A “guerra” à corrupção

A “guerra” à corrupção
(Foto: Claudio Schwarz /Unsplash)

 

A crise da democracia representativa se faz sentir em todo o mundo, em especial diante da aproximação antidemocrática (e tipicamente) neoliberal entre o poder político e o poder econômico. Contudo, em países como o Brasil e a Itália, que podem ser vistos como uma espécie de laboratório de novas técnicas de controle dos indesejáveis, as agências do Sistema de Justiça exerceram um papel determinante para transformar a crise da representação em uma crise dos próprios valores, princípios e regras democráticos.

Muitos atores do Sistema Judicial passaram a atuar no sentido de criminalizar a política, com um discurso de justificação recheado de “boas intenções” e “moralismos”, ao mesmo tempo em que prometiam resolver os problemas gerados pelas distorções da democracia representativa. Um engano com consequências desastrosas à concepção de vida democrática.

Surgem, então, as condições para o fenômeno das perseguições políticas através do uso pervertido do direito. E o significante “corrupção” aparece, então, com um elemento mistificador que faz com que tudo, inclusive as ilegalidades, pareça justificado aos olhos da população que desconhece os objetivos políticos e ideológicos por detrás dos processos de persecução penal.

Corrupção, por definição, é a violação dos padrões normativos de um determinado sistema. Há muitos casos de corrupção para além da corrupção econômica. Não raro, com a “boa intenção” de “combater a corrupção” do sistema político, atores jurídicos (juízes, promotores etc.) acabaram por corromper o Sistema de Justiça e mesmo as bases democráticas. A corrupção tornou-se uma espécie de significante vazio que instaura um “vale tudo” nas instituições e na sociedade.

Esses atores jurídicos que assumiram o protagonismo do “combate à corrupção”, apesar de se apresentarem como “salvadores da pátria”, ignoram (ou fingem ignorar) que os mecanismos tradicionais de controle e apuração da corrupção não dão mais conta de identificar e reagir aos episódios de corrupção. Na realidade, a corrupção nas últimas décadas passou a ter um novo funcionamento e uma nova lógica em consequência da aproximação entre o poder político e o poder econômico que leva à “transformação” do interesse privado dos detentores do poder econômico em interesse público.

Com a mudança da relação entre a esfera pública e a privada, que se dá no momento em que o poder político volta a se identificar com o poder econômico (pense-se em figuras como Donald Trump, Silvio Berlusconi ou João Doria), ocorre uma mutação no paradigma da corrupção real. Isso porque desaparece o conflito de interesses entre os projetos do poder político e os interesses privados. Desaparece a mediação que existia entre corruptor, corrompido e objeto da corrupção: o corruptor realiza diretamente o ato corrompido. Não há mais uma relação oculta voltada a produzir efeitos econômicos a partir do poder político; os interesses privados passam a ser tratados, sem qualquer disfarce, como “interesses públicos”.

Em apertada síntese, atualmente, os verdadeiros corruptos estão protegidos das ações dos atores jurídicos e o discurso de “combate à corrupção” voltou-se para episódios banais ou, o que é pior, para a manipulação política da população.

Diante da nova configuração e dinâmica da corrupção no Estado, o discurso de “combate à corrupção” e as ações a ele correlatas passam a ser apenas tentativas de moralização do campo do imaginário relacionado à atividade estatal, sem a preocupação com a corrupção produzida pelo mercado, e ineficaz em relação à corrupção real. Em outras palavras, ao lado da ineficácia de se pretender combater a verdadeira corrupção através do Sistema de Justiça Criminal, existe a funcionalidade real da utilização do significante “corrupção” no intuito de autorizar o afastamento de direitos e garantias previstos na legislação brasileira.

Se a sensação de corrupção aumenta no Estado diante da colonização da democracia representativa pela economia, cresce também o apelo popular por medidas que eliminem a corrupção. É esse apelo popular que acaba manipulado para permitir o afastamento dos limites éticos e jurídicos ao exercício do poder penal.

Ao longo da história, em diversos países, o discurso de “combate à corrupção” sempre foi utilizado contra os inimigos políticos dos detentores do poder econômico. Nas ocasiões em que não houve uma plena identificação entre poder político e poder econômico, as elites econômicas, amparadas por seus meios de comunicação de massa, recorreram ao significante “corrupção” a fim de enfraquecer adversários, pautar governos ou criar condições para golpes de Estado, brandos/disfarçados ou severos/explícitos. O falso (e seletivo) combate à corrupção, como percebeu o cientista social Jessé Souza, surge no Brasil “como o ‘testa de ferro universal’ de todos os interesses inconfessáveis que não podem se assumir enquanto tais”.

Atualmente, esse processo de utilização política do significante “corrupção”, sempre atribuída ao outro, torna-se ainda mais fácil. Isso se dá através da transformação do “combate à corrupção” em mercadoria, um “bem” que não apresenta contornos rígidos, é maleável e seletiva, mas que acaba vendida como de interesse de todos e utilizável contra todos os indesejáveis. A mercadoria “combate à corrupção” tem consumidores cativos, um público formatado para aplaudir qualquer ato que se afirma “contra a corrupção”, mesmo que ineficaz ou draconiano.

O “combate à corrupção” vendido à população, sempre ao gosto dos proprietários dos meios de comunicação de massa, não atinge as elites econômicas e nem seus privilégios, mas permite ações, nem sempre legítimas, contra os indesejáveis, inclusive os adversários políticos dos detentores do poder econômico e das agências do Sistema de Justiça.

Esse “combate” conta com os ingredientes que permitem transformar processos judiciais em espetáculos, políticos amados em odiados, inquisidores em heróis, uma vez que essa mercadoria possibilita todo tipo de distorção e manipulação afetiva do público, em especial daqueles que abandonaram qualquer reflexão e  se eximem da faculdade de julgar em razão das informações, em regra parciais, por vezes deliberadamente equivocadas, que recebem dos conglomerados empresariais que produzem “jornalismo”.

RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano


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