A escritora partida ao meio

A escritora partida ao meio

Em seu novo livro de contos, Beatriz Bracher abre mão da narrativa linear para produzir, na ficção, o deslocamento necessário da realidade

Julián Fuks

Que há sempre um lapso entre a vida e sua representação, um hiato entre a realidade percebida pelos sentidos e a que desponta, construída, nas páginas de um livro, é algo que o novo século já cuidou de tomar por sabido. O que não se tornou ponto pacífico é o que fazer diante disso, e não por acaso a literatura recente tem se mostrado prolífera em sujeitos cindidos. Não falo do duplo como personagem, do jogo de reflexos de Borges ou Calvino que aqui veio ecoar no romancista Chico Buarque. Falo de escritores acometidos por uma aguda bipolaridade – algo que não lhes retira valor, pelo contrário, faz deles emblemas de um dos grandes impasses da contemporaneidade. Falo dos que se mostram indecisos entre a possibilidade reiterada de disfarçar o lapso, maquiar o hiato e produzir literatura como se fosse verdade, e o imperativo ético de revelar a outra verdade, a verdade do hiato que sempre se reinstala, do lapso que teima em afirmar-se, do caráter incontornável do impasse.

A brasileira Beatriz Bracher parece ser uma dessas pessoas partidas ao meio, compostas por metades. Os que a conhecem há mais tempo decerto dirão que são mais partes, que pela riqueza da personalidade subjaz uma mulher diferente a cada um de seus gestos corriqueiros, ou a cada uma de suas realizações literárias. Para os que, como eu, no entanto, a conhecem apenas pelos dois últimos livros publicados, só o que se pode dizer sem maior chance de equívoco é que existem duas Beatriz Bracher.

Antonio

A primeira, a autora de Antonio, é a que os prêmios e a crítica não vacilaram em incensar. Essa é a que se esmera na criação indefectível de personagens, na produção de imagens e cenas medidas que favoreçam a compreensão do relato. Na forja de uma família inteira, quatro gerações e oito décadas de peripécias e relações complexas, em uma São Paulo que cresce e mostra suas facetas cada vez mais cambiáveis, Bracher prima pela coerência e pela construção imaculada. Seus três narradores se intercalam à perfeição e mantêm a técnica anunciada: “Para não pular nada o melhor é seguir na ordem natural, na ordem do tempo e dos dias”. Assim vão suprimindo lacuna por lacuna até conformar uma história, e o leitor que saia de peito pleno e coração agradecido.

“Não somos literatura, querido”, diz uma das narradoras, e depois reforça sobre o protagonista: “Teodoro não é um personagem, é meu filho, neto do meu pai, bisneto do meu avô, pai do meu neto, avô do meu futuro bisneto”. Então reparamos que as contradições descritas eram todas humanas, e não performáticas, identificáveis em nosso entorno para além das páginas impressas. E por fim entendemos: em Antonio, não há espaço para a caricatura, para a intensificação de caracteres tão própria à criação literária. A vida desalojou a ficção que se pretendia sua intérprete.

Meu amor

Muito diferente é a Beatriz Bracher dos contos de Meu amor, escritos entre 2004 e 2008 (alguns deles, como se pode presumir, nos intervalos da edificação incólume de Antonio), mas só este ano reunidos e publicados em livro. Aqui o foco não recai sobre a coesão e o entrelaçamento preciso, mas sobre a experimentação. Palavras não são frações de um discurso narrativo, e sim grumos de sentido que se conjugam para formar imagens e situações, mas que acabam sempre revelando sua própria insuficiência. Bracher, mais uma vez, põe um de seus narradores a explicar o que aconteceu: “Aconteceu que as palavras não quiseram mais ser assunto. Aconteceu que as palavras quiseram tomar corpo, ser uma coisa e não apenas sobre coisas.”

Fala de amor o título, mas logo se dá a ver sua natureza parcial: o livro fala de amor e violência. Não que a violência interrompa o amor, ou que o amor sirva para redimir a violência. Morte e sexo mostram-se faces de um mesmo desejo e alimentam um mesmo universo de abusos, excessos e incontinências. Daí a possibilidade, por ínfima que seja, de retrato ou apreensão do real através de frases encadeadas: o nascimento do desejo esgueira-se por entre as palavras e irrompe em cada parágrafo, em um processo libidinal que passa necessariamente pela linguagem.

Casos e vozes da realidade consabida são incorporados à narrativa: uma menina encarcerada, por dias, com vinte homens , outra arremessada do sexto andar de um prédio pelo próprio pai, um menino arrastado pelo carro e decapitado durante um assalto, um velho alienado sendo maltratado por sua enfermeira. Não se trata, todavia, da tentativa de reconstituir as notícias e estruturar um texto como se fosse a própria vida. “As palavras têm o dom de criar e nunca de recriar”, é o que se anuncia. Trata-se de recuperar dados de uma cultura e alijá-los de seu contexto imediato para que ressoem ambíguos, estranhos, diferentes. É a ficção que adota a vida com o valioso intuito de seu deslocamento.

Que o produto deste empenho seja bem mais irregular e imperfeito, isso não deveria surpreender. Surpreenderá se os prêmios e a crítica valorizarem da mesma maneira essa Beatriz Bracher que, após cindir-se, atravessou uma fronteira.

Meu amor
Beatriz Bracher
Editora 34
144 págs. – R$ 27

Trecho do conto “Um pouco feliz, de noite”:

 “Com o controle nas mãos me distraio, mudo de canal e fico até de madrugada.

Quando ouço barulhos no apartamento dele, mordo as pedras de gelo do copo vazio, começo a andar cantarolando, arrasto meus pés no carpete fazendo um chiado alto, vou até a cozinha, tomo um copo de água com goles grandes, abafando os barulhos dele. Volto para a televisão e, em pouco tempo, dependendo também do tanto de uísque que bebi, consigo não prestar mais atenção nos barulhos dele, nem ouço mais. Fica dentro da minha cabeça, é verdade, um fio de pensamento por detrás dos filmes. Nem sei direito que pensamentos são, de morte, assassinato, é possível, outras vezes penso que devem ser de sexo, porque acontece de, no meio de uma cena inocente ou triste, o menino pequeno, carequinha e pálido, morrendo de câncer em um hospital americano, olhando para a mãe e dizendo, não se preocupe mãezinha, eu vou em paz, e fechando os olhinhos azuis, eu ficar excitada.”

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