A epidemia, um conto de Aparecida Vilaça e Francisco Vilaça Gaspar

A epidemia, um conto de Aparecida Vilaça e Francisco Vilaça Gaspar
Ilustração de Paloma Ronai

 

Parte I – O lago

 

Luli é uma menina de cabelos curtos, olhos pequenos, sorriso largo, membros extensos e manchas vermelhas pelo corpo. Tem treze anos. Como as outras meninas e meninos de sua aldeia, gostava de banhar-se no rio. Entretanto, os outros meninos e meninas não gostavam de se banhar com ela. Suas manchas tinham sido causadas, de acordo com os mais velhos, por sua mãe não ter respeitado os tabus alimentares na sua gestação.

Mesmo tendo ouvido, desde pequena, que o lago rio acima era um lugar muito perigoso, pois lá moravam uma grande cobra e alguns jacarés, Luli ia sempre para lá. Sozinha, arrastava a sua pequena canoa pelo pedaço de terra que separava o lago do rio na seca, e seguia andando com a água pela cintura. Os jacarés que lá moravam nunca se importaram com ela, banhando-se ao sol, fingindo-se de troncos, esperando uma capivara desaventurada vir se refrescar na margem para ser abocanhada. Mas, por segurança, Luli nunca mergulhava no lago, usando sempre a canoa para atravessá-lo.

No meio do lago ficava a sua balsa, feita de galhos amarrados com cipós. Ali ela passava horas sem pisar na terra, salvo por algumas expedições até as margens para conseguir iscas para pescar piabas. Lá mesmo, em sua pequena ilha flutuante, fazia uma fogueirinha para assar e comer uma parte dos peixes e, claro, espantar os mosquitos. Aquela era a terceira balsa que fizera, pois as últimas duas haviam se perdido nas cheias, quando o rio subia e se juntava à lagoa. Dessa vez caprichara em sua construção. Conseguiu seis galhos grandes, que amarrou com cipó e linhada de pesca, passou caucho nas juntas, para que entrasse menos água, e improvisou uma âncora com uma pedra. Pela primeira vez fizera um telhado com folhas de palmeira, o que a permitia assar seus peixes mesmo com chuva. Genuinamente orgulhosa de seu trabalho, não se cansava de admirar a balsa.

Quando não conseguia uma canoa sem uso para ir até o lago, Luli deixava as suas roupas na margem do rio que banhava a aldeia e nadava até o outro lado, onde subia em uma árvore grande, que lhe servia de trampolim. E assim se passavam os dias.

Certo dia, voltando do lago, Luli parou para brincar com as suas irmãs, que ajudavam a mãe na lavagem de roupas à beira do rio. Só mesmo elas não se importavam em banhar-se com Luli. Sua mãe, Aldilene, aproveitou para pedir a sua ajuda, e lhe entregou um pedaço de sabão azul e uma camisa vermelha de mangas curtas, abotoada na frente. Com água pela cintura, Luli reparou que a camisa estava desbotando, pois a água em torno dela estava vermelha. Torceu-a e colocou-a sobre a canoa emborcada na beira do rio, que servia de suporte para as lavadeiras e seus apetrechos. Afastou-se um pouco da margem e mergulhou até o fundo, para molhar os cabelos. Ao emergir e olhar novamente para a água, supreendeu-se por ela continuar vermelha. Achou que estava ferida e gritou por sua mãe. Aldilene largou na canoa o lençol que torcia com a ajuda de uma das filhas e foi até ela. Retirou-a da água e colocou-a de pé na margem para examinar o seu corpo e descobrir o que se passava. Logo um sorriso iluminou o seu rosto: o sangue escorria por suas coxas. Luli menstruara pela primeira vez.

Já em casa, sua mãe lhe explicou que iriam começar os preparativos para a sua reclusão, pois a primeira menstruação de uma moça exige muitos cuidados. Caso contrário, a forma humana da chuva, furiosa, cobriria a terra de água. Prepararam um espaço exclusivo para ela, uma espécie de casa dentro da casa. Sobre uma esteira no chão, colocaram de pé outra ainda maior, enrolada de modo a formar uma espécie tronco cônico oco, fechada em cima, mas aberta da base até mais ou menos a altura de Luli sentada. O seu trançado imitava a cauda do jaguar.

Logo chegaram sua mãe, sua avó e sua irmã mais velha, trazendo-lhe uma cumbuca com um caldo de peixe magro e farinha, que deveria comer longe do olhar dos homens. Ao ouvir a filha reclamar da comida insossa, Aldilene sentou-se à sua frente para explicar que, com a menstruação, ela havia perdido todas as pedras que levava dentro de seu corpo, que tinham sido colocadas ali por um xamã quando ela era bebê. Eram as vacinas para os alimentos, que a permitiam comer todos eles sem adoecer. Teria que aguardar o ritual que marcaria o final da sua reclusão para receber novas pedras e aí então estaria liberada. Até lá não poderia tampouco ter contato com a luz do sol, pois a sua pele ficaria branca como a de um recém-nascido.

O que mais aborrecia Luli, entretanto, era saber que, ao sair dali, seria oferecida como esposa para um rapaz, aquele que a carregasse por mais tempo nas costas no ritual. “Como as qualidades de seu pretendente poderiam ser medidas por sua capacidade em carregá-la como uma cesta?”, pensava em sua cabana. Ao sair da reclusão, teria que deixar de fazer tudo o que mais gostava na vida, que era ir até a sua pequenina casa no lago e passar os dias pescando. Daquele momento em diante, teria que se dedicar a atividades exclusivamente femininas, como preparar mingau de banana e cozinhar os animais caçados por seu marido, o carregador de cesto, além de lavar as suas roupas.

Esses pensamentos e a comida sem graça a deixavam triste e calada. Todos os dias pareciam iguais. Embora ouvisse toda a conversa animada das mulheres da casa, só lhe davam atenção no momento em que vinham lhe trazer as refeições. Passava o seu tempo pensando nas melhorias que poderia fazer em sua ilha. Se o seu futuro marido colaborasse e conseguisse alguns galhos bem retos e muitas folhas de palmeira, poderia ampliá-la para ter espaço para colocar uma rede e cobri-la com um aconchegante telhado de palha trançada.

