A forma da angústia
Edição do mêsLima Barreto: não sem arestas, escritor enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira em si mesmo (Foto: Reprodução)
No dia em que completava sete anos de idade, Lima Barreto foi levado por seu pai aos festejos que tomaram o Rio de Janeiro em decorrência da abolição da escravatura.
No ano seguinte, seria proclamada a República.
Em 1º de novembro de 1922, o escritor falecia, aos quarenta e um anos, de colapso cardíaco, causado pelo uso abusivo de álcool durante boa parte da vida. Meses antes, ocorrera a Semana de Arte Moderna, marco literário e cultural do país.
Entre a abolição e a deflagração do Modernismo de 22, um dos períodos históricos mais turbulentos do Brasil se desenrolou e a vida de Lima Barreto não só lhe foi contemporânea como ainda, de maneira singular, o autor deu-lhe acolhida e reflexão crítica na obra literária, sátiras, crônicas, diários, correspondências e artigos de jornal.
Se a questão da formalização da experiência acompanha sempre o artista, no caso de Lima Barreto tanto essa formalização, angustiada, dificultosa, quanto a experiência em si mesma, que se singulariza na individualidade mas também no lugar que ela ocupa diante da história, se tornam um elemento crucial para seus leitores e para a crítica literária.
Para conhecer um pouco mais esse escritor, praticamente repelido a seu tempo, reconhecido com reservas até as décadas de 1940 e 1950 e revalorizado, quando não incensado, a partir de 1970, é preciso acompanhar-lhe esse duplo percurso: diante da história, diante da literatura.
Em 1903, o jovem mulato pobre de 22 anos, ex-universitário ingressando no funcionalismo público no Rio de Janeiro, registrava no diário o projeto de escrever a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade. Também escrevia um “decálogo”, com apenas dois mandamentos: “1 – Não ser mais aluno da Escola Politécnica. 2 – Não beber excesso de cousa alguma.”
Dois anos depois, o diário traz as preocupações com as dívidas do pai e uma espécie de acordo com a divina providência caso as saldasse: um amor, um belo livro e uma viagem por Europa e Ásia.
Lima Barreto pouco realizou dessas expectativas. Mal entrado no período dos grandes projetos da vida adulta, como que antevê as marcas do próprio destino. O decálogo reduzido, na verdade, a dois mandamentos, se cumpre apenas quanto ao primeiro, pois a Escola Politécnica já então estava varrida para o cesto das tentativas malogradas. A bebida em excesso e a constante preocupação com a sobrevivência econômica, o cuidado com um pai de lucidez jamais recuperada deram à figura do escritor os contornos do retrato com que a posteridade ainda hoje o contempla. De amores, tudo leva a crer que a vida lhe foi avara, bem como de viagens. Restou-lhe a literatura, aquela com a qual afirmaria mais tarde haver-se casado.
Alcoolismo e pobreza acabaram por conjugar-se na visão crítica de sua obra literária, havendo mesmo quem dissesse, como o crítico baiano Eugênio Gomes, em resposta ao matrimônio anunciado com a literatura, que se descuidava dele, passando noites seguidas fora de casa.
Jamais escreveu a anunciada obra de historiografia sobre a escravidão negra e suas influências na nacionalidade. Embora não tenha recebido o epíteto de belo qualquer de seus livros, fez na literatura uma obra que com extrema percuciência outra não é que, em grande parte, a tentativa de contar, sob diversos aspectos, a influência da escravidão negra na sociabilidade brasileira e suas repercussões na estrutura de classes.
Passo a passo, procurou um universo de expressão em que os impasses e conflitos que percebia e vivenciava pudessem encontrar lugar. A história, geral e documental, da escravidão negra e suas repercussões na nacionalidade cederam vez ao projeto de escrita de um romance, um “Germinal negro”, como afirma no diário. O campo histórico foi, portanto, abrindo-se para o literário, de início mais marcado pelo caráter documental e generalizante, pautado pela observação, tendo na obra de Émile Zola seu modelo.
Aos poucos, porém, o intuito generalizante transforma-se na opção pela narrativa ficcional de uma experiência singular. Singular, mas exemplar. É então que seus diários passam a trazer anotações referentes à história de Clara dos Anjos, obra insistentemente reescrita pelo autor: uma primeira versão como romance, depois um conto, e novamente romance, publicado postumamente – aquele que a maioria dos leitores conhece.
