A exceção à regra

A exceção à regra
Homem usa máquina que mostra imagens de mulheres nuas, conhecida como peep show, nos EUA, em 1938 (Library Of Congress)

 

Todos os meus amigos e familiares estão avisados: se um dia eu morrer de causas não naturais, não deixem ninguém me usar como pauta antipornográfica.

Decido começar assim, bem direta. Já se foi a época de fazer floreios e tentar borrar a verdade universal da minha vida. A pornografia me salvou, muito antes de eu saber que ela tinha esse poder.

Entendo que deve ser estranho ler algo nesses termos. Como assim? Numa sociedade em que todos somos cientes, em algum grau, dos males da pornografia. Uma amiga me disse que uma atriz pornô anônima lá da Indonésia morreu. Só pode ser essa indústria cruel. Fiquei sabendo que a pornografia diminui sua massa cinzenta. Sabia disso? Mata mulheres. Crianças. Mata até bicho. Pois é. A vizinha da minha prima virou puta. Sempre soube que ela acabaria assim, sempre foi uma rameira. Está vendendo um tal de pack. Não sei o que é, mas os caras adoram. Antes ela tinha aquele emprego lá no shopping, na loja de gente chique, lembra? Aquela onde os vendedores precisam ficar oito horas de pé e têm quinze minutos de almoço. Morava longe, duas horas de ônibus para ir e voltar. Sim, a vida dela era miserável mesmo. Adoeceu, ficou deprimida. Tomava até antidepressivo e ansiolítico, fiquei sabendo. Mas daí virar atriz pornô? Não mesmo. Se fosse comigo? Eu não. Jamais. Eu sei que ela tem filho para criar. Mas que exemplo de mãe é esse? O que o filho dela vai dizer na escolinha? Eu, hein. Sim, eu sei que antes ela não conseguia nem pagar leite em pó para ele. Mesmo assim… Tem que se dar ao respeito. É por causa desse tipo de gente que o mundo está como está. Ninguém respeita mulher.

Comecei como camgirl em 2018, atendendo online ocasionalmente para complementar uma renda diminuta e que só me trazia dor de cabeça. Depois me demiti e continuei como camgirl, dedicando mais tempo a ficar online. É claro que, na época, eu ainda morava com a minha família e não precisava de muito dinheiro, só o bastante para pagar o cartão de crédito. Mas isso foi mudando. E a pornografia deixou de ser um hobby e passou a ser minha profissão.

Na época, eu nem falava pornografia. Para mim, pornografia ainda era uma indústria distante, longe de tudo o que eu fazia. Ainda que eu venda minha imagem, eu estou sozinha, então não pode ser pornografia, pode? Comparar-me com toda uma cadeia industrial de muitos profissionais, atores e atrizes, diretores, roteiristas, figurinistas, sites e… Eu?

Sim, eu.

Perceber que eu fazia parte da indústria pornográfica foi um choque. Afinal, tudo o que eu sabia foram as pessoas que me contaram. Que matava, que era nocivo. Ao mesmo tempo, minha vida estava cada vez melhor, livre de um emprego que me explorava, com a minha saúde mental um pouco melhor, com a possibilidade de eu mesma pagar minha terapia e meus remédios. Minha clientela se dividia entre homens anônimos que só queriam me ver gozar e homens anônimos que queriam que eu os distraísse de uma vida cheia de dores e dissabores. Em nenhum desses casos eu me sentia explorada.

Ainda assim, perdi amizades que me acusaram de compactuar com a exploração e a morte de pessoas pelo mundo. Discuti com estranhos na internet que juravam que o que eu fazia era criminoso e, sem medo, desejavam minha morte.

Fui percebendo, aos poucos, como o contato com as pessoas de fora do ramo era estranho. Como o mundo deixou de me ver como uma mulher de respeito e passou a me ver como uma vagabundazinha que abre as pernas na internet. Mas, pelo menos, era na internet. Menos mal. Mais ou menos.