Assim que a sua menstruação cessou completamente, cinco dias depois da lua nova, seu pai levou-a nas costas até o rio para que se banhasse. Luli aproveitou para mergulhar até o fundo e enfiar os dedos por entre a areia.

Passado mais de um mês, começaram os preparativos para a sua saída da reclusão. Seu pai e seu tio confeccionaram para ela dois pequenos bancos com desenhos em vermelho e preto, um para se sentar e outro para colocar os pés. Na véspera de sua saída, as mulheres pintaram o seu corpo com urucum e jenipapo. No dia seguinte, colocaram sobre a sua cabeça um grande chapéu cônico de palha, que lhe cobria os olhos, e vestiram-na com uma saia comprida também de palha. Seu pai a carregou nas costas até a casa ritual, no meio da aldeia, e a sentou no banquinho.

No centro dessa casa sem paredes, cercada por todos os parentes e vizinhos, além de alguns visitantes de outras aldeias, Luli se sentia um pouco distante, como se estivesse vendo toda aquela cena do alto. Seu pensamento estava no lago. Se pudesse remaria para lá naquele instante, deixando tudo aquilo para trás.

Os cantos femininos se intensificaram e logo se aproximou o primeiro pretendente, um jovem baixinho e atarracado, com braços fortes e mãos enormes. Luli percebeu que, como estava com o corpo todo pintado, as suas manchas ficavam menos visíveis. O rapaz à sua frente, tendo à cabeça uma grande tipoia de palha que lhe caía pelas costas, foi o primeiro homem a olhá-la com verdadeiro desejo, desprovido de medo de contágio. Luli acomodou os seus joelhos flexionados na extremidade inferior da tipoia e agarrou o pescoço do rapaz, que começou a dançar. Descobriu então que a sensação de ser carregada assim não era bem a de um cesto, mas a de um animal caçado, inerte, nas costas do caçador, colado em seu corpo. Em seguida, os xamãs inalaram o rapé cerimonial – um pó de tabaco misturado com Virola macerada, potente alucinógeno – e os seus espíritos auxiliares começaram a chegar, cantando músicas junto com as mulheres. Então pediram a Luli que também inalasse o rapé. Embriagada e tonta, ela perdeu os sentidos e desmaiou.

Luli sonhou que estava em sua balsa no lago e via de longe se aproximar uma canoa com um homem branco, magro e alto, vestido com roupas rasgadas e com horríveis marcas de feridas na pele. Quando chegou perto dela, colocou o remo dentro da canoa e falou em português:

– “Menina, onde estou? Isso é um lago ou um igapó? Deve ser bom para pescar! Bela balsa! Foi você quem construiu? E essas suas pintas? Coçam? Não? Que bom! A verdade é que não me sinto muito bem. Tenho a impressão de que devo estar morto, ou quase. Não se assuste! Escute, tem um garimpo rio acima. Estão todos doentes, todos estamos. Começou há uns dez dias, ou duas semanas. Eu já não sei. Estava deitado na rede há muitos dias, piorando a cada dia. Ninguém lá consegue se levantar, não dá para remar. Quando eu morrer – acho que não estaríamos tendo essa conversa se eu fosse sobreviver -, eles lá no acampamento não vão cavar uma cova, vão jogar o meu corpo no rio. Escute menina! Isso é muito importante! Se algum cadáver descer o rio e passar pela aldeia, vocês devem incendiar, tacar fogo, de longe. Jogar gasolina, muita gasolina. Deixem queimar bem, até virar carvão. É uma doença muito ruim.”

A voz do homem foi ficando cada vez mais distante e, por fim, Luli despertou. Ao abrir os olhos, percebeu que a música tinha parado e muitas pessoas estavam se encaminhando em direção à floresta, com quatro homens à frente puxando um cadáver enrolado em uma rede. Assustada, gritou para que eles voltassem, contando sobre o aviso que recebera no sonho. Mas era tarde demais; já estavam longe.

Terminado o sepultamento, com todos comentando sobre o ocorrido, enquanto se lavavam no rio para tirar a sujeira do morto, o pai de Luli a levou em suas costas novamente para a reclusão. O  ritual teria que ser repetido um mês depois, pois aquele não tinha dado certo. O aparecimento de um cadáver, ainda mais de um branco, era um mau augúrio.

Dez dias depois, vários cachorros da aldeia morreram. Algumas pessoas começaram a tossir e logo caíram prostradas em suas redes, com febre. Em seguida, apareciam chagas em seus corpos, que inflamavam e se tornavam úlceras. Em sua casa, somente duas de suas irmãs mais novas pareciam ainda saudáveis, e se esforçavam para preparar comida para os doentes e caldo de peixe para ela. Uma a uma as pessoas começaram a morrer. Primeiro, os rapazes que enterraram o branco, e logo muitos outros. Como já não tinham forças para enterrar os corpos, jogavam-nos no rio, para serem levados pela correnteza. Luli via tudo se passar do interior de sua esteira. Mesmo quando as suas irmãs adoeceram, ela se manteve saudável, embora fraca demais para ajudar doentes e temerosa das tempestades que poderiam ocorrer se deixasse a sua reclusão. Em meio aos seus muitos pensamentos, perguntou-se se as suas pintas finalmente teriam mostrado alguma utilidade, protegendo-a da doença.

Deitou-se na esteira e lá ficou, o mais quieta que pode, tentando não atrair para si a ira do homem branco que trouxera para eles aquela doença. Dias depois, já sem forças nem mesmo para se sentar, ouviu ao longe o som de uma lancha a motor.

 

Parte II – A biblioteca

 

Evangelista dos Anjos Nunes não gostava de calor nem de mosquitos. Para evitá-los, comia todos os dias um dente de alho cru no café da manhã, o que lhe dava um hálito horroroso. Estava sentado na popa da lancha da Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Sesai, subindo o rio. O vento proporcionado pelo deslocamento da lancha de 15 pés, com um motor de popa de 60 hp, acabaria assim que chegassem ao seu destino. Em provavelmente duas horas, voltariam o calor e os mosquitos.

