trazer a essência dela.” Coincidentemente, a personagem é uma mulher à frente de seu tempo, relutante em se casar, em pleno século 19, praticante de kama sutra e estudiosa de religiões.

Nos últimos anos, Helena esteve nos palcos para atuar em Os Sete Afluentes do Rio Ota, quando foi dirigida por José Celso Martinez Corrêa, e nas produções Cabaré Rimbaud – uma Temporada no Inferno (1997) e Savanah Bay, de Marguerite Duras, quando Rogério Sganzerla dirigiu a mulher e a filha Djin, em 2000. “Savanah Bay era muito poética e bonita, e Cabaré foi um escândalo. Em Barcelona, onde fomos convidados para apresentar a peça, tivemos de interromper a sessão porque o beijo homossexual e os números de pirotecnia chocaram as velhinhas franquistas que foram assistir ao espetáculo, num teatro bem tradicional da cidade. Depois apresentamos nas Ramblas e aí foi mais bem recebido [risos].”

Aos 71 anos não se vê nela, com facilidade, vestígios de glamour girl ou “musa marginal”. O estilo é mais hare krishna que bonequinha de luxo, mais globetrotter que “mulher de Glauber” ou “de Sganzerla”. Os sinais das personagens do passado brotam no jeito manso de falar, no corpo miúdo, na escolha de palavras como “orgástico”, “extraordinário”, “fabuloso”. Helena Ignez aparentemente chegou aonde queria e descobriu conforto em ser quem é. O ídolo permanecerá o mesmo, Rogério, com quem viveu a experiência mais profunda de sua vida. Da musa e da bandida ela abriu mão. Prefere ser boa. “Eu já estou satisfeita em ser boa. Ser bom já é ótimo.”

 

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