Este percurso de escrita de Clara dos Anjos permeia a vida do escritor de sua juventude até a morte precoce. A essa trajetória entremeiam-se as demais obras que produziu. Nem mesmo estas deixaram de noticiar o esforço contínuo de elaboração de Clara dos Anjos. O primeiro romance, publicado em 1909, Recordações do escrivão Isaías Caminha, traz uma passagem em que, em meio a tentativas de tornar-se escritor, Isaías Caminha menciona, a certa altura, já haver escrito cinco capítulos de um romance, coincidentemente intitulado “Clara”.
Imagine-se o que é para um mulato, que assistiu à abolição da escravatura ainda menino, lidar, ao mesmo tempo, com o preconceito racial cotidiano que se nem sempre lhe barrava o caminho, sem dúvida o tornava com frequência mais árduo, e com o mundo das ideias, a serviço das quais a onisciente ciência, mitificada a partir da segunda metade do século 19, se colocava para afirmar superioridades raciais, determinismos biológicos, condenação ao fracasso e à mediocridade.
O sujeito dessa experiência,
dotado de sensibilidade e talento,
faz da palavra, no jornal e na
literatura, uma arma de
desmascaramento.
Até a década de 1970, a fortuna crítica de Lima Barreto, de modo geral, reforça a ideia de que o autor, um ressentido, teria sido dominado por um profundo “complexo de cor”, como se dizia então, levando-o a destilar amarguras pessoais nas obras que, com isso, ainda que promissoras, ficavam sempre um pouco aquém da excelência. É comum, sobretudo nos textos críticos das décadas de 1940 e 1950, Lima Barreto ser classificado como um “quase” grande escritor, que maior seria sem tais complexos, ressentimentos e amarguras, e sem o álcool a turvar-lhe a visão.
Na década de 1970, será justamente esse suposto vazamento da vida do autor em suas obras, o teor ácido e crítico que essa voz excluída lhes confere, o que será valorizado.
Esse imbricamento entre a instância pessoal e a histórica se faz, de fato, mas isso não invalida sua obra, ao contrário. É desse foco que emana a grande qualidade da ficção de Lima Barreto: transformar uma experiência que é ao mesmo tempo singular e histórica em literatura, o que fez em contos, crônicas e seis romances.
As Recordações do escrivão Isaías Caminha, o primeiro deles, trazem inovações literárias e essa marca do ponto de vista, uma posta em função da outra.
O livro teve alguns de seus primeiros capítulos publicados, em 1907, na revista Floreal, dirigida por Lima Barreto e que teve apenas três números. O folhetim foi saudado pelo crítico José Veríssimo.
Dois anos depois, saía em livro, numa edição lisboeta, acompanhado de dois prefácios. O primeiro, de autoria do “editor e amigo do autor” Lima Barreto, reportava-se à crítica de Veríssimo para desfazer um engano: as recordações seriam verdadeiras, Isaías Caminha não era apenas um personagem-narrador, mas um autor com existência empírica de quem Lima Barreto se tornara editor. O segundo prefácio era de punho do próprio Isaías Caminha, que explicava o motivo de escrever suas recordações. Esse segundo prefácio é completado por uma breve nota, assinada pelo “editor” Lima Barreto, na qual ele não apenas toma posição frente às palavras de Isaías, como dá ao leitor notícias sobre a vida deste decorridos dez anos da escrita do livro. O fim, portanto, da trajetória de Isaías não está na última página do romance, como termo de suas memórias, mas logo no início, na voz do editor.
Fará blague anos depois Mário de Andrade, ao chamar de “interessantíssimo” o prefácio de seu Paulicéia desvairada, tendo em vista o hábito nacional de ignorar prefácios. E não foram poucos os leitores desavisados que ignoraram o duplo prefácio das Recordações, começando a ler o livro quando este, na verdade, já iniciara páginas antes.
À época, o romance foi relegado ao ostracismo crítico, lido como um roman à clef, no qual o jornal ficcional O Globo, seus jornalistas e os que os cercavam, nada mais seriam do que o travestimento do poderoso jornal Correio da Manhã. Poder inquestionável, para depor e fazer ministros, o que leva, na ficção, Isaías a dar-se conta de ter travado conhecimento com o quarto poder, fora da Constituição.