Evangelista nasceu em uma família abastada de Manaus. Seu avô havia perdido e ganhado muito dinheiro vendendo borracha para os americanos durante a guerra. Com o fim da guerra, decidiu investir as economias da família em um garimpo de ouro no rio Solimões, o que se mostrou uma terrível decisão financeira, pois uma enchente destruiu a maior parte de seus equipamentos, e uma febre, que se seguiu a ela, matou quinze garimpeiros. Seu pai, Reinaldo dos Anjos Nunes, trabalhara como diretor em uma companhia de transportes fluviais até a sua falência. Mesmo assim, conseguiu que a família conservasse a antiga casa em estilo francês, que tinha sido comprada por seu pai em seu tempo áureo na seringa. Era uma das poucas casas antigas que restaram no bairro Santa Luzia.

Com seus cinco irmãos, Evangelista teve uma infância confortável, até mesmo com um certo luxo. Estudara no melhor colégio de Manaus, onde aprendeu inglês e francês. Desde criança, era fascinado pela sala da casa usada como biblioteca, um cômodo escuro onde ninguém entrava e que cheirava a papel velho. Tinha sido montada por seu avô para impressionar os compradores americanos que chegavam para visitá-lo. Embora o avô não se interessasse por livros, sabia que pessoas de bem tinham bibliotecas com livros encadernados em couro, com títulos em letras douradas.

Quando sua mãe estava na cozinha e seus irmãos brincando na rua, Evangelista aproveitava para entrar na biblioteca e olhar as estantes, passando a mão na lombada dos livros e tirando um ou outro para cheirar. Assim que aprendeu a ler, começou a passar as suas horas vagas na biblioteca, e acabou por se encantar pelos escritores vitorianos, talvez porque fossem aqueles que estavam nas estantes mais baixas e, portanto, ao seu alcance.

O seu autor favorito era Charles Dickens. Leu tantas vezes Um conto de Natal, que o livro tinha as marcas de seus pequenos dedos nas páginas. Ficava imaginando o velho mau do conto, Scrooge, um pouco como seu avô, um coronel da borracha, que provavelmente, assim como os outros seringalistas, cometera inúmeras atrocidades. O que seria desses coronéis avarentos e perversos frente ao aparecimento dos três fantasmas na noite de Natal? O fantasma do passado levou Scrooge à sua infância solitária, o do presente mostrou a ele como viviam as pessoas que ele conhecia e desprezava, e o do futuro lhe mostrou o seu túmulo em uma parte abandonada do cemitério. Só não entendia muito bem porque Scrooge tinha tido uma chance de mudar o seu destino, depois de ter feito tão mal às pessoas. E isso o fazia reler mais uma vez, para tentar entender.

Aos 15 anos, quando estava se preparando para ingressar no segundo grau, seus cinco irmãos organizaram uma competição de natação: deveriam nadar do cais até uma boia no meio do rio e voltar. Quem chegasse primeiro ganharia um couro de onça, que encontraram em uma casa abandonada na rua. Todos mergulharam, menos Evangelista, que ficou confortavelmente no porto pescando bagres, recusando-se a participar daquela competição, dentre outras razões por não ter qualquer interesse no couro velho de onça. No dia seguinte, entretanto, ele foi acometido por uma terrível febre, e seu corpo ficou coberto de manchas vermelhas. Seu pai não poupou dinheiro com médicos e tratamentos, mas não se chegava a um diagnóstico. Parecia ser algo entre febre tifoide e malária.

Por dez dias Evangelista ardeu em seu quarto ou na banheira, quando, sem saber mais o que fazer, sua mãe tentava abaixar a sua temperatura. Esteve desacordado boa parte do tempo e teve diversas convulsões. Desesperados, seus pais chamaram alguns curandeiros que viviam nos arredores da cidade, oriundos de aldeias indígenas e quilombos. Não tiveram sucesso. Diante do estado desalentador do pobre jovem, acabaram por chamar um padre no domingo de Páscoa, para lhe dar a extrema unção. Alguns dias depois, contudo, tão abruptamente como começara, a sua febre passou. Sua recuperação, entretanto, foi gradual. Somente na semana seguinte voltou a falar. O episódio de causa misteriosa não deixou nenhuma sequela mental, mas ele perdeu todos os pelos do seu corpo e a capacidade de suar. As manchas vermelhas que cobriam a sua pele eventualmente regrediram, ficando quase imperceptíveis. Alguns anos mais tarde, descobriria que a febre também o deixara infértil.

De seus delírios febris, Evangelista voltou decidido a seguir uma carreira médica. Levou um ano para se recuperar totalmente e então prestou exame para um cursinho preparatório para medicina. Como tinha perdido muitos de seus amigos no ano em que passou acamado, não tinha muito o que fazer nos finais de semana, e se pôs a estudar avidamente. Como resultado, passou em terceiro lugar para o curso de medicina da UFAM, que concluiu seis anos depois, com especialização em medicina tropical.

Seu pai montou para ele um consultório no centro da cidade. Os pacientes eram muitos, vindos geralmente de expedições na floresta, nas quais contraíam as mais diferentes moléstias. Evangelista tornou-se um dos maiores especialistas em febre amarela e malária da região Norte, e chegava a receber pacientes de Belém, Rio Branco, Porto Velho e Boa Vista. A decoração do consultório era sempre comentada pelos pacientes, que elogiavam  a sobriedade das estantes em madeira escura e as belas gravuras abstratas que enfeitavam as paredes. No canto, ao lado da porta, havia uma pequena mesa de jatobá maciço, onde se sentava Elvira, a secretária, uma bela jovem manauara de cabelos pretos e rosto largo, baixinha e forte, com olhos bem pretos. Certamente era descendente de indígenas da região, mas Evangelista jamais lhe perguntara isso diretamente, pois ela mostrava-se visivelmente incomodada quando outras pessoas sugeriam tal relação. Trajava geralmente saia e blusa de botões, e sempre os mesmos sapatos de couro preto baixos, já gastos, com uma bolsa a tiracolo de plástico imitando couro, marrom clara. Chegava, pendurava a bolsa na cadeira, retocava o batom em um espelhinho, ligava o computador e preparava um café na cafeteira que ficava na estante ao lado de sua mesa. Levava então uma xícara de café bem quente ao doutor, batendo antes levemente em sua porta. A sua entrada sempre deixava Evangelista um pouco desconcertado, pois, tendo vivido entre cinco irmãos homens, não tinha muito trato com mulheres. Além do mais, nutria um afeto especial por Elvira, e volta e meia pedia-lhe alguma coisa, só para olhá-la um pouco mais.

