A farsa como tragédia

A farsa como tragédia

Vladimir Safatle

“Vou interromper o senhor. A pergunta que tenho a lhe fazer é… O senhor tinha uma ideologia. Esta declaração é sua: ‘Tenho de fato uma ideologia. Minha avaliação é que o livre mercado competitivo é, de longe, uma maneira sem rival de organização das economias. Tentamos as regulamentações, nenhuma funcionou de maneira significativa’. É uma citação sua. O senhor teve autoridade para impedir as práticas irresponsáveis de empréstimo que levaram à crise das hipotecas subprime. O senhor foi aconselhado a agir nesse sentido por muitos outros. E agora toda a nossa economia está pagando por isso. O senhor acha que a sua ideologia o levou a tomar decisões que preferiria não ter tomado?”

Essas foram palavras do deputado norte-americano Henry Waxman pronunciadas para o então presidente do FED [Banco Central estadunidense], Alan Greenspan, quando este foi chamado ao Congresso para explicar sua irresponsabilidade diante da crise financeira de 2008.

Não deixa de ser impressionante lembrar como os choques econômicos liberais das últimas décadas foram feitos apregoando o fim das ideologias. Contra a “ilusão” de que haveria alternativas possíveis de desenvolvimento e distribuição, ouvimos durante décadas o mantra de que tais alternativas eram meras crenças ideológicas, pois o livre mercado competitivo era, de longe (talvez, só de longe), uma maneira sem rival de organização das economias.

Eis que descobrimos os cabeças pensantes do liberalismo justificarem suas ações equivocadas afirmando, de maneira descomplexada, terem uma ideologia. Bem, mas se esse for realmente o caso, cabe perguntar: como funciona tal ideologia? Esse é o objetivo do mais novo livro de Slavoj Zizek lançado no Brasil: Primeiro Como Tragédia, Depois Como Farsa.

Conhecido como um dos principais nomes da renovação teórica da esquerda mundial, Zizek é responsável por uma articulação inovadora entre psicanálise lacaniana, marxismo e análise de produções culturais do capitalismo contemporâneo.

Radicalidade

Neste livro, dois pontos merecem ser salientados. Primeiro, a compreensão acertada da existência: “da possibilidade real de que a principal vítima da crise em andamento não seja o capitalismo, mas a própria esquerda, na medida em que sua incapacidade de apresentar uma alternativa global viável tornou-se novamente visível a todos”.

Zizek não poderia estar mais correto. A clareza da dificuldade de a ?esquerda crescer a partir da crise apenas indica como suas figuras eleitorais não têm mais capacidade de ousar em suas pautas. Suas ações não têm a radicalidade necessária para encontrar novas alternativas e mobilizar as largas camadas populares descontentes com os rumos da economia mundial.

Sobra espaço para a extrema direita xenófoba, com suas construções paranoicas e sua maneira patológica de aproveitar-se do ressentimento popular contra a burocracia liberal cosmopolita que vive de costas para a miséria.

Aqui, entra o segundo ponto a ser salientado no livro, a saber, a proposta de recuperação da “ideia do comunismo”. Não se trata de alguma defesa do retorno à experiência do socialismo real, tal como o século 20 conheceu.

No entanto, há aqui uma ideia importante a respeito de como devemos pensar a experiência revolucionária que animou os momentos decisivos do século 20. Que ela tenha fracassado e produzido o contrário do que pregava, eis algo que ninguém nega e que merece uma reflexão demorada. No entanto, é inegável sua força em produzir lutas que mostraram grande capacidade de mover a história, de engajar sujeitos no desejo de viver para além das limitações do presente.

É verdade que, atualmente, vemos um grande esforço de apagar tal desejo, isso quando não se trata de simplesmente criminalizar a história das revoluções, como se a tentativa do passado de escapar das limitações de nossas formas de vida devessem ser compreendidas, em sua integralidade, como simples descrições de processos que necessariamente se realizariam como catástrofe. Como se não fosse mais possível olhar para trás e, levando em conta os fracassos, pensar em maneiras novas de recuperar tais momentos nos quais o tempo para e as possibilidade de metamorfose do humano são múltiplas. Como se não pudéssemos colocar a questão: não é necessário, muitas vezes, que uma ideia fracasse inicialmente para que possa ser recuperada em outro patamar e, enfim, realizar suas potencialidades?

