A cena lenta: sobre o livro de Cláudio Oliveira
Cláudio Oliveira durante lançamento do livro no Rio de Janeiro, no Espaço Afluentes, na última terça (25) (Foto: Caio Meira)
Eu li o livro do Cláudio pela primeira vez num dia muito quente desse verão que transbordou todas as medidas tornando-se inclemente mesmo onde sempre foi tão brando: na serra, que eu sempre subi querendo escapar dos seus rigores no Rio de Janeiro. Foi sentada à beira de uma piscina, entre um mergulho e outro, entre o frescor e o calor escaldante, que li o livro do Cláudio. Quando terminei a leitura, para acompanhar essa interjeição que poderia ser traduzida como um gostei muitíssimo, adorei, ou qualquer coisa do gênero, eu estiquei meu braço posicionando o livro no centro da superfície muito azul que refletia um céu quase despido de nuvens e fiz uma foto que enviei a ele por WhatsApp. Do meu corpo, só aparecia na foto um pedaço de minha mão ou as pontas dos meus dedos. Como a capa do livro traz o torso do Cláudio, com seu braço tatuado por um motivo de alguma tribo indígena, era o seu corpo que eu de, algum modo, projetava nessa cena que era minha, o seu corpo que estava então, por direito, à frente do meu, que agora se escondia para que ele pudesse estar no primeiro plano. Se me pedissem para falar alguma coisa do livro naquele momento, se me perguntassem por que eu tinha gostado tanto, eu só poderia responder algo que me passou ligeiramente pela cabeça, sem que eu soubesse explicar por que, algo que, além do mais, parecia meio ridículo, mesmo ouvido por mim de modo quase inaudível: o livro do Cláudio me fazia querer “ser melhor”. Os livros de poesia de cuja leitura eu saio entusiasmada sempre me fazem ter o desejo de escrever melhor, ou de escrever mais ou de simplesmente escrever. O livro do Cláudio, se eu tento uma primeira tradução desse “ser melhor”, é um livro que me fez querer viver melhor, viver mais ou simplesmente viver. Mas todos os livros de poemas, por colocarem a linguagem num estado de “inquietação”, não podem deixar que passemos por eles sem o desejo de escrever. Nada separa a minha leitura da escrita do autor, apenas aquela linha tênue de que Cláudio fala em um de seus poemas, cuja “resistência é proporcional à força que a empurra para o fazer ou o não fazer”. O que nesse livro se evidencia é que a radicalidade com que se assume a vida leva à escrita. Que a escrita é o modo radical de realização da vida. Ou que a vida assumida no risco que é implicado por ela é inseparável do escrever. Isso não se dá para todos, há modos diferentes de assumir esse risco: esse é o modo próprio daquele que é, não é mais do que, escritor. E isso, ser escritor, já era, como diz o Alberto Pucheu no começo de seu posfácio, o modo próprio de envolvimento do Cláudio com a filosofia e a psicanálise.
Eu reli essa semana o livro do Cláudio já diante dessa tarefa de dizer algo sobre ele hoje, aqui. O desejo de escrever que é acionado por um livro de poemas pode ser também o desejo de ir cada vez mais fundo na leitura desse livro, o desejo de procurar um traçado, uma costura que formem um tecido. O livro do Cláudio carrega também essa “inquietude” da linguagem que é a necessidade de desmontar e remontar, destecer e tecer, sempre avisando que essa tarefa é interminável. Ele é um livro que em sentido radical é inseparável da crítica.
Mas gostaria de voltar ao corpo do poeta projetado na cena da vida do leitor. Sempre que leio o livro de poemas de um amigo, eu reconheço o amigo. Os poemas do amigo aparecem para mim como um certo modo de estar no mundo daquele amigo que vai ao encontro de seus outros modos de ser que eu já conheço. Mesmo que o livro seja inesperado, mesmo que, lendo o livro, eu veja o amigo de uma forma que nunca tenha visto antes e me surpreenda, ainda assim eu posso afirmar algo como “isso é ele!”. E por isso creio que um livro de poemas não se torna legível porque o autor se despregue de sua individualidade, porque ele passe a ocupar um universal, a se colocar no lugar de uma entidade que paira sobre a individualidade, como um “eu lírico”, às vezes, tão limpinho, tão depurado. Ao contrário, acho que é assumindo radicalmente nossa individualidade, nossa singularidade, que podemos escrever poemas. Podemos escrever poemas justamente onde assumimos um modo de ser que pode nos levar infinitamente para longe dos outros, como em alguns poemas desse livro. Toda nossa poesia é um encontro com isso que somos, numa radical solidão, e que talvez possamos nomear nos apropriando da expressão “revelia inexpugnável”, usada por Caio Meira na orelha que escreveu para o livro.
Porém é aqui onde julgamos reconhecer o amigo que ele nos avisa abruptamente que já se subtraiu de nós ou que, se é ainda o que é para nós, é somente pela impossibilidade de fazer o salto definitivo para um outro; já não podemos mais apreendê-lo justamente no momento desse salto que se dá e também não se dá, que parece estar num entre, numa suspensão. Em “O fantasma”, ele nos diz: “Veio a Lígia, e tudo que você já sabe e tudo que você não sabe, e muito, muito mesmo que você não sabe e que têm sido os meus dias desde então. Deles há sinais por toda parte e você os vê, mas saberá você quem agora eu sou, além daquele que continua o mesmo, porque mudar não pode?”.