Com a morte de seu pai, todos os seus irmãos foram, aos poucos, emigrando para o sudeste, onde abriram negócios e constituíram família. Após o casamento do seu irmão mais novo, em Ribeirão Preto, Evangelista mudou-se para a casa vazia dos pais. Dias depois, tomou coragem e pediu a mão de Elvira em casamento. Para a sua surpresa, ela aceitou.

O casamento ocorreu de modo discreto, no cartório perto de sua casa. Elvira trajava um vestido branco liso, sapatos igualmente brancos e um arranjo de flores amarelas na cabeça. Evangelista usou o seu único terno, que seu pai lhe dera no dia de sua formatura. Nos primeiros meses de casados, Elvira se esmerou nos cuidados da casa e em preparar quitutes para quando o marido chegasse para o jantar. Ela mesma arranjou uma secretária nova para o consultório, uma senhora de sessenta anos, de rosto marcado e corpo maltratado. Não queria correr riscos.

Com o passar do tempo, entretanto, logo depois que começou a frequentar a igreja pentecostal do bairro, Jesus Nosso Salvador que é o Único Mesmo, Elvira passou a revelar uma faceta desconhecida para o marido. Influenciada pela teologia da prosperidade, pagava dízimos cada vez mais altos e, nos cultos, exibia roupas, sapatos e bolsas de marca, encomendados em São Paulo, para mostrar aos irmãos em Cristo a força da sua fé. Nada disso agradava a Evangelista, um homem ateu e de hábitos simples, que tinha como único passatempo ler os livros da biblioteca que herdara e pescar bagres no rio próximo de sua casa. Cada vez mais isolava-se em seu canto para ficar longe da mulher.

Certa noite, chegou a uma seção que parecia ter sido a única à qual seu avô havia dedicado algum interesse, pois os livros tinham marcações de leitura. A seção era composta por obras dos primeiros viajantes estrangeiros que chegaram ao Brasil e adentraram os seus sertões. Começou lendo os relatos de Hans Staden, Thévet, Adalberto da Prússia e Saint-Hilaire, até chegar às Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. Depois de meses concentrado nessas leituras, Evangelista chegou ao que parecia ser uma subseção, dedicada não mais a relatos de viagem, mas a estudos de mitologia indígena. Resolveu começar por um livro francês datado de 1964, por ser justamente a data de seu nascimento. Chamava-se Le Cru et le Cuit. Inicialmente, não conseguiu ir muito longe, pois o seu francês escolar estava muito aquém da linguagem sofisticada do autor. Mas, lendo um pouco todas as noites, com um dicionário aberto ao lado, conseguiu avançar. Entreteve-se particularmente com a leitura dos mitos de origem do fogo, em que um jovem em apuros é levado por uma onça macho, que o adota como filho, embora a sua esposa, uma índia, recuse-se a ser a mãe daquele “filho alheio”. Passado algum tempo, o jovem mata a madrasta e volta para a sua aldeia. Pensando que ele estivesse morto, a sua mãe verdadeira demora a lhe reconhecer. No dia seguinte, todos vão até a casa da onça para roubar o fogo. E a partir daí os índios podem comer carne moqueada e se aquecer na fogueira.

Tão envolvido Evangelista ficou nessas leituras, e tão interessado pelos índios, que decidiu fechar o consultório e oferecer-se para uma vaga aberta na Sesai de Lábrea, a 856 km de Manaus. Não se pode negar que foi também um modo que arrumou para ficar o máximo de tempo longe de Elvira, e dos cultos de oração e louvor que organizava. Acabou comprando uma casa na pequena cidade. A cada quinze dias, nos fins de semana, voltava de avião para Manaus e organizava um churrasco com os antigos amigos da época da faculdade de medicina, onde, para a sua infelicidade, sua esposa só permitia a entrada de cerveja sem álcool.

Certamente não estava preparado para as agruras da vida no mato, especialmente para o calor e para os mosquitos. Uma semana antes da viagem em que se encontrava agora, a Secretaria de Saúde tinha sido informada, por um ribeirinho, sobre diversos corpos que desciam o rio, todos com horríveis marcas na pele. O mesmo ribeirinho tinha percebido também um estranho movimento de urubus sobrevoando a região onde moravam os índios. Designado por seu chefe para atender o caso, Evangelista teve dificuldades em arranjar dois técnicos de enfermagem disponíveis a acompanhá-lo, pois todos os que ouviram o relato do ribeirinho encontraram uma desculpa para permanecer na cidade. Corria o boato de que os índios daquela aldeia tinham no passado uma terrível doença de pele, e temiam que algum deles, por vingança, a tivesse reavivado. Por fim, conseguiu duas mulheres, cuja aparência faziam-no lembrar de Elvira.

Equiparam o barco com uma maca, soros, anti-inflamatórios, analgésicos e um grande estoque de amoxicilina injetável. Ao chegarem na aldeia, depois de quatro horas de viagem subindo o rio Purus, perceberam que a situação era muito pior do que imaginaram. Antes mesmo de descer do barco, sentiram o cheiro podre e se assustaram com a quantidade de urubus empoleirados nas árvores próximas à aldeia, assim como das rãs que se aglomeravam na beira do porto. Na rampa que ligava o porto às casas, encontraram cadáveres no caminho. Evangelista contou pelo menos trinta deles, entre homens, mulheres e crianças. Todos tinham muitas marcas na pele, feridas abertas, que agora estavam infestadas de vermes e larvas. Os que não estavam de bruços tiveram seus olhos comidos pelos urubus.