Notei, ainda nova, com meus vinte e poucos anos, que a solidão era bem real. Não porque somos poucos – porque não somos, longe disso –, mas porque carregamos um fardo que a maioria das pessoas de fora não entende. É como se guardássemos um grande segredo, escondido do resto do mundo, algo que até poderíamos revelar, mas eles não querem. Pelo menos é assim que me sinto. É assim que imagino como quase todo trabalhador sexual se sente – capaz de muitas coisas, conhecedor da mente humana no que diz respeito a desejo, mas com uma voz que não quer ser ouvida por quem não compartilha do nosso mundo.

Mas se a pornografia é um problema, como pode ter salvado minha vida? Seria eu o erro do mundo? Diversas vezes respondi que sim.

No entanto, minha jornada não acabou no virtual. Feliz ou infelizmente, sou uma pessoa de muitas nuances. Não consigo ficar em um só lugar. Fazer uma só coisa, estudar um único assunto, ter uma só profissão. Esse foi o motivo, aliás, que me rendeu o convite para escrever este mesmo texto.

O camming já não era minha única opção; a indústria está cheia de possibilidades. Primeiro veio a pornografia tradicional, à qual consenti com uma única condição – condição essa que continua valen­do nos dias de hoje: a de só gravar com quem eu conheço e tenho uma relação de amizade. Pois bem, fiz.

Então veio a pandemia, a época mais difícil da vida de muita gente. Trancafiei-me em casa, como todo mundo, e esperei o tempo passar enquanto olhava para o teto. Havia muita gente na internet. Muito cliente para atender. Muita gente angustiada com muito tempo e pouca paciência.

Ali eu já tinha dois anos de pornografia e muito tato com pessoas. O que não te contam sobre atender pessoas online é que grande parte do trabalho é quase terapêutico. Outro dia falei em rede social que muitos homens traem as mulheres porque sentem vergonha de seus fetiches e têm medo do preconceito da parceira. Perguntaram se eu estava defendendo traição. Ou se estava defendendo homens.

Mas é mais ou menos assim a vida da puta: um pouco de sexo, um pouco de terapia. O que ouvimos de desabafo, padre nenhum conseguiria. A pandemia pegou todo mundo de surpresa, é claro, e uma punheta ocasional virou uma terapia semanal para muita gente. Também foi nessa época que conheci outras trabalhadoras sexuais – recém-chegadas à vida de puta – perdidas e tentando fazer dinheiro na onda da rede que depois viria a cuspir na nossa cara.

Conheci pessoas que tinham medo da pornografia, mas que viram nela uma oportunidade de não passar fome ou de não perder o aluguel durante a pandemia. Conheci pessoas que já tinham interesse e que agora, com todos os trabalhos presenciais em home office, também tinham tempo. Conheci até mesmo uma escritora famosa, queridíssima, que me contatou dizendo que, finalmente, tinha tomado coragem e que, olha só, eu era uma inspiração para ela. Um beijo, Lara.

Houve, sim, um boom de pornografia. Muito maior do que o dos anos 2000, é o que penso. Grande parte disso influenciado por subcelebridades que resolveram que mostrar a bunda no Instagram não seria mais suficiente: agora também queriam mostrá-la nos nossos espaços. Mas ei, não faço pornô. Eu tenho um trabalho. Eu sou [insira aqui qualquer vaga de trabalho na empresa do papai que eu vou herdar um dia]. Pornografia é coisa de gente suja. O que eu faço é erotismo. É arte. É clássico e bonito. Não é pornografia.

Mas era, sim.

E sabemos que era.

E quem ficou continua sabendo que era, porque a pandemia acabou, mas nós continuamos aqui, assim como continuamos vivos em todas as outras pandemias de outrora. Muitas profissões do passado foram extintas, tanto pela modernidade quanto pelo ostracismo. Mas nós, putas, continuamos aqui.

Eu continuei aqui. Até fiz uma pausa, olha só, para cuidar da minha saúde. Mas continuei, porque mesmo uma pandemia mundial e uma crise no mercado pornográfico envolvendo plataformas banindo trabalhadores sexuais, briga por causa de criptomoedas e uma imensa quantidade de julgamentos (muito embora vindos de pessoas curiosas, que muito se importavam em vasculhar a minha vida e a de outros trabalhadores), mesmo tudo isso junto, mesmo todos os problemas não foram capazes de diminuir o meu amor pela pornografia.

