A confidência quando escapa

A confidência quando escapa
A poeta Ana Elisa Ribeiro, autora de 'Dicionário de imprecisões' (Foto: Adamo Alighieri)

 

Difícil dizer quando uma frase ganha status de verdadeira poesia. Quando, o que supomos ser apenas um estado emocional, celebra o encontro da letra com o espírito. Nesse sentido, palavras são marcadas, como num efeito hipnótico, pela empatia. Comunicar é essencialmente isso: a capacidade de expressar pensamentos e de fazer os outros os entenderem.

E empatia, não tenha dúvida, é comportamento dos mais urgentes. Nela está também um dos segredos da poesia. A possibilidade, ainda que fantasiosa, de se pôr no lugar, de olhar, mesmo que de relance, o outro. Muitos são os recursos para tal empresa, mas um em especial me encanta. Ele não se deve a força das imagens, ao raciocínio sofisticado, nem ao ritmo. É uma espécie de honestidade que se expressa com poucas palavras. Assim como no cinema dizem que uma imagem vale por mil palavras, há momentos na poesia em que dez delas valem por mil outras, em que dez delas substituem, quando não, o próprio silêncio. É com esse espírito que gostaria de tratar de quatro autores, de quatro frases, de quatro poemas que nos ajudam a sermos menos prolixos.

A síntese é elemento antigo na poesia, mas, no modernismo brasileiro, o tipo de síntese de que estou falando começou com aquela que talvez seja a frase mais triste da literatura de nosso país: “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”, de Manuel Bandeira. É uma frase que diz tudo: guarda o exercício árduo da meditação que se traduz em simplicidade desconcertante.

É também um momento da escrita que expressa nossas piores lembranças, como no verso cinematográfico de Armando Freitas Filho, ao retratar, em De cor, o suicídio de sua amiga, a também poeta Ana Cristina César: “Você não para de cair”. A simples negativa condena o leitor a viver a dor de quem sobrevive à morte traumática da pessoa amada na medida em que o momento fatídico não se finda. Mas esse é um momento da escrita que pode suscitar também o contrário: agora, capta-se o desejo mais esperado, contudo se cala devido ao absurdo mesmo que constitui esse desejo.

Penso em Beto Guedes na composição Canção do novo mundo, dedicada a John Lennon na época de sua morte, em dezembro de 1980. O compositor conclama o que todos que amavam John muito provavelmente desejaram quando souberam da notícia: “Oh, minha estrela amiga/ por que você não fez a bala parar?”. Pois é disso que se trata quando o beletrismo cai por terra em nome de uma essência mais profunda. Algo que se preparava no poema e não tínhamos coragem de contar, nem para nós mesmos.

E eis que agora me vejo diante do poema “Escada” de Ana Elisa Ribeiro e que se encontra no livro Dicionário de imprecisões, lançado neste ano. Não se trata, seguindo a proposta da autora, propriamente de um poema, mas de um poema-verbete, dirigido às palavras em estado de dicionário. O livro remete a experiências como nos versos em “Procura da poesia”, de Carlos Drummond de Andrade, e mais ainda, no poema “A flor da pele”, de Armando Freitas Filho. A partir do verbete “pele” do dicionário Aurélio, Armando denuncia a tortura como política de estado durante a ditadura militar acrescentando como que espinhas ao verbete. Em Ana Elisa, somam-se, ao rigor do diAna Elisa Ribeiro cionário, por mais impreciso que um dicionário seja, confidências que só poetas sabem fazer.

E lá está escrito, como que a nos paralisar o próprio tempo da leitura: “Escalera é vocábulo do espanhol para nossa escada./ Escadas são para escalar, por supuesto,/ e me atraem as coisas mais literais./ No entanto, escadas podem servir para sentar e descansar ou/ sentar e chorar, como fiz quando entreguei meu filho ao pai/ pela primeira vez”. A poeta segue no verbete com outras indiscrições; o fato de que escadas abrigam “casais fazendo sexo,/ às vezes, arriscando, amorosamente, suas reputações”. Mas eu já estava marcado pelo verso/frase/confissão anterior, e eu já lamentava junto, quando ela (ou serei eu?) “entreguei meu filho ao pai pela primeira vez”. Eis um aspecto da literatura que não se deve perder: simplicidade, encantamento; em que a vida, não sei se melhor, é certamente maior do que aquela que podia ter sido.

Dicionário de imprecisões
Ana Elisa Ribeiro
Impressões de Minas
132 páginas – R$35

André Luiz Pinto da Rocha é doutor em Filosofia pela UERJ, autor de Flor à margem (1999), Primeiro de Abril (2004), Isto (2005), Ao léu (2007), Terno Novo (2012), Mas valia (2016) e Nós, os dinossauros (2016)

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