O conflito interior de um fotógrafo brasileiro em terras angolanas

O conflito interior de um fotógrafo brasileiro em terras angolanas
Sérgio Guerra no Deserto do Namibe, casa dos povos Herrero, em Angola (Sérgio Guerra/Divulgação)

 

Faltavam exatos seis meses para entrarmos no século 21, eu estava em Angola à frente do recém-criado Nação Coragem. Um programa de televisão que traduzia um pouco a nossa presença em Angola, onde desempenhávamos um amplo trabalho de comunicação institucional, propaganda e marketing político para o governo e para as Forças Armadas.

Naquele momento desembarcamos na província de Malange, no planalto central do país, para levar aos angolanos notícias sobre o desenvolvimento das operações militares naquela região, ainda sob relativo domínio das forças rebeldes da Unita.

As nossas viagens eram sempre muito tensas, pois nunca sabíamos com antecedência e precisão o que iríamos encontrar pela frente. A tensão começava pelo aeroporto e pelo avião que nos levaria ao nosso destino. Normalmente viajamos em aviões Antonov, de fabricação russa, cujos modelos e estados de conservação eram muito diversos. Os Antonov já eram famosos pela frequência dos acidentes. Os pilotos eram sempre russos que não falavam português e, naturalmente, adoravam a velha vodca.

Eram 11 horas quando desembarcamos na cidade de Malange. Deixamos as bagagens num pequeno hotel que o dono insistia em manter aberto, apesar da ociosidade, da guerra e dos bombardeamentos eventuais, e seguimos para o Hospital Geral para tomarmos pé das condições de vida, ou sobrevida, daquela população.

Fomos recebidos por centenas de pessoas, principalmente mulheres e crianças, muitas crianças. Todos impressionantemente magros. À medida que olhava para eles, eu começava a perceber a dimensão do que estava se passando naquela província. Muitas crianças já apresentavam uma descoloração nos olhos – eram negros com olhos azuis, azuis de fome e da desnutrição imposta pelas circunstâncias.

Como soldados que não se desprendem da sua última arma, todos carregavam seus pratos de metal vazios, já encardidos pela ação do tempo, à espera de alguma sobra de comida proveniente do hospital. Por um momento pensei: são aquelas crianças que esperam alguma sobra de comida do hospital, ou é o hospital que está à espera que sejam desocupados os leitos que, cedo ou tarde, serão ocupados por elas?

Sentimentos imprecisos

Senti-me atormentado por aquelas imagens que iam desfilando no visor da minha câmera. Do hospital seguimos para o pátio de uma igreja onde missionários da Cáritas tentavam ajudar as pessoas. As imagens eram ainda mais impressionantes: tratava-se de milhares de pessoas avolumadas nos portões de ferro que cercavam o pátio, na esperança de um lugar na fila onde seria possível conseguir algum alimento para postergar a vida.

Era algo assustador que fazia multiplicar em mim sentimentos imprecisos diante daquele exército de miseráveis. Não sabia se era medo, pena, angústia, tristeza… Era também como se aquilo não fosse real. Nesse dia vi cenas que jamais me esquecerei. Eu fazia fotos de pessoas reais, mas até então só havia visto algo parecido na condição mediada da imagem jornalística: Biafra, Somália e outras tragédias humanitárias.

Anoiteceu e fomos para o hotel. Comemos algo imersos num silêncio reflexivo, toda a equipe vivendo uma sensação de choque e talvez de culpa que atenuava a nossa fome e estragava a vontade de comer. Passavam das nove da noite quando me deitei e fui processar a profusão de imagens que minha memória fazia questão de impor. Comecei a pensar sobre o que vira ao longo de todo o dia e tive raiva da minha condição profissional.

Questionava a pertinência de estar ali fazendo comunicação onde a necessidade era o pão. Era como se eu estivesse ali usurpando o dinheiro público que poderia ser investido em comida para as pessoas. Eu chorei e naquele momento tive vontade de ir embora, de não ter que viver aquele conflito comigo mesmo. Eu chorei e lamentei horas a fio, até o cansaço se impor diante da angústia e eu adormecer.