Orgulhos feridos e aversão à representação em registro satírico de um importante elemento da realidade lançaram ao rosto do escritor o epíteto de mulato ressentido, que não mais se descolaria e que projetou uma vasta sombra sobre grandes qualidades do romance, suas inovações e sua crucial perspectiva.
O jogo autoral na obra de estreia, que não exime Lima Barreto de participação e responsabilidade no escrito, como se poderia esperar de quem apenas ataca num roman à clef, e a insistência na existência empírica de Isaías e suas motivações para expor-se publicamente num livro de memórias cumprem várias funções.
Isaías conta sua vida em resposta a um artigo científico publicado em uma revista nacional. A tese defendida no artigo atestava a inferioridade intelectual do negro devido ao fato de quando jovens muitos parecerem promissores, mas tais promessas não se cumprirem na maturidade. Isaías aceita a conclusão, mas não seu pressuposto. Não estaria nos indivíduos da raça negra a razão do fracasso ou da mediocridade na maturidade, mas sim na sociedade na qual estavam eles inseridos.
Esta colocação é uma espécie de turning point literário, social e político. Para compreendê-lo, observemos as estantes, a formação do escritor.
Lima Barreto declarava-se
admirador da obra do escritor
naturalista Aluísio Azevedo,
rechaçando comparações que
aqui e ali despontavam com a
obra de Machado de Assis.
Entretanto, a compor-lhe as estantes da biblioteca pessoal, não se encontra um único volume de Azevedo; porém, em contrapartida, há vários de Machado de Assis ou acerca dele.
As estantes trazem ainda Les Pléiades, do Conde de Gobineau, escritor, embaixador francês no Brasil ao tempo de Dom Pedro II (1869-1870) e racista convicto, autor do muito lido Tratado da desigualdade das raças (1853), que preconizava a um país de mestiços, como o Brasil, a extinção em cerca de 200 anos, por enfraquecimento progressivo da raça branca com a miscigenação. Há também Mi viaje alrededor del mundo e Origine des espèces, de Darwin, além de títulos de autores darwnistas, como Haeckel, Spencer, Ribot, que levam as ideias de Darwin para os campos da psicologia e da moral. Marcam presença ainda dois autores: o naturalista e anarquista Kropótkin, com Entr’aide (Mutual aid – A factor of evolution, no original; Ajuda mútua, 1902) e o psiquiatra Henry Maudsley, com Le crime et la folie (O crime e a loucura, 1874).
O último lhe foi oferecido pelo médico que atendeu ao seu pai nas primeiras crises de loucura. Nada mais é que uma aplicação do determinismo biológico à psiquiatria, fazendo coro a Lombroso e outros tantos do mesmo período na tentativa de provar ser o crime uma degeneração da espécie, próprio aos seus indivíduos mais inferiores. O cientista francês Broca fazia medições do cérebro para atestar a inferioridade de negros e mulheres.
O próprio Lima Barreto, em uma de suas internações no hospício devidas sempre à dipsomania (alcoolismo intermitente), teve o diâmetro craniano medido. Concluiu-se que era braquicéfalo, com o que se divertiu muito o escritor, dizendo em crônicas que agora os que o ofendiam por discordar de suas ideias dispunham de mais um argumento que, no entanto, não o calaria.
O livro de Maudsley assombrou-o a vida inteira e vem dele o segundo mandamento de seu decálogo, pois entre outros elementos, Maudsley trata da relação entre alcoolismo, loucura, degeneração hereditária e crime.
Eram então correntes duas das mais terríveis teorias racistas e sexistas, baseadas em preconceitos legitimados por uma suposta metodologia científica: a neotenia e a recapitulação. São praticamente o oposto uma da outra, mas atendem ao mesmo fim, isto é, estabelecer uma hierarquia de raça e gênero, nas quais o macho branco ocupa a posição superior e a fêmea mongol a inferior, não muito longe dos negros em geral. O artigo a que responde Isaías Caminha é uma divulgação da teoria da recapitulação.
O passo adiante da literatura de Lima Barreto, já claro no seu primeiro romance, é o da superação do vértice determinista naturalista, tomando-o inclusive como o mote da obra para desmontá-lo, revelando mecanismos sociais, a estrutura do favor, de que Machado já tratara, mas que Lima observa na especificidade de sua vigência no período republicano, tendo que se haver, ainda, com a constituição do trabalhador livre naquele momento, com as prerrogativas de classe mantidas, entre outros elementos, às custas da substituição do título nobiliárquico pelo anel de bacharel, a república dos doutores.
