A face da ópera moderna

A face da ópera moderna

O elo perdido entre passado e futuro

Norman Lebrecht

Não faz muito tempo, era possível, nos bares internos de qualquer casa de ópera, ouvir um dos chatos de intervalo lançar a afirmativa categórica de que a ópera acabou em 1924, com a morte de Puccini. E ponto final.

Tais epitáfios ainda são declamados em alguns poucos bares da Little Italy de Nova York e no Lincoln Center. Porém, a partir da virada do século 21, uma silenciosa mudança ocorreu na balança do repertório operístico, um avanço decisivo que ainda não foi reconhecido por todos.

Uma única estatística já diz tudo e aqui é o primeiro lugar onde você a lerá. Entre as óperas em cartaz hoje, há duas vezes mais obras compostas entre as duas guerras mundiais do que as que foram escritas ao final da chamada Era de Ouro. Vá em frente, conte-as.

Os anos de 1900 a 1918 nos deram Pelleas et Melisande, Russalka e Madame Butterfly; Salomé, Elektra, O cavaleiro da rosa e Ariadne auf Naxos; O castelo do Barba Azul e Palestrina. A grande precursora do futuro, embora não reconhecida em sua época, foi a Jenufa de Leos Janacek, que estreou em Brno, em 1904, e estava destinada a esperar uma dúzia de anos por uma apresentação em Praga e pela divulgação internacional. Contabilizamos, então, dez nesse período.

A onda do pós-guerra foi guiada pelo já velho, porém infatigável, Janacek, com Katya Kabanova (que estreou em 1921), Príhody Lišky Bystroušky (“A pequena raposa astuta”, 1924), Vec Makropulos (“O caso Makropulos”, 1926) e Z Mrtvého Domu (“Da casa dos mortos”, 1930) – todas elas agora parte do cânone.

Libertação das hegemonias

Mas Janacek, como suas locuções tchecas simplistas e sobrecargas emocionais, é apenas uma faceta da grande proliferação de óperas no pós-guerra que permitiu que o gênero se libertasse das hegemonias italiana e alemã para um compromisso com uma realidade que reflete, de modo mais vívido que o verismo de Puccini, os relacionamentos irresolutos entre a plateia e as experiências dos recentes tempos de guerra.

O neo-realismo traz consigo Wozzeck (1926) e Lulu (1937), de Berg, em que figuram um soldado e uma vedete, brutalizados além do limite. Shostakovich, em Lady Macbeth of Mtsensk (1934), explora o tédio rural e o desejo. George Gershwin, com Porgy and Bess (1935), arrasta a ópera para o extremo da pobreza e da perseguição racial.

Prokofiev deriva da leviandade em O amor das três laranjas (1921) para a libertinagem em O anjo de fogo (1922-3). Kurt Weill foi o pioneiro da sátira social em A ópera dos três vinténs (1928). Richard Strauss é um antediluviano teimoso – Intermezzo (1924), Die ägyptische Helena (1928), Arabella (1933), Die schweigsame Frau (1935) –, enquanto Busoni, com Doctor Faust (1925), e Hindemith, com Mathis der Maler (1938), conquistam a acrópole intelectual, junto com Schoenberg, que nunca concluiu de fato Moses und Aron (1932).

Com a exceção de Strauss, que mantinha laços com o passado, todas essas obras eram periféricas há apenas uma década. Hoje elas são representadas sem alvoroço e sem desculpas a um público que se livrou daquela ideia fixa do que a ópera deveria ser e que está preparado para aceitar alguns riscos. Outros dois candidatos pairam sobre a fronteira da aceitação – o exótico e sensual Król Roger (1926) de Szymanowski, apresentado no último verão em Edimburgo, e a psicossexual Julietta (1938) de Bohuslav Martinu, que terá várias apresentações neste ano de cinquentenário da morte do compositor.

Você continua contando? No total, mais de 20 óperas do período entreguerras já estão incorporadas à nossa cultura, o que confirma que a ópera, assim como a história, não tem fim e que a busca pela máxima experiência artística continua.