Evangelista colocou a sua máscara e luvas de proteção. As duas técnicas correram apavoradas para a lancha e começaram a rezar. De qualquer forma, não havia muito trabalho para elas, já que não parecia haver ninguém vivo. Com calma e com o auxílio de um galho, Evangelista foi avaliar os corpos. Em todos os seus anos de trabalho nunca vira uma doença daquela gravidade. O que via o fazia lembrar-se de seus estudos sobre as epidemias da época da borracha, das doenças que matavam centenas de pessoas ao mesmo tempo: sarampo, varíola, varicela e gripe. Tudo levava a crer que estava diante de uma nova epidemia. Colheu um pouco de sangue de um corpo que estava menos podre, guardando-o em um isopor com gelo para ser testado em Manaus.

Ao caminhar pelas casas vazias, Evangelista ouviu um choro baixinho, que o surpreendeu. Entrou na casa e encontrou, debaixo de uma espécie de cabana formada por uma esteira, uma menina. Ela estava fraca demais para andar ou mesmo para se sentar. Parecia desidratada e tinha várias manchas vermelhas no corpo. Mas estava viva, o que já era uma pequena vitória. As manchas o lembravam das suas próprias, que adquiriu com a estranha febre da adolescência. Entretanto, pelo seu olhar clínico, aquelas indicavam uma antiga infecção, uma espécie de sífilis cutânea, provocada pela bactéria Treponema pallidum. Pôs-se a pensar se haveria alguma relação entre a infecção bacteriana e o fato da menina ter sobrevivido, e decidiu lançar essa pergunta no grupo de  conversa do seus  antigos colegas da faculdade.

Como médico, Evangelista sabia que não havia o que ser feito naquela aldeia, e decidiu levar consigo a menina para a cidade. No começo, ela encontrou forças para reagir e agarrou-se a um dos pilares da casa. Tinha medo dos brancos. Evangelista, por fim, convenceu as enfermeiras a ajudar, argumentado que Jesus caminhara em meio aos leprosos e que jamais abandonaria um doente. As moças tiveram mais jeito para conversar com ela, convencendo-a a ir com eles. Deitaram-na na maca com o soro e, com cuidado, carregaram-na para o barco.

 

Parte III – A onça

 

Luli foi direto para o hospital da Aeronáutica, onde, depois de vários exames, constataram que ela estava plenamente saudável, não fosse pela desidratação. Entretanto, deveria ficar em observação até que tivessem certeza do que acontecera na aldeia. As enfermeiras do hospital se afeiçoaram a Luli, principalmente depois de ouvirem as conversas das duas técnicas de enfermagem na cafeteria.

– “Um irmão muito corajoso, esse doutor Evangelista”, dizia a mais baixinha delas.

– “A pobre garota estava sozinha com os mortos. Só Deus sabe a quantos dias”, completava a segunda que era um pouco mais alta e mais atarracada.

– “Ele pulou da lancha buscando sobreviventes antes mesmo dela parar completamente. Aquela doença horrível não tocou no doutor Evangelista, pois ele é um homem ungido pelo Senhor,” acrescentou a primeira.

– “A pobre garota foi retirada de uma pilha de corpos”, continuou a segunda.

– “E ele ainda fez tudo isso falando em nome de Jesus”, acrescentou a primeira

– “Amém”, disseram em coro os que as escutavam.

Evangelista, um ateu convicto, daquele dia em diante passou a ser olhado com enorme respeito e admiração pelo quadro profundamente religioso do hospital, sendo constantemente convidado a participar de cultos e sessões de oração, que ele educadamente recusava, dando uma desculpa de trabalho.

As enfermeiras passavam diversas vezes por dia pelo leito de Luli, sempre trazendo biscoitos e refresco. Evangelista, aquele estranho homem careca e desprovido de pelos, que lhe lembrava um peixe – um bagre ou um surubim? – e tinha salvado a sua vida, a visitava todos os dias, durante a chuva da tarde. Ele se sentava na cadeira ao lado de sua cama, entregava-lhe um achocolatado que trazia dentro de sua pasta de couro marrom, tomava o café que pegava na recepção e conversavam por cerca de uma hora. As enfermeiras se revezavam para ouvir pela janela a conversa dos dois. Evangelista Surubim – definitivamente um surubim, porque tinha aquelas manchas arredondadas – lhe contava sobre a sua vida em Manaus, a cidade dos grandes mercados de açaí, em que todos os rios se juntam. Luli, aos poucos, foi falando de sua aldeia, e se deleitava ao contar as histórias de sua pequena casa na lagoa, e sobre como era difícil achar as folhas apropriadas para construir um telhado sem que este apodrecesse. Contou-lhe também que quase se casara com um primo, não fosse pelo sonho com o fantasma das chagas, quando cheirou o rapé do xamã.

No 20º dia de internação, Evangelista aproximou-se de Luli com um olhar grave, abraçado à sua pasta. O resultado do exame do sangue que coletara saíra naquele dia, e dera negativo para as principais moléstias tropicas. A autopsia de um dos corpos, realizada pelos técnicos do Instituto Médico Legal de Manaus, foi igualmente inconclusiva. Sentado ao lado de Luli, Evangelista explicou-lhe que trazia consigo fotos dos cadáveres, e perguntou-lhe se teria coragem de olhar, para reconhecê-los. Chorando sem parar, Luli examinou aqueles corpos deformados, reconhecendo com dificuldade os seus avós, tios e primos, mas não viu seu pai, sua mãe ou suas irmãs. Será que estariam vivos? Sabia que era improvável, pois não a teriam abandonado se pudessem ter fugido, mas era igualmente provável que tivessem sido devorados por algum animal antes da chegada da segunda equipe à aldeia, aquela que fez as fotos e levou um dos cadáveres para análise.

Quando Evangelista levantou-se para ir embora, ao entardecer, cinco pequeninos dedos seguraram a sua mão com força. Luli sentia que estava completamente sozinha no mundo. Percebendo o tamanho do fardo que aquela pequena fora obrigada a carregar, Evangelista decidiu passar a noite ao seu lado. Para distraí-la, contou a sua história de infância predileta, Um conto de Natal, de Dickens, fazendo algumas transformações para inserir detalhes da floresta tropical. Scrooge, por exemplo, foi encarnado pelo seu avô (tal qual ele imaginara). Os fantasmas do passado, presente e futuro, que vieram visitá-lo, tornaram-se figuras do folclore regional: o saci, a mula-sem-cabeça e o boto. Ao final, pediram uma pizza família, em um restaurante vizinho, que na promoção do dia vinha acompanhada de um refrigerante grande. Quando Luli  adormeceu sem largar a sua mão, Evangelista improvisou uma pequena cama com duas cadeiras e dormiu.