Quantas vezes, por exemplo, o republicanismo precisou fracassar para se impor como horizonte fundamental de nossas formas de vida? A pergunta que Zizek quer colocar é: não seria o mesmo com a “ideia do comunismo”?

(7) Comentários

  1. É interessante o argumento de Zizek. Vale a pena aprofundar a compreensão de sua tese.

  2. IMPASSE DO CAPITALISMO: O livre mercado é como livre negociação entre patrões e empregados: uma utopia. A esquerda, depois da queda do muro de Berlim, ficou mais desacreditada, pois a rigidez da ideologia (através dos PCU’s) não foi capaz de formular uma alternativa para este modelo que estamos vivendo. O caso é que “descobrimos os cabeças pensantes do liberalismo justificarem suas ações equivocadas afirmando, de maneira descomplexada, terem uma ideologia”. Parece que a situação está se configurando em um estado de decadência e falência. Assim, vivemos disparidades como tecnologia ao alcance de todos (em prestações financiadas) e falta de emprego, juros altos e fome… O caminho da social-democracia é uma via, mas os poderes constituídos estarão preparados para essa empreitada? Arrumar a casa (essa grande casa) é tarefa para milênios, é política, econômica e cultural. E a mudança de mentalidade deve começar agora, para que os frutos nasçam daqui a algumas gerações.

  3. A esquerda pode sim ser um tanto responsável pela “crise”, porém através do caos, da crise, é que se obtem mudança para um novo “renascimento”. Daí uma nova ERA!

  4. O Capitalismo não apenas venceu a “briga” com a Esquerda, como também se transformou e superou diversas crises. A Esquerda mostrou-se incompetente, mas cumpriu um importante papel. Se hoje o comunismo parece inviável, ele ainda pode servir de matéria-prima para uma nova solução.

    Não acredito que o Capitalismo cairá tão cedo, pois se antes ele maltratava as classes mais pobres, hoje ele as conquista com a programação da TV, com as promoções nas lojas, o futebol e o carnaval. Com tantas distrações, ninguém tem tempo pra pensar no desemprego, no estudo, na organização familiar…

    A Máquina funciona, mas tem seus defeitos, suas falhas. Não vejo nenhuma maneira de destruí-la, mas é possível trocar suas peças, aquelas defeituosas, por outras que a façam funcionar melhor. Que significa isso? Que o Capitalismo precisa se humanizar. Mas parece algo impossível.

    E, da crise pode surgir a mudança, mas é ela pode vir sem uma crise também. Evitaria destruições desnecessárias.

    Um abraço!

  5. O que o Sr. zizek diz é tão ideologia como aquilo qu ele ataca.
    Por que não inverter a arma discursiva para o próprio pensamento de Marx? Existe alguma comprovação, de fato, da existência de um motor da história? Não está claro que dialética materialista é Hegel de ponta cabeça, e, portanto, idealismo? E a luta de classes como motor da história? Só alguém que precisa de certezas e fé pode acreditar nessa balela! Ora, o Sr. Zizek é tão produto da mídia como qualquer outro. A estrutura da narrativa marxista ou marxiana, foi e continua sendo a mesma da religiosa judaico-cristã. A diferença apenas reside na crença dos fiéis das igrejinhas de esquerda no discurso científico do defunto de High Gates. O que Marx escreveu, principalmento o Marx velho, para os neo-althusserianos à la Zizek, apresenta “A Verdade” indiscutível da “ciência do materialismo histórico”…Ora, mais ideologia que isso impossível. E devir revolucionário não precisa ser comunista. Nem mesmo o é. Pois comunismo é projeto falido.

  6. E em quê as petições de princípio de Bastiát, Herbert Spencer, Hayek, são superiores? Nem a religião podem ser comparadas, isto seria um grande elogio a elas pois são pura anomia.

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