Há vários modos de ajuizar a trajetória de Isaías, conforme a leitura seja linear ou atenta aos prefácios e inversões de tempo. Tudo dependerá de uma escolha de perspectiva do leitor, escolha esta que tem muito de revelador sobre o próprio leitor.
O recurso da recusa da voz autoral, com a afirmação da existência empírica de Caminha, é engenhoso modo de opor à verdade científica, letrada, em periódico nacional, a legitimidade e a força do testemunho, do depoimento da realidade vivida.
Lima Barreto supera assim o
modelo literário que elegera,
o Naturalismo, bem como o
arsenal de ideias e concepções
ainda vigentes em seu tempo
que faziam soar ao negro ou
mulato pobre a fatídica sentença
de condenação à miséria ou à
mediocridade.
Se, ainda, filho de um homem acometido de loucura, a condenação, passando por Maudsley, se tingia de cores mais tenebrosas.
A questão que o ocupa no romance seguinte, em data de composição, Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá, publicado apenas em 1919 pela Companhia Editora Nacional, de Monteiro Lobato, também construído com vozes diversas e jogos de ponto de vista, é a da ação e a da não-ação. O funcionário público Augusto Machado convive com um colega mais velho, de grande inteligência e talentos múltiplos que, afinal, assiste passivamente ao correr dos tempos, sem propor-se a qualquer ação. Morre, coerentemente, ao abaixar-se para colher uma flor.
Este talvez seja o livro menos conhecido de Lima Barreto e, no entanto, há nele recursos com os quais a contemporaneidade, posterior ao autor, já se habituou: crônicas, fragmentos, mesclas de registros, além das longas conversas em andanças pelo passeio público, de onde a cidade vai se revelando aos olhares passivos dos dois caminhantes – deambulação e característica urbana que são, aliás, das marcas mais reconhecidas e enfatizadas pela fortuna crítica do escritor. A crítica dos anos 40, em geral, via no livro boas qualidades pouco desenvolvidas pelo autor, que, porém, teria preferido mais causar incômodo com o cacófato do título do que aprofundar-se na composição do romance.
Escrito concomitantemente ao Gonzaga de Sá, como revela o diário, e publicado quatro anos antes deste, o romance seguinte e o mais conhecido de todos, Triste fim de Policarpo Quaresma (1911, em folhetim, no Jornal do Comércio, 1915, em volume), é como que seu complementar, na medida em que a opção pela ação é assumida, e de tal forma, como sempre em todo texto de Lima Barreto, alicerçada na História que a revolução florianista aparece com todo seu caráter de ação vã e equivocada. Quaresma, ao contrário de Gonzaga e Augusto, age sempre: leis, educação, agricultura, luta armada, quase nada escapa ao furor utópico e ufanista de ação do personagem. Escrito em terceira pessoa, aqui o trabalho formal está não mais no jogo de vozes narrativas e autorais, mas na estrutura tripartite do romance, espécie de concerto em três movimentos do desconcerto do Brasil.
Parece encerrar-se nesse terceiro romance um primeiro ciclo de obras do autor, delimitado não pelo tempo, pela cronologia das publicações, mas pela temática e pela exploração de procedimentos e recursos formais. No mesmo ano de 1915, precisando desesperadamente de dinheiro, Lima Barreto escreve Numa e a ninfa, sob forma de folhetim, logo em seguida editado em volume, pelo jornal A Noite. Tendendo à caricatura e à sátira mais desbragada, como Os bruzundangas (edição póstuma em 1923, parte publicada antes, em 1917, pelo semanário A.B.C.) e Coisas do Reino do Jambom (publicada primeiramente no jornal O Careta, constante da edição completa das obras do autor feita para a editora Brasiliense, em 1954, sob os cuidados de Francisco de Assis Barbosa, maior biógrafo do escritor, e Antônio Houaiss), parece formar com outras colaborações do autor para revistas e jornais de caráter oposicionista, como O Debate, O Careta, A.B.C., Hoje, o conjunto de maior teor explícito de crítica política e social aos problemas do país e à república. Pode-se somar a ele o livro recentemente recuperado e editado por Beatriz Resende, O subterrâneo do Morro do Castelo (1997), composto por uma série de reportagens de Lima Barreto sobre o trabalho de demolição do Morro do Castelo entremeado por uma trama folhetinesca criada pelo escritor.
