A democracia para além do Estado de direito?

A democracia para além do Estado de direito?

 

Mas o Estado democrático excede os limites tradicionalmente atribuídos ao Estado de direito. Experimenta direitos que ainda não lhe estão incorporados, é o teatro de uma contestação cujo objeto não se reduz à conservação de um pacto tacitamente estabelecido, mas que se forma a partir de focos que o poder não pode dominar inteiramente.” Quem diz essas frases não é um adepto da esquerda revolucionária que estaria à procura do melhor momento para solapar as bases do Estado de direito. Essas são frases de Claude Lefort em A invenção democrática: um livro largamente dedicado, ao contrário, à crítica das sociedades burocráticas no antigo Leste Europeu. Nessas frases, estão sintetizadas algumas reflexões maiores sobre a relação intrincada entre justiça e direito. Relação que ultimamente tendemos a ignorar, como se tudo aquilo que acontecesse à margem do Estado de direito fosse necessariamente ilegal e profundamente animado de premissas antidemocráticas. Pois talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar qual o sentido desta democracia que “excede os limites tradicionalmente atribuídos ao Estado de direito”. Um ponto de excesso que se mostrou, ao longo da história contemporânea, um motor fundamental das dinâmicas do político.

Talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar a democracia como ponto de excesso em relação ao Estado de direito porque acreditamos que tudo o que se coloca fora do Estado de direito só poderia ter parte com o mais claro totalitarismo. Quem está fora do Estado de direito parece se colocar em uma posição soberana, posição destes que poderiam não se submeter à lei, modificar continuamente a lei ao bel-prazer dos casuísmos e circunstâncias. Vemos apenas dois candidatos ocupando essa posição: o criminoso que viola abertamente a lei que garante a segurança do Estado de direito ou (e aí as coisas começam a se complicar) o legislador que afirma que, em situações de exceção, como em caso de guerra (mas sabemos hoje como é cada vez mais complicado distinguir estado de guerra e estado de paz) ou de crise (mas sabemos hoje como há sempre uma crise grave à espreita), certos dispositivos legais podem ser suspensos.

No entanto, é possível que exista um terceiro caso de excesso em relação ao Estado de direito, um excesso muito bem posto por Jacques Derrida por meio da seguinte afirmação, que encontramos em Força de lei: “Quero logo reservar a possibilidade de uma justiça, ou de uma lei, que não apenas exceda ou contradiga o direito, mas que talvez não tenha relação com o direito, ou mantenha com ele uma relação tão estranha que pode tanto exigir o direito quanto excluí-lo”. Pode, pois, a justiça não apenas exceder o direito, mas manter com ele uma relação tão estranha que pareça se colocar em uma indiferença soberana? Gostaria de insistir que essa possibilidade, longe de solapar e fragilizar a democracia, é o que a funda e a fortalece. Pois essa possibilidade é um outro nome para aquilo que normalmente chamamos de “política”.

Estados ilegais

Conhecemos situações nas quais a justiça se dissocia do direito. Trata-se de situações nas quais nos deparamos com um “Estado ilegal”. Mesmo a tradição política liberal admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao tirano, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o poder e impõe um Estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de integridade social. Nessas situações, a democracia reconhece o direito à violência, já que toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal.

Vale a pena insistir nessa questão. Podemos dizer que um dos princípios maiores que constituem a tradição de modernização política da qual fazemos parte afirma que o direito fundamental de todo cidadão é o direito à rebelião. Não creio ser necessário aqui fazer a gênese da consciência da indissociabilidade entre defesa do Estado livre e direito à violência contra um Estado ilegal. No que diz respeito ao Ocidente, é bem provável que sua consciência nasça da Reforma Protestante com a noção de que os valores maiores presentes na vida social podem ser objeto de problematização e crítica. Ela está presente, por sua vez, no artigo 27 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, documento fundador da modernidade política. Artigo que afirma: “que todo indivíduo que usurpe a soberania seja assassinado imediatamente pelos homens livres”. Ainda hoje, ela aparece no artigo 20, parágrafo 4 da Constituição alemã como “direito à resistência” (Recht zum Widerstreit). Encontramos um direito similar enunciado em várias Constituições de estados norte-americanos (New Hampshire, Kentucky, Tennesse, Carolina do Norte, entre outros). De maneira sintomática, isso demonstra como aqueles que procuram transformar os que participaram da luta armada contra o regime militar brasileiro em “terroristas” colocam-se aquém de um conceito substancial de democracia.