Quando Luli teve alta, dois dias depois, Evangelista tinha tomado uma decisão: propôs a ela que fosse com ele para Lábrea. Caso se adaptasse e quisesse, ele a adotaria oficialmente como filha. Os enfermeiros, médicos e o corpo técnico do hospital organizaram uma pequena despedida. Evangelista foi cumprimentado e elogiado por todos. Duas enfermeiras pediram a sua benção e uma técnica pediu que ele fosse padrinho de seu primeiro filho. Ele havia se tornado quase um santo nas conversas de corredor daquele hospital, que a cada dia aumentavam seus feitos e atos heroicos. Um amigo médico chegou a lhe perguntar se de fato ele arrancara a menina de dentro da barriga de uma sucuri.

Luli recebeu muitos beijos e deram-lhe três mudas de roupa, além de uma dúzia de absorventes, pois ela tinha menstruado um dia antes, na lua nova. Colocaram tudo em uma bela mochila vermelha, que as enfermeiras compraram por meio de  uma vaquinha. Luli pendurou a mochila em seus ombros antes de dar a mão para Evangelista e se encaminhar com ele para a porta.

Luli adaptou-se bem à casa de Lábrea, onde passava os dias sozinha, vendo televisão e esperando a chegada de Evangelista do trabalho. Seu padrasto enchia a casa de mantimentos para que nada lhe faltasse, e ela mesma fazia o seu almoço, alternando peixe com pirão e cozido de carne com macaxeira. Antes de dormir, Evangelista ajudava Luli na leitura de algum de seus livros favoritos, explicando a ela o significado das palavras desconhecidas.

Assim se passaram dois meses, até que, por volta de meio dia da véspera de Natal, quando Evangelista estava de plantão no hospital, ajudando com casos de uma forte gripe que tinha atingindo os habitantes da região, a porta se abriu. Era Elvira, que Luli conhecia de nome, embora nunca a tivesse encontrado. Elvira logo imaginou que Luli seria a nova empregada do marido. Deu a ela a sua maleta e mandou que arrumasse as roupas no armário. Depois, mandou que fosse com ela para a cozinha, para descascar cebola e alho para temperarem o pernil para a ceia. Sem entender muito o que se passava, Luli achou melhor obedecer. Ao chegar e encontrar a mulher na cozinha com Luli, Evangelista decidiu deixar para depois a conversa sobre os seus planos de adotarem Luli. Embora soubesse que a mulher tinha aversão a índios, imaginou que pudesse se afeiçoar a Luli, pois sabia que não poderiam ter filhos.

No dia seguinte, ao finalmente explicar para ela os seus planos, teve que lidar com a ira contida da mulher, que disse não aceitar de modo algum a menina como

filha. Ao ver que o marido não mudaria de ideia, entretanto, Elvira fingiu ter se conformado e, para provar as suas boas intenções, disse que passaria um tempo em Lábrea para ajudar na adaptação da moça. Quando Evangelista saiu para o hospital, no dia seguinte pela manhã, Elvira sintonizou o rádio a todo volume em hinos religiosos, para acordar Luli que, ainda em jejum, teve que arrumar a casa. Na hora do almoço, Elvira chamou Luli e preparou dois pratos com carne, arroz, feijão e farinha, que colocou sobre a mesa da cozinha. Fez então uma pequena prece:

– “Senhor mostrai que essa filha alheia é digna de vosso alimento. Iluminai-a com o fervor do Espirito Santo”.

Em seguida, abriu a sua Bíblia, escolheu aleatoriamente uma passagem para ler em voz alta, e pediu a Luli que identificasse o capítulo e o versículo. Diante do silêncio da menina, Elvira, ainda olhando para a Bíblia disse:

– “Não sabes, filha alheia? Sinto que a tua fé está um pouco abalada. Permita-me te ajudar a se concentrar mais no Senhor!”

Para cada resposta errada, basicamente todas, Elvira tirou um pedaço de carne do prato de Luli e colocou em seu próprio. As perguntas continuaram até Luli ficar apenas com arroz, feijão, um pouco de farinha e uma banana. Elvira fechou a Bíblia e já estava saindo da cozinha quando reparou que a banana cativava o olhar da menina.

– “Ah! claro, já ia me esquecendo! Quais são as doze tribos de Israel? Também não sabes? É uma pena, isso é muito importante. Tu saberás quando deixares o Senhor entrar em teu coração”

Elvira se levantou, pegou a banana do prato de Luli e foi comer o seu prato cheio de carne na sala, sozinha.

Quando finalmente pode ir para o seu quartinho de empregada à noite, exausta e triste, Luli levou o seu pensamento à sua aldeia e à sua pequena casa no lago. E pôs-se a imaginar que sua mãe, seu pai e suas irmãs poderiam estar vivos, pois as suas fotos não estavam entre os mortos. Mas para onde teriam ido? Por que a teriam deixado sozinha ali? Fechou os olhos com força e torceu para sonhar com eles. Mas os sonhos que chegaram foram pesadelos horríveis, com os cadáveres das fotos e com aquele morto apodrecido que conversara com ela. Quando Evangelista voltou à tarde para casa, Luli tentou sair do seu quarto, mas a porta estava trancada por fora. Sem querer gritar, preferiu chorar até dormir.

Luli acordou novamente com os hinos em alto volume e com muita fome. Não encontrou Evangelista, que já havia saído. Elvira disse-lhe que o marido recebera um chamado urgente da Secretaria de Saúde e fora para Manaus. Ela estava encarregada da casa e de Luli.

Na hora do almoço, Luli novamente encontrou dois pratos cheios de comida na cozinha. Elvira fez as suas preces e abriu a Bíblia:

– “ Vamos começar com uma fácil hoje, filha alheia! Quais foram as doze pragas que o Senhor lançou sobre os egípcios? Pode pensar com calma.”

Enquanto Luli olhava para os pratos, perplexa com mais uma pergunta que não fazia ideia de como responder, Elvira foi até o armário e pegou um jarro cheio de pimentas.