Um terceiro conjunto de obras do autor, novamente por afinidade de procedimento literário e proximidade temática, pode, a meu ver, englobar os contos, escritos ao longo de toda sua vida, o romance inacabado Cemitério dos vivos, que tem relação complementar com o Diário de hospício e também, em certa medida, porque espécie de obsessão constante a entremear-lhe os demais projetos, as três versões de Clara dos Anjos.
É nesse conjunto que a nota biográfica dolorosa, tantas vezes presente no Diário íntimo, ocupa o centro da criação. A experiência com a internação hospitalar, uma delas à sua revelia, levado por camburão de polícia a pedido de familiares, rendeu-lhe reflexões profundas e o levou a enxergar naquele verdadeiro depósito de seres humanos, privados de sua cidadania, objetos e roupas, a má-consciência da sociedade brasileira, como bem mostra Beatriz Resende. Perda da cidadania e da liberdade conjugada à fantasmagoria nutrida por darwinistas e por Maudsley, malgrado seu, levam-no às anotações no diário e ao início da composição daquele que teria sido, talvez, o melhor de seus romances. Vicente Mascarenhas, o narrador que pretendia ser escritor também é internado no hospício, mostrando o que os olhos de Lima Barreto lá viram, mas contempla também com horror as fraquezas, as debilidades de um filho que gerou.
Se o resgate da história individual, assombrada pelas ideias de seu tempo, apenas em parte superadas, ocupam o que restou de Cemitério dos vivos – título provavelmente em contraponto às Recordações da casa dos mortos, de Dostoiévski, autor que muito admirava – Clara dos Anjos expande a representatividade histórica na medida em que estreita a representação ao seu sujeito mais dolorosamente atingido: a mulher negra, enganada, desgraçada pelo homem branco de posses e poderes, a quem resta a humilhação, a expropriação máxima que é a probabilidade de tornar-se mercadoria, com a venda do único bem inalienável, outrora pertencente ao senhor de escravos, o corpo.
O ricto doloroso, ao lado do escárnio, da sátira, confluem no projeto literário e ético de Lima Barreto, expressado em diversos artigos, como “O destino da literatura” (1922): “… a Literatura reforça o nosso natural sentimento de solidariedade com os nossos semelhantes, explicando-lhes os defeitos, realçando-lhes as qualidades e zombando dos fúteis motivos que nos separam uns dos outros” (Impressões de leitura).
Além de traços de cristianismo pequeno burguês, detectado pelo crítico Arnoni Prado, tais considerações têm ainda como fonte a leitura de Kropótkin, naturalista que propôs um modelo complementar ao de Darwin para a evolução das espécies, com base em suas observações de insetos, mamíferos, roedores etc., principalmente nas estepes geladas da Sibéria. Kropótkin percebeu que nem sempre se trata de competição e de sobrevivência do mais apto. Não raro, espécies e indivíduos sobrevivem não por competirem entre si, no processo de seleção natural darwinista, mas por se auxiliarem mutuamente.
Esta linha de força da evolução natural é menos conhecida que a de cunho darwinista e, assim como esta última se refletiu em outros campos de conhecimento e da atividade humana, Kropótkin foi, além de naturalista, anarquista.
Em consonância com sua interpretação desse pensamento, Lima Barreto, ao final da vida, fundou uma “Liga contra o Football”, esporte que alimentava rivalidades terríveis dentro e fora do campo, com notícias frequentes de embates físicos entre torcedores. Além disso, considerava que os clubes se faziam portadores de pretensões de classe e de raça, bem como estimulavam afirmações de superioridades de povos nas partidas entre diferentes nações.
Não sem arestas, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira em si mesmo, concebendo um projeto literário e ético, exposto claramente no prefácio ao volume de contos Histórias e sonhos (1920): “Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm de comum e dependente entre si.”
Andrea Saad Hossne é professora de teoria literária e literatura comparada na USP e integrante da comissão editorial da revista Rodapé (Nankin), é autora do livro Bovarismo e romance (Ateliê Editorial) e da tese de doutorado “A angústia da forma. Lima Barreto, romancista”.