Lembremos ainda que não devemos compreender a ideia fundamental desse direito à resistência simplesmente como o núcleo de defesa contra a dissolução dos conjuntos liberais de valores (direito à propriedade, afirmação do individualismo etc.). Na verdade, em seu interior encontramos a ideia fundamental de que o bloqueio da soberania popular (e temos todo o direito de discutir o que devemos compreender por “soberania popular”) deve ser respondido pela demonstração soberana da força. Que a democracia deva, por meio desse problema, confrontar-se com aquilo que Giorgio Agamben chama de “o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica”, ou, ainda, com a “existência de uma esfera da ação humana que escapa totalmente ao direito”, que ela deva se confrontar com uma esfera extrajurídica, mas nem por isso ilegal, eis algo claro. Pois devemos insistir aqui que, mesmo em situações em que não estamos diante de um “Estado ilegal”, o problema da dissociação entre justiça e direito se coloca.

Uma sociedade que tem medo da política

Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda forma de violação contra o Estado de direito é inaceitável. Mas e se, longe ser de um aparato monolítico, o direito em sociedades democráticas for uma construção heteróclita, em que leis de várias matizes convivem formando um conjunto profundamente instável e inseguro? Por exemplo, nossa Constituição de 1988 não teve força para mudar vários dispositivos legais criados pela Constituição totalitária de 1967. Ainda somos julgados por tais dispositivos. Nesse sentido, não seriam certas “violações” do Estado de direito condições para que exigências mais amplas de justiça se façam sentir? Foi pensando em situações dessa natureza que Derrida afirmava ser o direito objeto possível de uma desconstrução que visa expor as superestruturas que “ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesses econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade”. Quem pode dizer em sã consciência que tais forças não agiram e agem para criar, reformar e suspender o direito? Quem pode dizer em sã consciência que o embate social de forças na determinação do direito termina necessariamente da maneira mais justa?

Por essas razões, a democracia admite o caráter “desconstrutível” do direito, e ela o admite por meio do reconhecimento daquilo que poderíamos chamar de legalidade da “violação política”. Pacifistas que sentam na frente de bases militares a fim de impedir que armamentos sejam deslocados (afrontando assim a liberdade de circulação), ecologistas que seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir que ele seja despejado no mar, trabalhadores que fazem piquetes em frente a fábricas para criar situações que lhes permitam negociar com mais força exigências de melhoria de condições de trabalho, cidadãos que protegem imigrantes sem-papéis, ocupações de prédios públicos feitas em nome de novas formas de atuação estatal, Antígona que enterra seu irmão: em todos esses casos o Estado de direito é quebrado em nome de um embate em torno da justiça.

No entanto, é graças a ações como essas que direitos são ampliados, que a noção de liberdade ganha novos matizes. Sem elas, certamente nossa situação de exclusão social seria significativamente pior.  Nesses momentos, encontramos o ponto de excesso da democracia em relação ao direito. Uma sociedade que tem medo desses momentos, que não é mais capaz de compreendê-los, é uma sociedade que procura reduzir a política a um mero acordo referente às leis que atualmente temos e aos modos que atualmente temos para mudá-las (como se a forma atual da estrutura política fosse a melhor possível – levando em conta o que é o sistema político brasileiro, pode-se claramente compreender o caráter absurdo da colocação).