– “Não? Nenhuma ideia? Vou dar uma ajuda. Primeira praga: o rio virou sangue. Agora só faltam onze. Não sabes? Tu tens definitivamente o capeta no corpo, mas o Espírito Santo irá te purificar com o meu fervor. Um pouco desse unguento vai te ajudar na próxima vez!”

Elvira encheu uma colher de sopa de pimenta e derramou no prato de Luli. As perguntas e as colheradas de pimenta continuaram até o vidro de se esvaziar. Elvira então foi comer sozinha. Sem resistir à comida, na primeira colherada os olhos de Luli se encherem de lágrimas e a sua língua ferveu. Jogou tudo no lixo.

No terceiro dia, Luli chegou à cozinha após passar a manhã limpando os armários da casa. Novamente os dois pratos servidos, a Bíblia aberta, as perguntas e a carne de porco indo do seu prato para o de Elvira, sob o seu silêncio constrangido.  Logo após o almoço, sabendo que naquele horário Elvira estaria grudada na televisão, Luli tomou coragem e abriu a geladeira para pegar um pedaço da carne suína, que a lembrava dos queixadas de sua aldeia. Elvira, ouvindo passos na cozinha, foi até lá e fechou a porta da geladeira nos pequeninos dedos que seguravam um belo pedaço de pernil. Luli sentiu muita dor, mas não gritou.

– “Sabes? Um dos dez mandamentos é: não roubarás!”

E ainda pressionando com força a porta da geladeira nos dedos da menina:

– “Filha alheia, espero que um dia tu entendas que muita comida sem Deus, é nada, e que nada, com Deus, é muito!”

Segurando o choro, Luli largou a carne, desculpou-se e voltou para o seu quarto. Logo Elvira chamou-a pedindo o seu café. Cheia de raiva, Luli adicionou à bebida, bem fraca e doce, como ela gostava, todo o frasco de um remédio para dormir, que Evangelista lhe dera ainda no hospital, para ajudá-la com os seus horríveis pesadelos. O excesso de açúcar fez o remédio passar despercebido e, em menos de uma hora, Elvira, deitada no sofá, dormia pesadamente.

Vendo que Elvira não acordava com o hino em alto volume que tocava na chamada de seu celular, Luli decidiu ir até a geladeira novamente, não sem antes fazer um teste puxando com força o cabelo de Elvira. Nada. Começou por comer da carne de porco e um pouco de tudo o que encontrou na geladeira. Procurou nos armários e encontrou um pacote de biscoitos recheados, que comeu inteiro, deixando os restos caírem no tapete. Resolveu mudar o canal da televisão para ver alguma coisa mais divertida, de preferência um filme com animais gigantes, que pareciam os espíritos auxiliares dos xamãs. Quando se aproximou dos DVD´s de vida animal, que ficavam no aparador da TV, encontrou um vidro de rapé, provavelmente trazido por Evangelista de uma de suas viagens. Retirou a rolha que tampava o vidrinho e despejou um pouco do pó verde na palma de sua mão direita. Tampou uma das narinas, inalou e repetiu os gestos, até acabar o rapé. Como na festa, Luli desmaiou.

Viu então o mesmo branco que a visitara em sua iniciação, com a mesma aparência de morto, só que dessa vez levava em seu corpo uma enorme corrente de ferro. Nela estavam penduradas bateias de diversos tamanhos, peneiras, pás, bicames e um frasco com um líquido metálico, que parecia mercúrio. Disse-lhe que por toda a sua vida sonhara com ouro e eventualmente com diamantes. Delirante, vendera a pequena loja de roupas que tinha em Manaus e subira o Purus com mais cinco auxiliares. Tinha certeza de que algum deles o havia envenenado para roubar um punhado de pepitas que tinham encontrado. Deitado em sua rede enquanto os demais esperavam a sua morte, para terminar de dividir o seu espólio, percebeu que eles também estavam adoecendo. Até os ratos que infestavam o garimpo e comiam pela noite a comida, estavam cuspindo sangue e caindo pelos cantos. Quando, por fim, ele morreu, jogaram-no no rio, sem perceber que ele tinha engolido as cinco pepitas de ouro. Nesse momento do relato, o fantasma enfiou a mão por um buraco em sua barriga e entregou as pepitas para Luli. Em seguida, desapareceu.

Na sequência, entrou pela janela da sala, que estava aberta, um martim pescador que, aos poucos, foi tomando a forma de um homem, com o corpo manchado de pintas vermelhas, como o de Luli. Disse-lhe que era o ancestral de seu povo, e o maior xamã que já existira. Soprou um pouco de tabaco sobre a cabeça de Luli, e logo os dois estavam em uma canoa. Luli logo reconheceu o seu querido lago, só que agora cheio de casas – mais de vinte, ela avaliou -, cada uma com seu pequeno fogo. Seu avô então lhe disse que estavam no passado, e que aquele lago já fora a casa dele e de muitos outros parentes. Um certo dia tiveram que abandonar tudo para trabalhar para os patrões da borracha. O homem pintado virou pássaro novamente e Luli se viu de volta à sala da casa.

Do rapé que caíra sobre a mesa, saiu um pequeno homem, que cresceu até atingir cerca de meio metro. Fumou um cigarro Minister sem filtro, que trazia no bolso de sua bermuda, olhou o relógio e disse para Luli: sou teu tio Karaop e venho te mostrar o presente. Assoprou a fumaça sobre ela e logo os dois estavam no meio da floresta, em uma aldeia que ela não conhecia. Lá estavam a sua mãe, seu pai, suas irmãs e seus cunhados. Karaop disse que eles estavam vivos, mas ainda fracos e doentes. Tirou uma casca de árvore de sua bermuda e disse que, ralada e fervida, melhoraria as chagas e diminuiria os sintomas dos seus parentes. Voltaram para a sala. Ele ficou novamente pequeno e desapareceu no pó do rapé.

