A era da turbulência

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A era da turbulência

Foto de cena de Elefante

Cássio Starling Carlos

Se existe um “mito da juventude”, sua construção passou obrigatoriamente pelo cinema em geral e pelos filmes norte-americanos em particular. Ao contrário do que se supõe, a adolescência não adquiriu o direito de visibilidade na tela nos anos 1950, época dos “rebeldes sem causa” de Juventude Transviada, dos motoqueiros de couro de O Selvagem da Motocicleta e da agressividade escolar embalada pelo rock em Sementes de Violência.

Lá nos anos 1930, Mickey Rooney e Judy Garland ainda moleques já eram alçados à condição de estrelas, tornando-se pioneiros do que hoje chamamos de teen- -movie – produções feitas como miragem sob medida para uma fatia de mercado que todo ano se renova.

O espelho só se rompeu em meados dos anos 1990, quando o fotógrafo Larry Clark realizou Kids,contaminando o cinema com seus retratos de uma adolescência bruta, drogada e ensimesmada, gente que nem pensava em andar na turma das patricinhas de Beverly Hills.

Aqueles eram jovens que entenderam, sob os berros de Kurt Cobain cantando “Smells Like Teen Spirit”, que o “no future” dos punks havia se concretizado em seu presente.

Ao longo de uma década e de filmes como Bully e Ken Park, Clark não abrandou seu carinho duro pelos adolescentes-zumbis, personagens desencantados e desconectados, para os quais, como o matador do Realengo, dá no mesmo matar ou morrer.

À geração, contudo, faltava alguém que não visse a adolescência nem tanto no céu do shopping nem tanto no inferno do sexo, drogas e raves, alguém capaz de reler poesia nos seres de corpos indefinidos e paixões definitivas.

Gus Van Sant vinha construindo, desde o fim dos anos 1980, a reputação de cineasta focado na juventude como zona de turbulência. Mala Noche, Drugstore Cowboy e Garotos de Aluguel anunciavam que seu cinema se afastava do existencialismo ordinário da “geração John Hughes” e procurava um lugar de onde falar da juventude sem para isso fingir mimetizá-la.

Outras tentativas de representar jovens foram feitas com Gênio Indomável e Procurando Forrester, exercícios de cinema tradicional inoculados com sensações mais amargas que de costume.

Entretanto, esses são filmes de passagem, formatados demais para o grande público e nos quais parece imprevisível a ruptura criativa que definiu o cinema do diretor nos anos 2000.

Em Gerry, de 2002, a identidade, a comunicação e a vida, tudo se dissipa em meio ao vento e à areia. Dois rapazes entram no deserto e se perdem. Vagam e não encontram uma saída.

No caminho, o cinema de Gus Van Sant encontra o de Michelangelo Antonioni. A angústia física duplica- -se e se amplifica em metafísica. Está inaugurada uma tetralogia sobre jovens que se complementará com Elefante, Últimos Dias e Paranoid Park.

Todos seguem personagens à deriva, o que sustenta o abandono do drama tradicional, com sua lógica de conflito e resolução. Em seu lugar, surgem relatos que privilegiam as sensorialidades sem que para isso se opte pela diluição em subjetivismos.

Inquietante e impactante, Elefante é a obra-prima dessa fase. O título, aparentemente sem sentido, homenageia um média-metragem dirigido pelo britânico Alan Clarke, composto de uma sucessão de cenas de assassinatos sem explicação de motivos, apenas uma série que se repete como um looping.

O filme de Gus Van Sant faz referência ao massacre de Columbine, em que dois adolescentes fuzilaram um punhado de colegas, repetindo um padrão de assassinatos coletivos que no último mês nos horrorizou ao se reproduzir na escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro.

Kids – Impetuoso e passional, o filme dirigido por Larry Clark e produzido por Gus Van Sant narra a vida de adolescentes que vivem em Nova York e vêm de famílias disfuncionais. Lançado em 1995, causou polêmica graças ao retrato impactante de um grupo de jovens registrando suas experiências arriscadas com drogas e sexo.
O controverso longa-metragem lançou um olhar sobre os rituais de amadurecimento da sociedade contemporânea. Mesmo após 16 anos, mantém a observação aguçada e atual em relação ao comportamento da juventude.

Elefante não proclama, contudo, ser “baseado em fatos irreais”, nem se esforça para parecer uma reconstituição fiel da matança. Segue seus personagens por longos corredores como se fossem avatares de videogames e narra uma situação que dura poucos minutos.

Cada bloco da ação corre até o fim e retoma do ponto inicial, seguindo outro personagem e adotando sua perspectiva. Essa estrutura de repetições oferece uma sucessão estranha, anômala, como a dos games, em que se pode zerar a contagem e retornar ao start.

Isso permite ao filme recusar dar explicações, razões que elucidem o surto de violência. Há uma situação de bullying e há pais ausentes. Há uma TV passando um documentário sobre Hitler e o nazismo, e há acesso fácil a armas poderosas. Há falta de afeto e há um jogo com situação de eliminação.

Não há, contudo, ênfase em nenhuma delas, nem definição psicológica dos personagens que justifique o ato. Essa indeterminação se prolonga no modelo narrativo, que se afasta da clareza hollywoodiana e abre espaço para outro tipo de discurso, incerto, composto de planos longos, tramas esgarçadas e continuidades suspensas, repetidas ou aleatórias.

Na contemporaneidade, era dos fluxos incessantes e da sensorialidade digital ou química, a percepção já não solicita âncoras, produzir sentidos transcendentes é pura perda de tempo e enunciar o vazio tornou se uma banalidade estética. Sem precisar renear isso, Gus Van Sant ainda consegue colocar o adolescente no lugar da esfinge.

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(4) Comentários

  1. O cinema de Gus Van Sant opera em uma perspectiva completamente sublime para falar de caos e violência, como se o “berro do jovem sem rumo” só fosse de fato ouvido com o silêncio das tomadas sem áudio ou edição.

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