A história de uma alma

A história de uma alma

O uruguaio Juan Carlos Onetti, cuja novela O poço chega ao Brasil, recusou os arroubos épicos de seus contemporâneos e tornou-se um marco da narrativa moderna

 Julián Fuks

Das razões do mercado convém guardar distância: o espírito mais acerbo dirá que a generosidade na acolhida de uma obra é inversamente proporcional à generosidade da obra em si, sua riqueza, sua qualidade intrínseca; mas se alguém quiser contradizê-lo, por otimista ou ingênuo, terá à sua disposição inúmeros exemplos. Na história da literatura, após séculos e séculos de adequações e rompimentos, a abundância de boas exceções tem provocado o efeito colateral de obscurecer a regra. Azar dos críticos: terão de socavar esse morro de confusões e aparências, esse monte feito de clássicos eternos e últimos best-sellers, se quiserem reconstituir a planície das coisas certas.

Hipóteses interessantes foram aventadas, mas ainda não se terminou de entender por que, entre os anos 1950 e 1970, ocorreu o curioso fenômeno editorial que ficou conhecido como boom da literatura latino-americana. De um dia para o outro, bons autores que antes facilmente seriam relegados ao silêncio ganharam, em vez do esquecimento habitual, o mundo: García Márquez, Cortázar, Vargas Llosa, Rulfo, Fuentes, lidos com a atenção que só recebiam europeus e estadunidenses. Algo a ser celebrado, sem dúvida, por brios continentalistas, mas que pouco revela sobre a realidade das forças que o governam. Algumas perguntas sem resposta: por que foi nesse específico momento da história que o mundo dito civilizado abriu os olhos para estes grotões das letras? Teriam as cidades antigas que esses velhos homens habitavam, e as páginas caudalosas com que tratavam de glosá-las, se tornado subitamente claustrofóbicas?

Se o boom era exceção, talvez a exceção da exceção ajude a explicar a regra, ou o caso.

Superfícies neutras

Hipóteses interessantes foram aventadas, mas ainda não se terminou de entender por que, entre os anos 1940 e 1980, o escritor uruguaio Juan Carlos Onetti foi deixado de fora do boom da literatura latino-americana. Guardava semelhanças em relação aos demais autores contemplados, tinha em suas tramas um toque do exotismo que fazia cintilar as pupilas dos leitores distantes, até inventara uma cidadezinha pitoresca onde se passavam quase todas as suas histórias – semelhante, digamos, a Macondo ou Comala. Sua Santa Maria poderia ser cenário perfeito para abrigar uns tantos caracteres peculiares e confirmar a exuberância que já se estabelecera nas imaginações alheias.

Mas não, Onetti não participou do boom e seus livros se habituaram ao âmbito restrito dos sebos e das pequenas livrarias, circulando tão-somente entre as mãos de uns poucos aficionados. Seu editor até tentou alavancar os lucros quando, no lançamento do romance mais ambicioso, A vida breve, alertava o leitor já na orelha do livro: “Não tema que se trate de um experimento literário, como se costuma classificar com desprezo todo abandono dos moldes notórios. É, pura e simplesmente, um romance como todos os de lei: um relato fluido, coerente e ameno, que o leitor há de seguir com a mesma intensa curiosidade, da primeira à última página”. Para a sorte de Onetti, o alerta não emplacou, e quem leu soube que aquele não era um romance como qualquer outro.

Para compreender a diferença talvez baste ler O poço, a primeira novela publicada por Onetti, em 1939, e que agora chega traduzida ao português. Um texto curto, de 50 páginas, escritas por um autor jovem que mal dera início a seus empenhos criativos, mas que já trazia nos propósitos o germe de todo seu projeto estético. Um texto com tintas autobiográficas, as memórias de um tal Eladio Linacero que se põe a escrever sem muita razão numa noite qualquer, e que aporta algumas das formulações-chave para entender, se não ainda a distinção em relação aos demais autores da época, ao menos algo de seus livros vindouros: “Dizem que há diversas maneiras de mentir; mas a mais repugnante de todas é falar a verdade, a verdade inteira, ocultando a alma dos fatos. Porque os fatos são sempre vazios, são recipientes que vão tomar a forma do sentimento que os preencha”. “Gostaria de escrever a história de uma alma, dela sozinha, sem os acontecimentos em que teve que se envolver.”

É como se captasse o momento exato em que se debruça sobre a folha em branco e começa a produzir sua extensa obra, mas num ato que não é o da rendição, não é o do apelo a modelos consabidos, não é o da entrega ao estatuto superior da história. Narrar, para Onetti, é sempre se aproximar, tateando, de acontecimentos, de palavras ou de sonhos, para desvelar o que subjaz a suas superfícies neutras. Personagens, fatos e cenários são meros invólucros, e referi-los é tarefa talhada de incertezas.

Derrota literária

Vinte anos mais tarde, na novela que divide com O poço as páginas da edição brasileira, tudo isso já teria ganhado corpo e consistência. Santa Maria já fora fundada, plasmada na mente de um dos personagens de Onetti, “um universo saindo do fundo preto de uma cartola”. Em Para uma tumba sem nome, a cidade se mostra habitada por vozes, seres que repartem ou disputam as palavras tentando constituir, em suas múltiplas versões, a história de uma morte. Mas quem morre ou como morre é o que menos importa: é indiferente se o episódio é de Rita ou de um bode, pois Rita e o bode são apenas papéis representados por corpos quaisquer, são destinos que se cumprem. O que interessa são as “coisas que haviam escolhido Rita para se mostrarem: o absurdo, a miséria, a obstinação voragine”.

O que custou a Onetti a massa de leitores, talvez valha arriscar, foi o alcance de sua modernidade. Não lhe bastava denunciar o atraso de uma terra ignota, a pobreza em que se subsumiam nossas cidades, e tampouco o cativavam suas compensações fantásticas ou mágicas. Não lhe interessava fazer deste novo mundo a morada última da aventura, palco para os arroubos épicos de que os europeus pareciam sentir tanta falta. O mínimo a que podia almejar era a revelação da desgraça humana em sua totalidade, em cada uma de suas múltiplas derrotas. Entre elas, a derrota literária, a derrota do ato de contar histórias. E não se contentava em acusar o golpe, queria também apontar culpados: “culpados todos os habitantes do mundo, por terem nascido e serem contemporâneos daquela monstruosidade, daquela tristeza”.

O CENTENÁRIO DE JUAN CARLOS ONETTI

O escritor uruguaio nasceu em 1909 e morreu em 1994, tendo vivido em Montevidéu, Buenos Aires e Madri. Em 1939 publicou, em edição própria, O poço, uma novela que já anunciava os rígidos preceitos que marcariam sua produção posterior, em romances como A vida breve, Junta-cadáveres e O estaleiro. A maior parte de seus enredos se passa em Santa Maria, um povoado fictício ideado por um de seus personagens. Escritor de escritores, recebeu em 1980 o Prêmio Cervantes de literatura.

O poço/Para uma tumba sem nome
Juan Carlos Onetti
Trad.: Luis Reyes Gil
Editora Planeta
168 págs. – R$ 38

Deixe o seu comentário

Novembro

TV Cult