Acordamos quando ainda estava escuro e seguimos para o front, juntamente com o general Nguto e o general Gonga (que acabou por morrer tragicamente três meses depois ao acionar uma mina antitanque). Fomos ver e ouvir as tropas que se entrincheiravam ao sul, em direção ao Rio Kwanza. Ali pude perceber que a linha de defesa do exército já estava bem consolidada e bem equipada. A brigada parecia estimulada e com motivação para empurrar o exército da Unita para locais mais remotos, que tornassem a área urbana inatingível.

Da autorrejeição ao desafogo

No fim da tarde, regressamos ao hospital para gravar um depoimento do diretor. Logo depois de iniciado o trabalho, começou um bombardeio por parte da Unita. Ao nosso redor estimo que houvesse umas 300 pessoas que, ao ouvir os estampidos, desapareceram da nossa frente em alguns poucos segundos. Nós ficamos lá dando sequência à gravação em meio ao som dos obuses que explodiam. Na verdade, eu também desejava correr dali, mas para onde iria? Talvez ao encontro da própria bomba. Aos poucos os sons foram dando lugar ao choro e aos gritos dos feridos que começaram a chegar ao hospital.

Embora tenha vivenciado esse triste evento, constatei que, pelo posicionamento do exército, os ataques eram cada vez menos frequentes numa cidade que viveu bombardeamentos durante dias seguidos pouco tempo antes. Entendi também que a fome se devia em muito à percepção equivocada de fragilidade militar na área.

De posse de todas as informações, voltamos a Luanda para preparar o programa. Editamos o material fazendo um paralelo meio paradoxal entre a estabilidade militar e a fome gerada pelo desabastecimento.

Em novembro, quatro meses depois, voltamos ao Malange. Nessa ocasião o exército havia conseguido afastar as tropas da Unita na maior parte da província. Chegando lá fomos visitar a irmã Maria de Lourdes, missionária da Cáritas que tínhamos entrevistado em julho no pátio da igreja. A irmã nos fez um depoimento muito gratificante daquele período, quando eu mesmo pusera a minha opção profissional na berlinda.

Ela disse: “Tudo mudou depois que o programa Nação Coragem foi ao ar. Com ele as pessoas tomaram consciên-cia da tragédia que estávamos a viver. O governo e a sociedade se mobilizaram e começaram a chegar grandes quantidades de alimentos provenientes de diversas regiões, encerrando o ciclo de fome e miséria estabelecido até então”.

A autorrejeição que senti naquele mês de julho foi ultrapassada em muito pela satisfação de um depoimento isento. E só então, em resposta àquela noite maldormida, me veio um sentimento de missão cumprida. Afinal, a comunicação havia possibilitado a chegada do pão. Estava em Angola e, pela primeira vez, me sentia completamente justificado.

Hereros – Angola
Sérgio Guerra

Edições Maianga
260 págs. – R$ 190

(3) Comentários

  1. O trabalho de um fotografo eh sempre arduo,por vezes doloroso. Pois, justamente: a sensibilidade ao mundo mostra tanto a beleza – essa miuda, incrustada nas rochas desapercebidas por nossos olhos fatigados – quando a miseria, a hipocrisia humana.
    E entao a duvida – quase existencial – toma o corpo por completo: estaria eu, fotografo, sendo cruel por retratar tudo isso, e nada fazer para mudar? nao seria eu tao desumano quanto a situacao de opressao que vejo? Nao. Como o depoimento que voce recebeu, a imagem produzida, em suma, a obra,eh capaz de motivar a reflexao em outras pessoas para que, um dia, talvez perto do fim da vida, essa ‘vida’ – que no fundo eh ‘quase-vida’- torne-se humana.
    E trabalho como o seu que nos dah essa dimensao de Humanidade esquecida.

    (ah, perdoa-me a falta de acento… meu querido notebook nao os possui)

    abracos,

    Liv.

  2. Acho que quase todos os jornalistas já pensaram em desistir e jogar tudo pro alto. Pensei isso na semana passada. Mas resolvi ficar porque também acredito que a comunicação tem um papel fundamental nas transformações sociais. Só precisa ser bem feita. E se todos que acreditarem nisso começarem a fazer jornalismo com verdade e sem interesses economicos ou pessoais já teremos um grande feito pra humanidade – ou pelo menos uma ação comum pelo bem.

    Força!

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