No fundo, esta é uma sociedade que tem medo da política e que gostaria de substituí-la pela polícia. Pois a violação política nada tem a ver com a tentativa de destruição física ou simbólica do outro, do opositor, como vemos na violência estatal contra setores descontentes da população ou em golpes de Estado. Antes, ela é a força da urgência de exigências de justiça.É claro que devemos compreender melhor o que devemos chamar aqui de “justiça”. Não se trata de alguma forma de princípio regulador posto. Certamente, ela está mais ligada à experiência material do bloqueio de reconhecimento e do sofrimento social em relação às imposições produzidas pelas condições socioeconômicas e disciplinares de nossas formas de vida.

Notemos como a suspensão da lei em nome do sofrimento social e do bloqueio de reconhecimento é qualitativamente distinta da suspensão da lei feita por práticas totalitárias. Pois a suspensão política é a maneira de dizer que o direito se enfraquece quando não é mais capaz de reconhecer suas próprias limitações. E isso é feito a partir de uma outra espécie de “direito” (as aspas são de rigor) cujo fundamento, como dizia Lefort, “não tem figura”, é marcado por um “excesso face a toda formulação efetivada”, o que significa que sua formulação contém a exigência de sua reformulação. É só assumindo esse excesso que a democracia pode existir.

(2) Comentários

  1. Vladimir, adorei seu artigo. Muito muito mesmo exclarecedor. Eu estava discutindo com uns amigos ateus e afins sobre a intenção de se criar um partido político para repesentar essa minoria uma vez que a bancada evangélica avança vorazmente na bancada política e tememos uma espécie de retrocesso à”idade das trevas”, mas também estamos cansados de tantos ataques publicos como por exemplo o do desagradável Datena. Ontem na sala de aula eu era a única atéia e quando discutimos o ensino religioso nas escola da forma como é feito eu fui severamente criticada por uma unanimidade. Agora que expuz minha “identidade” ateísta tenho enorme difuculdade de ser aceita nos grupos de atividade(seminários). Tô cansada disso enter outras coisas. O Brasil ainda está vivendo a teocracia, todo o diálogo da diversidade e pluralidadede, eblá,blá,blá ainda é uma utopia . Eu gostaria de sabersua opinião de como deveria ser um estado realmente laico secularista num universorealmente contemporâneo.Abraços
    Márcia

  2. Enquanto houver a lei de imunidade e o foru privilegiado para acobertar os políticos corruptos e os juízes que vendem sentenças, só os pobres sem poder aquisitivo serão punidos!

    Sem distinção de cor, raça, credo, ou partido; a história vem nos mostrando que todo ser que se diz humano busca vantagens pessoais!

    Diante das atuais circunstancias, acabamos sendo obrigados a eleger o político que vai atar nossas mãos, e nos escravizar para manter suas mordomias e vantagens pessoais!

    Enquanto toda a população não souber como funciona uma eleição, o voto deve ser facultativo!

    A população não pode ser obrigada a votar; da maneira que esta, não é eleição, e sim enganação, pois é o mesmo que o cidadão ser obrigado a jogar determinado jogo, sem conhecer suas regras.

    Depois das alianças entre os partidos, os eleitores podem votar no candidato A, ou no B, que seu voto pode eleger o C; Ou seja; o voto pertence ao partido, e serve para fortalecer o presidente do partido, serve para eleger um candidato do mesmo partido e até da coligação!

    O governo, digo desgoverno deveria dar estas instruções, mas já agem desta maneira de caso pensado, a intenção das raposas velhas é permanecer mamando eternamente nas tetas suculentas da Nação!

    Então o abaixo assinado pelo fim da imunidade é a solução, seja político quem quiser, mas se roubar, desviar ou superfaturar, devera ser julgado por um júri popular; e não por seus iguais; e se condenado, deve ser punido e devolver o valor surrupiado!

    Quem é eleito pelo povo, deve ser julgado por quem o elegeu, em um júri popular.

    Chega de aturar corruptos nos enganando, escravizando, roubando e rindo da nossa cara.

    http://www.peticaopublica.com.br/?pi=Janciron
    Se estiver de acordo, assine e ajude a divulgar!

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