Dois equívocos

Mas antes que nos empolguemos demais com essa onda de renovação, reconheçamos duas falhas nessa análise. Em primeiro lugar, a arte não obedece às leis de empacotamento, e a recuperação de obras de um determinado período pode ser fruto de coincidência e não de espírito de época. Em segundo lugar, o que está faltando é uma ligação entre a decadência pré-1918 e a verdade pós-1919, uma ópera que represente a continuidade da forma e confirme a existência de uma tendência.

Mas essa ópera tem um nome: Die tote Stadt –“A cidade morta”–, estreou em Hamburgo e Colônia na mesma noite, em dezembro de 1920, e apareceu pouco depois no Metropolitan com a radiante Maria Jeritza como heroína.

Seu compositor foi Erich Wolfgang Korngold, de 23 anos, filho do crítico musical mais intelectual de Viena, um talento promissor elogiado como um segundo Mozart desde que Gustav Mahler lhe encarregou de um balé quando Korngold tinha ainda nove anos.

A ópera se passa em Bruges, Bélgica, no final do século 19, mas sua atmosfera é inconfundivelmente a da Viena pós-Primeira Guerra: a antiga capital imperial reduzida à insignificância provinciana, uma cidade que, apesar do luto por seus mortos de guerra, comparece com toda sua elegância a seus salões de ópera.

O herói, Paul, não consegue superar a morte de sua esposa, Maria – uma situação comum depois que 4 mil vienenses, em sua maioria jovens e saudáveis, pereceram na epidemia de gripe espanhola do final da guerra. Paul desenvolve uma fixação erótica e homicida por uma bailarina, Marietta. Ele luta para conseguir distinguir entre as duas mulheres, entre as cidades da vida e da morte.

A ópera foi um sucesso instantâneo com 80 produções diferentes e, apesar de ter desaparecido depressa do Metropolitan e de que nunca tenha sido representada na Grã-Bretanha, ela lotava todos os anos as salas de Viena até a ascensão de Hitler, quando Korngold foi jogado num ostracismo do qual só retornou recentemente.

Die tote Stadt está longe de ser uma obra perfeita. O libreto, escrito pelo autoritário pai do autor, está cheio de toscos clichês. Vislumbra-se a sombra do pai sobre o ombro de Korngold enquanto o herói faz amor com Marietta e a sensação é, no fim das contas, assustadora demais para garantir uma contemplação prolongada.

Interpretações

A música foi considerada um produto intermediário entre Puccini e Strauss, equivocadamente, na minha opinião. A influência textural mais importante é a de Alexander von Zemlisky, professor de Korngold (e cunhado de Schoenberg), cuja ópera, Eine florentinische Tragödie, gozou de simultâneo sucesso. A influência espiritual, porém, é de Mahler que já havia muito estava morto, mas que deixara no ouvido de Korngold as chinoiseries pentatônicas de A canção da terra, junto com sua alongada voz de tenor e a conclusão com “ewig, ewig” da primeira grande ária de Paul. Die tote Stadt é um ópera em luto por seu próprio padrinho.

Trata-se, deixando-se de lado os antecedentes, de uma obra de melodia sedutora e impacto emocional cuja coprodução de Willy Decker para o Royal Opera House, que já passou por Viena, Salzburgo e São Francisco, está sendo muito comentada. Houve outras montagens em Zurique e na New York City Opera. Die tote Stadt está de volta à cena.

Mas o que faz disso mais do que uma simples recuperação é o contexto original da obra. Korngold estava escrevendo sobre a Viena do aqui e agora, uma cidade ameaçada a cada dia pela fome, pela doença e pela revolução. Die tote Stadt captura a fragilidade e a efemeridade de uma sociedade que perdeu as suas certezas. Imagine uma ópera composta por Thomas Ades sobre a crise mundial com a aids como subtema e você terá alguma ideia da mudança de paradigma promovida por Korngold.

Em Die tote Stadt ele deslocou a ópera do escapismo para as questões contemporâneas, do tempo imaginário para o tempo real, dando licença ao posterior John Adams para escrever Doctor Atomic e à Scottish Opera para preparar uma obra curta, com lançamento previsto para este ano, sobre a morte de David Kelly, no caso das armas iraquianas. Die tote Stadt é o portal das óperas que lidam com notícias ruins. É o elo perdido entre passado e futuro, o princípio da ópera como arte moderna.

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