Depois veio a escrita. Uma parte de mim nunca esquecida, aquela parte que todo mundo tem para se manter um pouco vivo. Meu viver é escrever. Mas não sou da academia nem tenho inclinação à poesia, minha sina é a fantasia, a ficção. Minhas sessões favoritas são aquelas em que crio histórias com os clientes. Alguns deles vêm me buscar num cavalo branco. Outros são capachos que precisam de uma rainha-monstro bem má. Independentemente de ter leitores ou não, sou escritora.

Daí veio a escrita de roteiros de pornô. Afinal, por que não viria?

Tive a oportunidade de ver se criar numa tela tudo aquilo que eu tinha imaginado. Entender como toda uma equipe interpreta minhas palavras. Ver atores e atrizes pondo minhas falas no mundo. E foi catártico.

Ainda assim, muita gente dizia que isso era ruim. Que era o mal. Os males da pornografia etc. Como você pode participar disso? Como pode compactuar com isso? Você, logo você, que escreve tão bonito.

Escrevi tudo isso e teria espaço para mais, não fosse minha grande e principal questão. Uma vez me disseram: certo, você é a exceção à regra, não vê? A maioria de vocês está vulnerável. E são essas pessoas que devemos proteger.

E como discordar disso?

Com que cara eu vou dar uma réplica e dizer: “Oh não, ninguém está vulnerável. Esses problemas não existem. A pornografia é maravilhosa”. Não, eu jamais seria capaz de fazer isso.

Porque a pornografia não é maravilhosa, ela pode ser. E eu não quero ser exceção à regra, quero ser a regra. Quero ser o exemplo de que dá para ter um trabalho ético nesse ramo, de que as pessoas podem ser protegidas, amadas, cuidadas, que podemos ter nossos direitos assegurados, que podemos ter direitos trabalhistas como qualquer outro cidadão. Quero ser a regra porque quero que puta tenha direito a anticoncepcional injetável gratuito como EPI. Quero ser a regra por desejar ver mais roteiristas se arriscando na pornografia e vendo suas histórias ganharem vida. Quero ser a regra por almejar ver mais trabalhadores sexuais tendo uma vida digna, investindo seu dinheiro em faculdade, em cursos, em hobbies, em viagens. Quero ser a regra porque, por mais legal que seja ser exceção, aprendi que nesse ramo, se você cultiva a solidão, está contra os seus.

Aprendi que todo espaço é um espaço, porque todos nos são negados, assim como nos negam qualquer chance de falar. Tiraram-nos os megafones e nos despolitizaram a ponto de que quem faz fama é quem trabalha com marketing de humilhação – “Olha como eu fiz um salário mínimo em algumas horas, a culpa é minha que sua mãe não escolheu ser puta?”. Tiraram-nos a consciência de classe. Tiraram-nos até mesmo o direito de protestar e de acusar os nossos iguais quando fazem merda, quando espelham suas atitudes naquela mesma indústria – que todo mundo joga na nossa cara – de que fazemos parte e somos o problema.

São seis anos na pornografia, fazendo muito mais do que um trabalho. Eu sou camgirl, dominatrix, roteirista, fotógrafa. Por anos, eu mesma evitava a palavra, preferia ser chamada de trabalhadora sexual – e ainda gosto disso. Mas não só. Sou puta. Puta com P maiúsculo porque até mesmo essa palavra tentaram, em vão, tirar de nós.

Não quero ser a exceção boa de um trabalho ruim. Quero ser a regra digna de um bom trabalho.

Por essas e outras, proibi meus familiares e amigos, caso eu morra de causas não naturais, de deixarem que usem a minha morte como voz para aqueles que não quiseram me ouvir em vida.

Anita Saltiel é escritora, dominatrix, fotógrafa e supervilã. Escreve desde histórias de terror a roteiros de pornô. Estuda design de moda e vive em São Paulo numa casa toda colorida que pertence mais às suas gatas do que a ela mesma.


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