No entanto essa vertigem na qual se é lançado na compreensão da incompletude, essa vertigem que acompanha um si mesmo como compreensão de um por se fazer, é colocada no poema que abre e dá título ao livro a partir de uma falha original que surge pela subtração de um outro. “Restaram apenas o menino, ele e a bola. A princípio, como se poderia esperar, continuaram apenas eles. Mas o menino deu-lhe uma breve desculpa e partiu. Ele ficou ali, ainda movido, sozinho, inquirindo aquela ausência. Mas não custou – uma hora ou mais – a perceber o que se passava: a cena se repetiria.” Essa cena que é um destino, essa cena que é também uma revelia inexpugnável, que é uma cena em que já sempre estamos lançados, um pré que nos lança para um adiante é a cena lenta, é um elemento que pode ser o ar respirável ou pode ser a água daquele aquário diante de cujo vidro o poeta-narrador se detém consciente de que precisa antes aprender a respirar. A “Cena lenta” que abre para um futuro ao mesmo tempo que é abertura para um passado. A cena lenta, como dirá a personagem do poema seguinte, é o “indiviso” de um determinado “instante”. Ela é esse instante que se abre, uma fenda na arquitetura dos comércios linguísticos, afetivos que “mantêm o edifício em pé” e no livro ela tem uma variação tão grande de humores e de pathos quanto pode ser variada a própria vida. Mas sempre, qualquer que seja esse humor ou esse pathos, ela nos coloca em uma posição radical. Estamos sempre diante de um indiviso que temos de atravessar. Todos esses pathos e humores nos fazem fincar os pés na vida.
Não sabemos para onde iremos quando entramos nesta cena lenta. Não podemos nunca escolher o paraíso, a “felicidade alquímica”, o “sítio das estrelas”, a tarde azul e arejada de verão em que apenas caminhamos, “mamíferos entre mamíferos”. A cena lenta também pode ser o absurdo, o inferno, os seus círculos mais profundos, de onde não saímos alçados pela mão de um Virgílio. Mas não deixa de haver muitos Virgílios nos poemas-narrativas desse livro. O menino da primeira cena, o “menino de rosto branco, quase pálido” vai deixando de ser fantasmagórico, vai reaparecendo na figura desses meninos que chamam para o gozo do presente, meninos sempre em giro com suas motonetas, que podem sorrir com seus lábios sujos de porra ou dizer Quello que tu vuoi antes do momento em que se deseja: boa viagem. E também “in giro”, o poeta que descreve inicialmente os meninos que estão no princípio da cena lenta como “meninos pobres de si mesmos”, “reconstruídos por seu zelo” abraça feliz sua incompletude, um estar jogado, largado no mundo. Penso que talvez o poeta-narrador seja aquele que se mantém no intervalo, num entre tão difícil que é o entre o menino do poema do início e esses meninos de que o rapaz do poema final é um representante. Essa cena lenta que traga aquele que a vive para dentro dela também dá lugar no livro a belas cenas de contemplação. Também desafiadoras da estrutura, do cimento armado que mantém o edifício em pé (uma expressão sempre fálica para mim no livro) são as mulheres desses poemas. Elas furam o cimento armado (o asfalto, o tédio, o ódio) e abrem a possibilidade. Essas mulheres cujo sorriso são um “verão inteiro”.
No seu texto do posfácio, o Alberto Pucheu compara os textos do livro a filmes de curta-metragem e o livro a um longa do qual fariam parte. Eu, por minha parte, para ficar próxima do poema já citado, O fantasma, penso o livro como a casa e os poemas como os cômodos pelos quais vamos passando, com o fantasma à nossa frente ou no nosso encalço, nunca sabendo se não estamos voltando ao princípio, percorrendo cômodos que já deveriam ter sido deixados para trás.
Exatamente neste poema, O fantasma, há uma passagem na qual o Pucheu se deterá em seu posfácio. “Isso tudo sendo a minha análise: cada pingo cada gota, cada dia, cada fala, cada linha, cada trecho, que costuro, costuro, à procura do desenho do tapete… (o tapete é a análise, o desenho nunca aparece)”. Ao se deter nesta passagem, ele evoca uma passagem de Alain Didier-Weil que o encaminhará para uma análise muito bonita do livro do Cláudio. O psicanalista diz: “Na cura psicanalítica, a gente tenta apreender, para além da prosa, as palavras que são verdadeiramente as do sujeito, as palavras que o constituíram e eu chamo de ‘o poema de cada um’”.
Ao abrir-se essa cena lenta, a linguagem também escapa dessa armadura de cimento que mantém o edifício em pé. Perde sua imobilidade e se transforma toda em inquietação. A cena lenta abre uma vertigem que também é uma vertigem da linguagem. Por isso, aquele que procura pelos nomes, procura-os, como no poema “O nome das coisas” com cuidado: “Eu só fui saber muito tempo depois os nomes das coisas. Na verdade, fui atrás dos nomes para muitas delas, mas para algumas ainda estou procurando, embora não queira saber o nome de certas coisas. Hoje tenho mais cuidado com os nomes. Há alguns que não se deve descobrir ou que é preciso estar muito preparado para fazê-lo. Tenho medo de chegar ao fim do nome. Para dar um nome ao fim.”
A morte está aqui sempre no horizonte a partir da questão da linguagem que se põe a partir da cena lenta. A morte que é o limite contra o qual a vida se destaca e se acende. O livro do Cláudio é o poema do vivido a partir do momento em que a cena lenta desfaz qualquer necessidade de distinguir o real vivido da ficção. Lendo este livro, lemos esse poema, lemos o poema do amigo, mas também o amigo como poema.
Cena Lenta
Cláudio Oliveira
Circuito
72 páginas – R$ 40
SIMONE BRANTES é poeta, autora de Quase todas as noites (7Letras), vencedora do prêmio Jabuti de Poesia em 2017