Der repente, saiu da televisão da sala um rapaz alto de cabelos compridos, com uma tatuagem de tambaqui no peito. Disse-lhe que se chamava Claudinei e que era neto da sua vizinha da aldeia, Jussara, que tinha se casado com um branco e que agora vivia em um garimpo no alto Purus. Viera lhe contar do futuro. Puxou um cigarro eletrônico da jaqueta e soprou a fumaça em Luli. Logo, os dois estavam em uma canoa no meio da lama. Luli reconheceu o seu lago, agora com um horrível cheiro de podre. Não se via mais a floresta, mas um extenso pasto, parte dele queimado. Luli perguntou por sua família e ele lhe mostrou o lugar onde estavam todos enterrados, em uma vala comum, na beira do rio. Chorando, Luli perguntou o que tinha ocorrido, pois logo antes, levada por Karaop, vira todos eles vivos. Claudinei lhe disse que, logo depois, pela falta de remédio, muitos mais tinham morrido. As áreas abandonadas pelos índios foram invadidas: primeiro, o lugar foi tomado pelo insuportável som de centenas de motosserras. Logo depois vieram dois tratores ligados por uma enorme corrente, arrancando do chão tudo o que cruzasse o seu caminho. Quando a madeira acabou, queimaram o que sobrou e, do solo devastado, fizeram um pasto. Alguns de seus parentes haviam sido mortos por capangas de um fazendeiro, por terem matado, com fome, um de seus bois. Claudinei era o único parente vivo que ainda sabia a língua, ensinada por sua falecida mãe. Os outros poucos que foram criados na cidade já não sabiam caçar, nem plantar, nem sonhar. De volta à sala, Luli viu Claudinei entrar na TV e desaparecer.

Desesperada, entendeu que tinha que ir embora correndo dali, para tentar mudar o futuro, como na história que Evangelista lhe contara. Encheu a mochila vermelha com suas poucas roupas e com tudo de comida que encontrou nos armários e na geladeira: biscoitos, achocolatados, bombons, carne seca, farinha. No armarinho do banheiro pegou todas as caixas de antibióticos que Evangelista guardava. Ajeitou as cinco pepitas de ouro que o fantasma lhe dera em seu sutiã, único presente que recebera de Elvira, que se incomodava com o movimento dos seus seios pela casa. Andou até o porto no centro de Lábrea e esperou por uma carona que a levasse rio acima. Enquanto esperava, encontrou um manauara conhecido em todo o rio por vender espingardas de caça usadas. Com suas cinco pepitas, quase 100 gramas de ouro, comprou 12 espingardas e 300 cartuchos, de 16, 20 e 28. Guardou tudo em uma caixa de papelão de bicicleta Caloi, que encontrou jogada no barracão do porto. Por fim, uma família de ribeirinhos, que conhecera quando vivia na aldeia, abrigou-a em sua chata, juntamente com o que pensaram ser a sua nova bicicleta, que cobriram com uma lona preta. Por três dias subiram o rio.

Deixaram-na no barranco que conduzia a uma antiga aldeia, onde os seringueiros afirmaram terem visto fumaça algumas semanas atrás. Não tinha certeza se seriam os seus parentes, mas era a sua única pista para chegar até eles. Sentada no meio da aldeia deserta com a sua caixa de bicicleta, viu alguns vultos se mexendo na floresta. Logo, algumas crianças saíram da mata, mas correram assustadas de volta, indo avisar os seus pais que o fantasma da filha tinha chegado com uma bicicleta nova. Aldilene correu até ela e a tocou. Não lhe pareceu um fantasma, mas ela esperou as suas primeiras palavras. Luli a chamou de mãe, com a voz de sempre, e a abraçou. Os outros foram se aproximando e tocando o corpo da menina, para ver se era gente de verdade. Seus pais lhe explicaram que, inconscientes, tinham sido carregados não se sabe por quem, por espíritos, talvez, para longe da epidemia e que, quando acordaram na outra aldeia e se deram conta de que Luli não tinha sido resgatada, imploraram que alguém voltasse até lá para procurá-la. Explicaram que ela se encontrava em um lugar secreto, dentro de uma esteira, e que por isso fora esquecida. Dois xamãs se prontificaram a ir, pois teriam a proteção de seus espíritos-guia contra a doença. Entretanto, quando voltaram, alguns dias depois, deram aos pais a notícia de que a esteira estava vazia. Luli não estava mais lá. Provavelmente tinha sido comida por uma onça ou por urubus.

Luli então contou-lhes sobre as suas novas visões e entregou ao seu pai a casca de árvore que havia recebido do segundo fantasma, explicando sobre o uso do medicamento. Ele reconheceu a árvore e partiu imediatamente para a floresta, para encher um cesto de casca. À noite, ao redor dos pequenos fogos, enquanto os doentes recebiam emplastros que aliviavam suas febres, Luli disse-lhes que tinham que expulsar aqueles brancos que invadiram as aldeias abandonadas. Eram eles que traziam aquelas doenças, que estavam enfraquecendo a todos. E seria apenas o começo. Explicou-lhes que, segundo o neto da Jussara, caso não fizessem nada, em pouco tempo todos estariam enterrados na beira do rio. Olharam para ela surpresos: Jussara era ainda uma menina, e nem tinha se casado! Luli teve preguiça de explicar os detalhes daquelas visões estranhas, mas o seu desespero e convicção eram tantos que convenceu a todos a seguirem o seu plano de atacar o acampamento dos invasores.

Os homens se pintaram com jenipapo e urucum. Aqueles que não tinham espingarda, pegaram uma na caixa da bicicleta. Limparam-nas e carregaram-nas. Entraram em suas canoas e desceram o rio na madrugada da lua cheia. O tio de Luli, xamã, ainda convalescente, entoava os seus cantos, junto com as mulheres. Luli, com o corpo todo pintado, seguia na frente de todos, remando sozinha uma pequena canoa, em cujo fundo reluzia uma espingarda, cuidadosamente lustrada, e dois pacotes de biscoitos de chocolate recheados, que trouxera de Lábrea.

Jardim Botânico e Laranjeiras, 5 de maio de 2020

Aparecida Vilaça é antropóloga e professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ. É autora de Paletó e eu (Todavia, 2018)

Francisco Vilaça Gaspar é doutorando em química do Laboratório de Química Bioorgânica (LQB) do Instituto de Pesquisas de Produtos Naturais-IPPN da UFRJ.


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